Retrospectiva 2020

Impactos da Covid-19 e da eleição nos EUA no cenário internacional — Parte 1

Autor

  • Eduardo Felipe Matias

    é sócio de Nogueira Elias Laskowski e Matias Advogados doutor em Direito Internacional pela USP duas vezes ganhador do Prêmio Jabuti com os livros "A Humanidade contra as cordas: a luta da sociedade global pela sustentabilidade" e "A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global".

18 de janeiro de 2021, 10h05

Embora este não seja um artigo narrando a história do novo coronavírus, que assolou o planeta no ano que passou, seria impossível falar de 2020 sem levar em consideração as consequências da pandemia sobre o cenário internacional.

Outro tema incontornável desse período foram as eleições presidenciais nos Estados Unidos, nem tanto pela vitória de Joe Biden, mas, principalmente, pelo fim do governo de Donald Trump, cujo negacionismo em relação à ciência, à interdependência e ao Estado de Direito se mostrou, do início ao final de seu mandato, prejudicial à saúde, à cooperação internacional e à democracia.

Esses dois acontecimentos centrais devem moldar o mundo nos próximos anos, com efeitos sobre a globalização e o comércio internacional, a geopolítica e as relações internacionais, a inovação tecnológica e o futuro das chamadas big techs, o meio ambiente e o combate às mudanças climáticas.

É o que veremos a seguir, na primeira parte dessa retrospectiva de 2020 na área internacional.

Globalização e comércio internacional
Todos os anos, tenho chamado a atenção neste espaço para uma interessante prática que alguns dicionários passaram a adotar, de procurar identificar uma palavra que tenha caracterizado o "espírito do tempo" do ano que se encerra. Em 2020, como não poderia deixar de ser, todos convergiram para termos relacionados à pandemia.

Spacca
A palavra do ano, para o dicionário Merriam-Webster, teria sido exatamente "pandemia e, para o Collins, "lockdown". Já o dicionário Oxford optou, excepcionalmente, por não apontar um único termo ou expressão, mas um conjunto deles, quase todos relacionados ao novo coronavírus.

O impacto inegável da pandemia sobre a sociedade e a economia em 2020 levou o processo de globalização a ser mais uma vez contestado.

Desde a crise de 2008, ficou claro que, sem nenhum tipo de controle, a volatilidade dos mercados pode causar prejuízos maiores do que os ganhos trazidos pelos fluxos financeiros internacionais. Com o tempo, os benefícios gerados pela globalização, que tirou parcela importante da população mundial da pobreza, começaram a se mostrar insuficientes para compensar seus efeitos negativos, como o desemprego e a desigualdade.

Essa situação, que já vinha alimentando nacionalismos de todo o tipo, se agravou com a pandemia. O fato de o vírus ter se propagado graças à intensa circulação de pessoas por meio das frequentes viagens internacionais — uma das características da globalização — estimulou discursos populistas e isolacionistas. Assim, um dos efeitos previsíveis do novo coronavírus é que os países passem a se preocupar cada vez mais em controlar suas fronteiras, para evitar novas epidemias.

Além disso, a pandemia levou a questionar outro traço conhecido da globalização, que são as cadeias mundiais de valor.

Quando o coronavírus começou a se espalhar, ficou claro que o mundo precisava contar com a China para obter artigos hospitalares como respiradores, luvas e máscaras de proteção. Ao longo do ano, os demais países procuraram desenvolver sua capacidade de produzir esses artigos localmente.

A tentativa de se reduzir a dependência do domínio mundial chinês em relação às manufaturas em geral e a alguns produtos em particular também é algo que deverá se notar nos próximos anos, reforçando a tendência, que já vinha sendo percebida, de que a divisão internacional do trabalho seja modificada, devido à eliminação de custos de mão de obra pelo aumento da automação e à consequente retomada da produção local pelos países desenvolvidos.

Ao buscarem recuperar poder sobre seu território e independência em relação a outros países, os Estados nacionais demonstram que, embora a globalização tenha vindo para ficar, a soberania é um conceito que não foi abandonado.

Não se pode esquecer, no entanto, que a globalização também contribui para o intercâmbio entre os povos de informações, equipamentos e soluções, como as vacinas, e apresenta aspectos positivos, como a cooperação internacional, que não podemos correr o risco de jogar pela janela.

Nesse sentido, é lamentável que a comunidade internacional não tenha sido capaz de tirar melhor proveito da Organização Mundial da Saúde no combate à pandemia. Um dos motivos para se contar com instituições internacionais como a OMS é permitir que os países reajam de forma coordenada a eventos sanitários de caráter global.

O que se viu, entretanto, foi o principal financiador dessa entidade anunciar que dela se retiraria, em plena crise da Covid-19. Trump comunicou em julho de 2020 que os EUA sairiam da OMS, criticando a organização por considerá-la subordinada aos interesses da China. Formalmente, o desligamento da organização se concretizaria apenas um ano depois, o que, por sorte, não deve ocorrer, uma vez que o presidente eleito, Joe Biden, havia declarado na campanha que reverteria o rompimento.

Outra organização internacional que deverá se beneficiar da vitória de Biden é a Organização Mundial do Comércio.

Trump não escondia ser contrário à OMC, tendo minado seu funcionamento, bloqueando a nomeação de novos juízes para seu órgão de apelação, o que impossibilita o julgamento de eventuais recursos das decisões dos panels, impedindo a resolução final das controvérsias e causando insegurança jurídica.

Embora os democratas em geral também critiquem a OMC e apontem que esta necessita de reformas, a postura de Biden, mais favorável ao multilateralismo, deverá trazer um novo olhar sobre essa organização — que ainda teve que lidar em 2020 com a saída antecipada de seu diretor-geral, o brasileiro Roberto Azevêdo —, permitindo ao menos destravar seu mecanismo de solução de disputas, um dos alicerces do sistema do comércio internacional.

Apesar disso, a eleição de Biden não promete trazer grandes mudanças em relação a um tema que dominou o ano de 2019, que foi a guerra comercial entre EUA e China. Afinal, afrouxar a pressão sobre a China, logo no início de seu mandato, poderia ser visto como demonstração de fraqueza. Some-se a isso o fato de que políticos democratas costumam ter viés mais protecionista, e que o programa de governo de Biden traz menção expressa à intenção de dar preferência a produtos "made in America".

O foco inicial em reorganizar seu país internamente também faz com que não seja de se esperar que Biden procure promover o reingresso imediato dos EUA na Parceria Transpacífico — rebatizada de Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica, ou CPTPP, na sigla em inglês —, tratado de livre comércio que reúne outros 11 países, do qual Trump havia se retirado em 2017.

Talvez essa seja uma posição a se repensar. O CPTPP, em sua origem, havia sido concebido em parte para tentar contrabalançar a influência da China sobre a região. E essa influência aumentou ainda mais em 2020 graças àquele que talvez seja o grande acontecimento do ano no comércio internacional: a conclusão, em novembro, da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP na sigla em inglês) entre a China e outros 14 países da região do Pacífico, formando o maior acordo comercial do mundo até agora, abrangendo um mercado de 2,2 bilhões de pessoas e 26 trilhões de dólares, um terço do PIB global.

Por outro lado, outro acordo de livre comércio de peso viveu contratempos em 2020. A conclusão das negociações que duraram 20 anos entre Mercosul e União Europeia foi uma das boas notícias de 2019. Porém, durante o ano seguinte, a iniciativa foi frequentemente posta em dúvida, inclusive pelo Parlamento Europeu, que chegou a aprovar em outubro uma resolução demandando mudanças na agenda ambiental dos países do Mercosul para que o acordo seja ratificado. Os questionamentos se baseiam, em grande parte, na capacidade do Brasil de cumprir as disposições que obrigam as partes a preservar o meio ambiente. 2020, como veremos na segunda parte desta retrospectiva, foi mais um ano em que o país deixou muito a desejar em relação a esses compromissos.

Um breve giro pelo mundo
2020 começou com ameaça de guerra, após a morte do general iraniano Qassem Soleimani, em janeiro, em ataque aéreo realizado pelos EUA no aeroporto internacional de Bagdá.

Com a morte de Soleimani, o Irã afirmou que deixaria de respeitar os termos do Acordo Nuclear com o chamado G5+1 (EUA, China, França, Grã-Bretanha, Rússia + Alemanha), do qual os EUA haviam se retirado no governo Trump.

Ao longo de 2020, as tensões não se dissiparam. Em novembro, o principal cientista do programa nuclear iraniano, Mohsen Fakhrizadeh-Mahabadi, foi assassinado nos arredores de Teerã, em uma ação atribuída a Israel. Já em janeiro deste ano, o Irã anunciou ter retomado o enriquecimento de urânio a 20% em sua instalação de Fordow, violando o Acordo Nuclear.

Se parece que as rusgas com o Irã se estenderão por 2021, no Afeganistão um acordo de paz histórico entre os EUA e o Taleban foi assinado em fevereiro, prevendo a retirada das tropas americanas e da OTAN do país em um prazo de 14 meses, para pôr fim a um conflito que durou quase 20 anos.

Outra notícia positiva foi a formalização, em setembro, dos acordos com o objetivo de normalizar as relações entre Israel, Emirados Árabes e Bahrein, intermediados pelo presidente norte-americano, Donald Trump.

Ainda no Oriente Médio, é preciso lembrar da explosão de um armazém que guardava nitrato de amônio ocorrida em agosto na cidade de Beirute, capital do Líbano, que causou enorme destruição, deixando mais de 200 mortos e seis mil feridos.

E, se 2019 havia sido marcado por diversas revoltas, em 2020 o ritmo das manifestações diminuiu, talvez por conta da pandemia. Ainda assim, assistiu-se a algumas ondas importantes de protestos.

Uma delas aconteceu na Bielorrússia, em resposta à contestada vitória de Alexander Lukashenko — no poder há 26 anos — nas eleições presidenciais ocorridas em agosto.

A outra resultou da reação à morte de George Floyd em uma abordagem policial em Minneapolis, nos EUA. Os protestos antirracistas e contra a violência policial, vinculados ao movimento Black Lives Matter, tomou as ruas de diversas cidades americanas e teve forte influência sobre a derrota de Trump.

Na America Latina, ocorreram eleições na Bolívia, em outubro, com a vitória de Luiz Arce. No mesmo mês, um plebiscito no Chile aprovou, com 78% dos votos, a elaboração de uma nova Constituição para o país. No Peru, o impeachement de Martín Vizcarra em novembro trouxe instabilidade política, e o país aguarda novas eleições, previstas para abril deste ano. Ainda em novembro de 2020, a Venezuela — que segue sofrendo as consequências do governo de Nicolas Maduro — realizou pleito para a escolha de nova Assembleia Nacional, cujos resultados foram contestados por diversos países.

Na Europa, finalmente concretizou-se o Brexit, com a assinatura, em dezembro, dos tratados que passam a regular, a partir do primeiro dia de 2021, a relação entre Reino Unido e União Europeia.

Por fim, em 2020, cresceu a certeza de que a geopolítica ganhou outra dimensão. Hoje ela também é virtual e, por isso, os países procuram assegurar mais do que nunca sua soberania tecnológica. Os EUA passaram o ano tentando barrar a expansão da empresa chinesa Huawei na telefonia móvel 5G, tecnologia essencial para impulsionar o desenvolvimento da chamada internet das coisas. E, em uma demonstração de que as guerras do futuro talvez já tenham começado e sejam muito diferentes daquelas do passado, ciberataques e eventos de ciberespionagem se reproduziram em grande quantidade em 2020.

Naquele que provavelmente tenha sido o maior deles, ocorrido em dezembro, piratas cibernéticos invadiram as redes de agências federais dos EUA como os departamentos de Tesouro e de Comércio, em uma ação atribuída aos russos. Além disso, ao longo do ano, chamaram a atenção as diversas tentativas de espionagem cibernética voltadas à apropriação de resultados de pesquisas sobre a Covid-19, incluindo aquelas sobre vacinas, envolvendo, na maioria dos casos, hackers russos e chineses.

A tecnologia — assim como alguns de seus atores privados, como as startups e as big techs, que ganharam força na pandemia — tem um peso cada vez maior na área internacional, como veremos na segunda parte desta retrospectiva, na qual trataremos, ainda, das mudanças climáticas, a outra grande crise global em nosso horizonte.

Autores

  • é sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados, Doutor em Direito Internacional pela USP, duas vezes ganhador do Prêmio Jabuti com os livros "A Humanidade contra as cordas: a luta da sociedade global pela sustentabilidade" e “A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global”.

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