Opinião

A aplicação do in dubio pro societate na pronúncia conforme jurisprudência do STF

Autores

  • Alessandra Peres dos Santos

    é advogada pós-graduada latu sensu em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina especialização em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 

  • Isabela Aparecida de Menezes

    é advogada e pós-graduanda em Direito Penal Econômico e Processo Penal Econômico na Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

19 de janeiro de 2021, 14h03

O ordenamento jurídico pátrio é regido pela garantia à presunção de inocência [1] e um dos seus desdobramentos é o princípio in dubio pro reo, segundo o qual, em caso de dúvidas, a decisão deve ser favorável ao réu [2].

A partir daí, e em sentido contrário, consagrou-se o denominado princípio in dubio pro societate, de modo que a dúvida acerca da autoria delitiva deve ser dirimida em favor da sociedade, ou seja, admitindo-se a acusação.

Não obstante, importante destacar que a doutrina e a jurisprudência divergem se o in dubio pro societate seria de fato um princípio admitido pela Constituição Federal. De um lado, a concepção de que a acusação deve ser acompanhada de justa causa [3], pois atribuir prejuízo ao réu em razão de dúvida seria o mesmo que transferir o ônus da prova ao acusado, retirando do Ministério Público o dever de provar suas alegações [4].

De outro lado, a comum utilização do in dubio pro societate pela jurisprudência, seja para o recebimento da denúncia (STJ: RHC 120.607/MG; HC 465.240/PR. STF: AO 2.275; AO 2.075) ou para pronúncia do réu (STJ: AgRg no REsp 1.832.692/RS; AgRg no AREsp 1.390.818/RS. STF: ARE 1.250.182-AgR; ARE 986.566-AgR; ARE 873.294-AgR).

Especificamente no que tange à ampla aplicação do princípio do in dubio pro societate na fase da pronúncia do procedimento especial do Tribunal do Júri, destaca-se que tal concepção não autoriza que o acusado por crime doloso contra a vida seja pronunciado com base em elementos probatórios insuficientes, sob o manto do princípio ora analisado.

Num primeiro momento, a proibição indicada acima encontra amparo no princípio da motivação das decisões judiciais, previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, de modo que não basta ao julgador pronunciar o réu sem expor quais circunstâncias concretas fundamentam sua conclusão.

Por outro lado, o artigo 413 do Código de Processo Penal exige prova da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria [5], de modo que, ainda que se defenda a aplicação do in dubio pro societate, é certo que nem toda dúvida é apta a fundamentar a pronúncia, vez que esta deve se amparar em elementos concretos produzidos em contraditório. Isto é, "apesar de não exigir certeza, exige-se certa probabilidade, não se contentando a lei com a mera possibilidade" [6].

Nesse ponto, surge a complexa discussão em torno do standard probatório da decisão de pronúncia, que se refere ao nível de prova necessário para fundamentar e legitimar a decisão que acolhe a tese acusatória e submete o réu ao julgamento popular [7]. Nos termos do Código de Processo Penal, o standard de provas para a decisão de pronúncia é inferior àquele exigido para a condenação, ante a suficiência de indícios da autoria, sobre a qual não se exige prova concreta e além da dúvida razoável.

Contudo, ainda assim, não há como ignorar o fato de que, para pronunciar o réu, o julgador deve verificar a existência de base probatória condizente com a tese da acusação, o que prejudica e torna ilógica a aplicação genérica e descuidada do princípio do in dubio pro societate.

Nesse contexto, ante a celeuma envolvida na aplicação do in dubio pro societate na decisão de pronúncia, coube ao Supremo Tribunal Federal estabelecer critérios que limitam a utilização do princípio ora analisado.

Em acórdão datado de 1996, observa-se que o entendimento consolidado na Corte Suprema era no sentido de que qualquer que fosse a dúvida, a solução era a pronúncia do réu, sob pena de gerar "prejuízo à competência constitucional do Tribunal do Júri para apreciar a questão de mérito" [8].

Com efeito, no julgamento do Habeas Corpus nº 81.646 [9], no ano de 2002, diante da "invocação descabida do in dubio pro societate na dúvida quanto à existência do crime", restou esclarecido que referido princípio "jamais vigorou no tocante à existência do próprio crime", de modo que se reconheceu a falta de justa causa para a pronúncia.

Diante disso, nos termos do entendimento da Corte Suprema, o acusado só poderá ser pronunciado caso haja certeza da materialidade e indícios suficientes de autoria, sendo que "qualquer dúvida que paire quanto a autoria do crime deve ser resolvida pelo Tribunal do Júri" [10], sob pena de violação à competência do plenário.

A partir daí, nota-se que o princípio in dubio pro societate passou a ser utilizado como justificativa para pronúncia do acusado nos casos de dúvida acerca da autoria, sendo referido entendimento amplamente aplicado pelo Supremo Tribunal Federal [11] e, consequentemente, por todos os tribunais do país.

É certo que, nos termos da própria legislação processual penal, não é necessária a certeza da autoria para submeter o réu ao plenário, no entanto, se faz necessário, no mínimo, que haja elementos que possibilitem ao juízo concluir que o réu foi autor do delito [12]. Todavia, a aplicação generalizada do princípio in dubio pro societate causou um fenômeno um tanto questionável, qual seja, a pronúncia de acusados mesmo sem indícios convincentes de autoria, como se toda e qualquer dúvida devesse ser resolvida por julgadores leigos.

Diante de tal cenário, é possível notar a evolução jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, mormente porque no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.067.392, a 2ª Turma entendeu pela concessão de Habeas Corpus de ofício para reestabelecer a sentença de impronúncia proferida pelo magistrado de primeiro grau, tendo em vista a interpretação indevida do in dubio pro societate pelo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que houve interpretação "confusa e equivocada ocasionada pelo suposto princípio in dubio pro societate" consignando que referido princípio "além de não ter qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova e desvirtua o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, a esvaziar a função da decisão de pronúncia" [13].

Tal entendimento foi reafirmado pela Corte Suprema no recente julgamento do Habeas Corpus nº 180.144/GO, no qual destacou a ilegitimidade da invocação do in dubio pro societate frente à presunção de inocência assegurada pela Constituição Federal, e que havendo dúvida razoável, mesmo que na primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, esta deve beneficiar o réu [14].

Os julgamentos supracitados são de extrema relevância, pois evidenciam uma quebra à tendência da aplicação geral e infundada do in dubio pro societate. O Supremo Tribunal Federal ainda ressaltou a importância do preenchimento do standard probatório e da valoração racional da prova pelo juiz togado, afastando a equivocada ideia de que toda e qualquer dúvida quanto à autoria, inclusive aquelas reconhecidas pelo julgador, são aptas a fundamentar a decisão de pronúncia.

Em verdade, é justamente para isso que o legislador instituiu a primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, ou seja, para que um julgador togado (e não leigo) analise e valore racionalmente as provas produzidas, enviando ao plenário somente os casos em que há acervo probatório suficiente para fundamentar eventual decreto condenatório.

A partir daí, nota-se que o in dubio pro societate não serve como justificativa para, em caso de dúvida acerca da existência de indícios de autoria, pronunciar o acusado, submetendo-o ao Tribunal do Júri. Isso porque, ainda que a pronúncia não exija a certeza, como a condenação, é necessário, no mínimo, um standard probatório inferior [15].

Em verdade, parte da doutrina, ainda minoritária [16], entende que na fase da pronúncia o que vigora é o in dubio pro reo¸ de modo que "somente quando houver fortes elementos probatórios de autoria e materialidade (probabilidade e alto grau de convencimento), pode o juiz pronunciar. Havendo dúvida razoável, deverá impronunciar (ou absolver sumariamente ou desclassificar a infração, conforme o caso)" [17].

Portanto, em que pese a jurisprudência da Suprema Corte ainda estar em evolução, é imprescindível cautela na aplicação do in dubio pro societate para a pronúncia do réu, notadamente porque referido princípio não serve como justificativa para submeter o acusado ao Tribunal do Júri quando existir dúvida da autoria, isto é, quando a instrução processual indicar a possibilidade do réu não ser autor ou partícipe do delito.

 


Referências bibliográficas
 
BALTAZAR JR., José Paulo. Standards probatórios no processo penal. Revista da AJUFERGS. v. 4. Porto Alegre, 2007.

— GOULART, Fábio Rodrigues. Tribunal do júri: aspectos críticos relacionados à prova. São Paulo: Atlas, 2008. p. 18.

— LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. Salvador: Juspodivm, 2016.

— LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

— MACHADO, Antônio Alberto. Curso de Processo Penal. 6ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014.

— MENDES, Gilmar Ferreira. Critérios de valoração racional da prova e standard probatório para pronúncia no júri. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-abr-06/observatorio-constitucional-criterios-valoracao-racional-prova-standard-probatorio#author Acesso em 04 de abril de 2020.

— NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

— RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 27ª Ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2019.

— STF, ARE 1067392, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 26/03/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-167 DIVULG 01-07-2020 PUBLIC 02-07-2020.

— STF, HC 180.144. Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-255 DIVULG 21-10-2020 PUBLIC 22-10-2020.

— STF, HC 73512, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 23/04/1996, DJ 01-07-1996 PP-23862 EMENT VOL-01834-01 PP-00189.

— STF, HC 81646, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 04/06/2002, DJ 09-08-2002 PP-00088 EMENT VOL-02077-01 PP-00076 RTJ VOL-00191-01 PP-00218.

— STJ, HC 175.639, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., J. 20/03/2012, DJe 11/04/2012.


[1]Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal).

[2] “(…) no processo penal, mesmo que a defesa não tenha produzido prova acerca da alegada inocência do réu, nem por isso este será automaticamente condenado, já que em matéria penal, por força do princípio do in dubio pro reo e da inocência presumida, se a acusação não produzir prova cabal sobre a responsabilidade criminal do denunciado, o caso será de absolvição.” (Machado, Antônio Alberto. Curso de Processo Penal. 6ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 472).

[3] STJ, HC 175.639, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª T., J. 20/03/2012, DJe 11/04/2012.

[4] Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. 27ª Ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2019. p. 96.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 61.

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 1132.

[7] BALTAZAR JR., José Paulo. Standards probatórios no processo penal. Revista da AJUFERGS. v. 4. Porto Alegre, 2007. p. 161.

[8] HC 73512, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 23/04/1996, DJ 01-07-1996 PP-23862 EMENT VOL-01834-01 PP-00189

[9] HC 81646, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 04/06/2002, DJ 09-08-2002 PP-00088 EMENT VOL-02077-01 PP-00076 RTJ VOL-00191-01 PP-00218

[10] HC 73512, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 23/04/1996, DJ 01-07-1996 PP-23862 EMENT VOL-01834-01 PP-00189

[11] Nesse sentido: RE 540999, Relator(a): Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 22/04/2008, DJe-112 DIVULG 19-06-2008 PUBLIC 20-06-2008 EMENT VOL- 02324-06 PP-01139 RTJ VOL-00210-01 PP-00481 LEXSTF v. 30, n. 360, 2008, p. 484-500; HC 113156, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 14/05/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 28-05-2013 PUBLIC 29-05-2013; ARE 788457 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 13/05/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 27-05-2014 PUBLIC 28-05-2014; ARE 986566 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 21/08/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-193 DIVULG 29-08-2017 PUBLIC 30-08-2017.

[12]LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 800/801.

[13]ARE 1067392, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 26/03/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-167 DIVULG 01-07-2020 PUBLIC 02-07-2020.

[14] HC 180.144. Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-255 DIVULG 21-10-2020 PUBLIC 22-10-2020.

[15] MENDES, Gilmar Ferreira. Critérios de valoração racional da prova e standard probatório para pronúncia no júri. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-abr-06/observatorio-constitucional-criterios-valoracao-racional-prova-standard-probatorio#author. Acesso em 04 de abril de 2020.

[16] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit. p. 801.

[17] Idem, ibidem.

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  • Brave

    é advogada, pós-graduada latu sensu em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina, especialização em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 

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    é advogada e pós-graduanda em Direito Penal Econômico e Processo Penal Econômico na Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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