Opinião

A linguagem jurídica de gênero neutro

Autor

  • Luiz Sergio Fernandes de Souza

    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da PUC/SP e coordenador da área de Filosofia do Direito na Escola Paulista de Magistratura.

19 de janeiro de 2021, 12h07

Circulam nos meios institucionais textos que ensinam o emprego não androcêntrico da linguagem, distante do sexismo e dos usos que possam reforçar preconceitos de gênero e identidade sexual.

Na comunicação cotidiana não é incomum que as pessoas se utilizem de palavras ou expressões cuja origem ou história venha a sugerir carga depreciativa, assim agindo, muitas vezes, sem essa real dimensão. A prática dos falantes pode, de fato, estimular atitudes discriminatórias, razão por que governos estaduais e certos segmentos jurídicos têm adotado iniciativas para despertar a consciência acerca da importância do uso adequado da linguagem.

O governo do Rio Grande do Sul, por meio de decreto, instituiu grupo de trabalho que, inspirando-se em projeto desenvolvido pela Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina e Caribe, elaborou um "Manual para o uso não sexista da linguagem". Lá está dito que, embora não tenhamos, na língua portuguesa, a figura do substantivo neutro — fora da estrutura biforme (masculino, feminino) existem apenas o substantivo sobrecomum, o comum de dois gêneros e o epiceno —, é possível inserir pessoas não identificadas com essa dicotomia em formas de linguagem mais inclusivas.

Essa estratégia consiste muitas vezes na simples alteração do substantivo ("a cidadania", e não "os cidadãos"; "a juventude", e não "os jovens"; "o pessoal docente", e não "os professores") e de outros sintagmas, sem desconsideração dos elementos morfossintáticos. No lugar de "os paulistanos gastam muito tempo no transporte", "em São Paulo se gasta muito tempo no transporte". Em vez de "eles não trabalham nem estudam", "esse grupo não trabalha nem estuda". Da mesma forma, "quem quiser venha", e não "aquele que quiser venha"; "na Antiguidade, acreditava-se na lei divina", e não "na Antiguidade, o homem acreditava na lei divina".

Nos sintagmas nominais integrados por substantivo comum de dois gêneros, para evitar a desinência "o/a", recorre-se muitas vezes ao emprego do substantivo comum que designa o conjunto de objetos da mesma espécie, vale dizer, o substantivo coletivo. Assim, prefere-se "a clientela consumiria mais se tivesse melhor informação" a "os clientes consumiriam mais se tivessem melhor informação". Outro artifício para fugir à linguagem discriminatória consiste na utilização da desinência nominal "e" quando se trata de palavras que admitem flexão de gênero ("Darci é muito comunicative").

Enfim, são várias as formas prescritas para não reforçar a correspondência entre o gênero gramatical e o gênero biológico, chegando-se a ponto de sugerir o uso de pronome neutro — como existe em certos idiomas, na referência a animais, objetos e como havia no latim clássico — a fim de evitar a estigmatização das comunidades não binárias. Ocorre dizer, porém, que a linguagem é convencional, produto de uma série de fatores culturais. Diretrizes e regras não se sobrepõem à rede de estereótipos que fabrica e ao mesmo tempo é fabricada pela realidade.

Para lembrar Horácio, "muitas palavras que já morreram terão um segundo nascimento, e cairão muitas das que agora gozam das honras, se assim o quiser o uso, em cujas mãos está o arbítrio, o direito e a lei da fala" (Ars Poetica, vv. 70 et seqq.). Manuais de linguagem são guias para a comunicação e a realização dos atos de fala; não alteram o mundo nem modificam comportamentos. Mesmo a norma jurídica, quando destituída de sanção (coerção ou motivação) — como se passa com os diplomas legais que aprovam o vocabulário ortográfico —, muitas vezes se torna "letra morta", pelo que a expectativa em torno da função preceptiva de uma ética da linguagem de gênero neutro sugere uma concepção ingênua do processo de significação.

Tome-se como exemplo o latim, que não é propriamente "língua morta", mas "linguagem morta", precisamente porque a estrutura subsiste (do que é prova a existência de cursos e manuais de latim), apesar de a língua não ser praticada senão em círculos bastante reservados. A língua, com todas as suas regras, permanece, mas sem o viço que é próprio da linguagem, do contato com a vida.

No caso da língua portuguesa — que se modifica continuamente porque praticada —, em vão tratará a lei de estabelecer regras de flexão das palavras, do emprego do verbo, da proposição e do advérbio, pois sempre haverá um número expressivo de pessoas a dizer "dois chope, por favor", "quando ele tiver chego", "namoro com ela", ou perguntado "aonde pus o óculos" (nesse caso, numa dupla investida contra a gramática). Os menos puristas defendem que o importante é fazer-se entender, comunicar, atingir os objetivos que se pretende alcançar com o emprego de uma palavra ou expressão, não descartando a hipótese de que esse emprego incorreto, com o tempo, venha a ser incorporado pela língua.

Essas considerações fazem lembrar um dos mais importantes textos de Luís Fernando Veríssimo, "Gigolô das palavras", publicado no ano de 1996 em coletânea homônima. Na crônica — consagrada pela crítica, mas na qual alguns reconheceriam hoje certos componentes machistas —, o escritor diz que a sintaxe é uma questão de uso, não de princípios; a gramática normativa, simples esqueleto, só predomina nas línguas mortas, "de interesse restrito a necrólogos e professores de latim, gente em geral pouco comunicativa"; o português, de outra forma, para reprovação dos acadêmicos, permanece vivo — arremata o cronista com igual ironia.

A ética da linguagem de gênero neutro não deixaria de cumprir, em certo sentido, o papel de uma gramática normativa, ao estabelecer regras que devem ser observadas para escrever corretamente. Pensando na esfera semântico-pragmática, pode ser que a utilização de uma linguagem ad hoc, ao atingir suas finalidades nas mídias sociais, por exemplo, ou nas campanhas publicitárias, acabe por se inscrever no âmbito da fala e da escrita de um significativo número de pessoas. Há quem diga, informalmente, "vou dar um chego lá"; na peça publicitária, a gente ouve "fale ilimitado com qualquer operadora". Da mesma maneira, é possível que, com o tempo, a "linguagem neutra de gênero", a "linguagem não binária gênero-inclusiva" deixe a esfera do ativismo para ganhar o mundo das artes, sempre precursor.

Mas os elementos morfossintáticos da língua não sugerem um bom prognóstico para essa mudança em círculos mais ligados à tradição da língua, ao "idioma culto", apuro linguístico que na rotina jurídica, a bem da verdade, é muito mais pretensão do que prática efetiva. Fala-se aqui do segmento editorial (em que pese o vanguardismo da literatura) e do campo científico, cabendo lembrar que em Portugal, por exemplo, muitos escritores e editoras se negam a produzir textos em conformidade com o acordo ortográfico celebrado entre os países de língua portuguesa (uma das mais faladas no mundo). A propósito de outros setores, veja-se que o Ministério da Defesa, em setembro de 2020, publicou recomendação para o uso de linguagem mais inclusiva e menos discriminatória em todos os documentos produzidos pelas Forças Armadas portuguesas. A diretiva, embora não houvesse interferido com elementos estruturais da língua, gerou mal-estar entre os militares e foi anulada dias depois.

Mesmo no âmbito do Direito, a inserção do gênero neutro (deixando de lado os casos em que isto se possa fazer sem burla às regras morfológicas e sintáticas) representaria sérias dificuldades, porquanto o uso da língua portuguesa é obrigatório no processo judicial; e quando assim se diz, de modo preceptivo, está-se tratando do idioma oficial, sem lugar para (des)construções morfossintáticas, ainda que a pretexto de fazer valer a igualdade e o pluralismo consagrados no texto constitucional. O debate, que interfere com o plano da validade, e não só com a esfera da correção/adequação, haveria de levar em conta também o fato de que dificilmente regras, princípios, máximas, brocardos e aforismos jurídicos — fórmulas portadoras de um sentido histórico muito valorizado pelos juristas — cederiam espaço a inovações. Não se está defendendo que assim seja, mas ressaltando que o Direito ainda se acha muito vinculado à tradição.

Diante disso, pode-se dizer que haveria barreiras praticamente intransponíveis para alterações tão profundas como as que reivindica o ativismo (com a criação e uso de pronomes neutros, inclusive), não se podendo desconsiderar que mudanças estruturais da língua são resultado de um processo de transformações histórico-sociais que dizem muito sobre a maneira como um povo vive e experimenta o idioma, sobre a sua identidade. E o Direito é partícipe dessas relações, tanto assim que muitas expressões surgidas no ambiente jurídico, com o tempo, foram incorporadas ao repertório dos falantes. Acerca dessa prestação recíproca entre natural e jurídica, curioso observar que o termo "juridiquês" — no qual se identifica a crítica da sociedade ao jargão jurídico —, não raras vezes empregado, nos últimos anos, nas mais altas cortes do país, já integra o discurso jurídico. Por isso, não é improvável que os dicionaristas passem a registrá-lo dentro em pouco. Todavia, o máximo que se consente são os neologismos (expressão do reconhecimento de que a língua é viva, mas que é necessário observar as matrizes do idioma), de onde se retira que a permeabilidade entre aqueles dois sistemas de ocorre de maneira apenas parcial.

Na hipótese da adesão de um segmento da sociedade à linguagem não binária gênero-inclusiva, inexistiria propriamente uma fusão, com transformações das forças vivas da linguagem — no dizer de Chomsky —, de sorte que o cotejo da língua oficial, aquela incorporada pelas instituições (nas quais o Direito se inclui), com a linguagem de um determinado grupo de falantes demandaria simples elaboração de paráfrases. É o que se passa entre línguas que têm a mesma estrutura profunda. Quanto às mudanças que não interferem com alterações morfológicas e sintáticas, tudo se resumiria a impositivas variações de estilo, numa espécie de camisa de força, a subtrair da linguagem construções espontâneas, ricas de sentido. Tais injunções encontrariam forte resistência no campo do Direito, sobretudo, por força do princípio da legalidade (ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude lei).

Observe-se — sob um outro enfoque teórico (Habermas) — que o Direito é uma grande reserva de racionalidade comunicativa. Sucede que, no contexto real, há uma série de dificuldades em respeitar as condições ideais de fala, nas quais está baseado o agir comunicativo, pressuposto das práticas igualitárias, inclusivas e participativas. Em resumo, nem todos têm voz para exigir a justificação das pretensões de validade de um determinado discurso, que tende a se tornar excludente (e, assim, hegemônico) à medida que cresce o déficit na distribuição da competência linguística, conceito não necessariamente correspondente ao de elite letrada.

Não acredito, contudo, que essas outras falas, incluindo as que reivindicam o debate das questões identitárias, possam contestar o discurso competente por meio da simples interdição da linguagem, tampouco com a adoção de uma terceira vogal temática para incluir aqueles que não se reconhecem na dicotomia de gênero. Se é certo que os estereótipos culturais, atuantes no processo de compreensão da realidade, são reforçados pela linguagem, certo também é que nossa percepção do mundo e das coisas não se verá alterada pelo simples fato de proscrevermos palavras, de prescrevermos a mudança das classes gramaticais ou de inventarmos formas de neutralidade muitas vezes impronunciáveis ou ininteligíveis. O respeito à diversidade se insere na esfera de práticas culturais espontâneas, na maneira como cada um de nós se relaciona com o outro, dinâmica que tende a ser incorporada pela linguagem falada e escrita, seguindo o processo histórico.

A falta de efetividade da norma constitucional que consagra a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (artigo 5º da CF), não será resolvida se deliberarmos escrever que "tod@s" "todes" ou "todxs" são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Não consta que nos países cuja língua contempla o gênero neutro tal regra tenha repercutido na maneira como mulheres e minorias são tratadas. A chamada "fala inclusiva", apartada da nossa tradição linguística, ao reivindicar o rompimento com uma "gramática conservadora", corre o risco de esbarrar, ela própria, na falta de efetividade. Inegável a existência de relações recíprocas entre contexto social e linguagem. Na Linguística — mais especificamente no campo da Comunicação —, há uma prática que consiste precisamente na compreensão das construções ideológicas presentes na estrutura de um texto. As convenções, entretanto, estabelecem-se pelo uso, diante do qual cede o arbítrio. O que importa é a experiência, a vivência da língua, cabendo reproduzir aqui, ainda que em outro contexto, a advertência que dá título a um dos livros de Michel Crozier: "On ne change pas la société par décret".

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