Público x Privado

Negacionismo e princípios constitucionais que orientam a ação do Estado

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18 de janeiro de 2021, 15h37

É lugar comum no meio jurídico fazer referência aos princípios constitucionais que orientam a ação estatal. Tais princípios não constavam das Constituições anteriores, apesar de serem aceitos na jurisprudência e doutrina, sendo uma inovação por parte dos nossos constituintes originários a formalização dos mesmos na Constituição de 1988. Aos quatro princípios básicos da moralidade, legalidade, publicidade e impessoalidade, foi acrescido como quinto princípio o da eficiência, por meio da Emenda Constitucional 19, de 1998.

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Tais princípios, mesmo com a abstração de seu conteúdo, servem de balizas institucionais e de valores para o comportamento daqueles que integram a Administração Pública, assim como daqueles que com ela se relacionam.

A atuação política, por sua vez, tem a dificuldade de agir dentro dessas balizas. A busca pelo poder não gosta de limites e já tive a oportunidade de presenciar por diversas vezes esta tensão. A famosa frase de Cesar sobre a honestidade de sua mulher permite uma melhor compreensão do comportamento político. O caso, que gerou o famoso provérbio, decorreu de o senador romano Publio Clodio Pulcro ter se infiltrado em uma festa religiosa exclusivamente para mulheres (Bona Dea), organizada por Pompeia, esposa de Cesar. Este processou Clodio nos tribunais de Roma, sem sucesso, por sacrilégio (Cesar era o Pontifex Maximus, isto é, o Sumo Sacerdote da religião do Estado romano) e, mesmo não conseguindo a condenação de Publio Clodio, Julio Cesar divorciou-se de Pompeia. Quando alguns senadores romanos tentaram dissuadir Cesar do divórcio, este cunhou a sua famosa frase: "À mulher de Cesar não basta ser honesta; tem de parecer honesta".

A frase, na minha opinião, ganhou registro na memória histórica em decorrência da sua aplicabilidade no ambiente político e público: ao homem público não basta ser honesto; tem de parecer honesto. Ela torna evidente a dualidade do espaço público: aquele em que os agentes tomam decisões e ações concretas e aquele da percepção pública dessa ação. Na distinção desses dois espaços é que os atores políticos exercitam a manipulação do poder, onde atuam aqueles que usam o fake news ou os factoides políticos como instrumento de manipulação política.

O dois momentos do espaço público (o ser e o parecer), quando acabam dissociados um do outro, produzem comportamentos nocivos que podem ser sintetizados na seguinte formulação: não importa ser honesto, o que importa é parecer honesto. A relevância da aparência, decorrência da limitação que temos da compreensão dos fatos (terreno fértil para a especulação e desconfiança) faz com que o ambiente público seja profundamente corrosivo e de difícil atuação, permitindo que o comportamento negacionista floresça. Negar os fatos e as evidências factuais torna-se possível já que as pessoas, em geral, são pouco atentas aos fatos e tem uma tendência a tomar posições baseadas nas aparências e, assim, acabam por sucumbir à manipulação política sem contestação.

Nessa realidade dissociativa é que podemos compreender, por exemplo, como o presidente Trump (ex-presidente daqui a dois dias) consegue mobilizar apoiadores que propagam teorias da conspiração e fraudes eleitorais sem nenhuma base na realidade, da mesma forma que soluções terapêuticas contra a Covid-19 são defendidos sem suporte científico.

A única forma de enfrentar esta situação é fazer prevalecer a experiência histórica democrática, já que o reconhecimento coletivo dos erros podem nos auxiliar a errar menos. E, mais importante, respeitar e fazer valer a realidade constitucional concreta do país, pois ela é resultante final dessa experiência histórica de uma sociedade. Os princípios constitucionais esculpidos no artigo 37 não são apenas palavras, mas a expressão de uma trajetória institucional brasileira que reconhece a importância da observância de alguns valores no comportamento do homem público e daquele que com ele se relaciona.

Se olharmos os acontecimentos recentes relacionados à aprovação e uso das vacinas para combater a epidemia da Covid-19 percebemos pelas balizas da impessoalidade, moralidade, legalidade, publicidade e eficiência o quanto o honesto de fato deu lugar ao que quer parecer honesto. A observância de tais princípios, por outro lado, podem ser verificados positivamente na recente atuação da Anvisa que tomou uma decisão baseada na análise científica da pandemia, afirmando a necessidade da aprovação emergencial da vacina pela ausência de alternativas terapêuticas (ao contrário do que foi e é propagado por diversos atores políticos). O fato é que tais balizas constitucionais não são apenas palavras, mas instrumentos de avaliação do comportamento de governos e paradigmas para as escolhas futuras dos homens públicos a serem escolhidos de forma democrática.

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