Opinião

Decisão do ministro Nunes Marques sobre ficha limpa deve ter aplicação imediata

Autor

  • Milton de Moraes Terra

    é advogado especialista em Direito Eleitoral e Partidário membro titular da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP e vice-presidente do Instituto de Direito Político e Eleitoral (IDPE).

17 de janeiro de 2021, 9h17

A decisão do ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, que na ADI 6630 suspendeu uma parte da alínea "e" do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90, gerou controvérsias. Ele entende que a Lei da Ficha Limpa, ao alterar dispositivo contido nesse artigo, incorreu em inconstitucionalidade diante da detração eleitoral. Manifestações contrárias à sua decisão afirmam que a decisão esvazia a referida lei, posição especialmente declarada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) — que já foi admitido como amicus curae na mesma ação direta de inconstitucionalidade.

Ao contrário daqueles que afirmam existir uma teoria conspiratória para fragilizar a Lei da Ficha Limpa, entendo que a ADI 6630 visa a trazer segurança jurídica e aprimoramento da interpretação da Lei das Inelegibilidades porque corrige dispositivo legal que deixava em aberto o prazo de inelegibilidade daquele condenado por crime contra a economia popular, a fé pública, a Administração Pública, o patrimônio público, entre outros.

Com efeito, salve melhor juízo, a decisão foi correta, ainda que esteja submetida ao referendo do Plenário do Supremo Tribunal Federal. Vejamos a sua fundamentação:

"Todavia, a idiossincrasia da hipótese sob apreciação a mim me parece demandar uma imediata intervenção monocrática a autorizar a excepcional postergação do caríssimo Princípio da Colegialidade, expressamente previsto no caput do art. 10 da Lei 9.868/1999. Portanto, sem qualquer prejuízo de uma melhor e mais abrangente análise, pelo Plenário, do tema tão logo ultimada a instauração do contraditório, reputo cabível, por ora, o deferimento da pleiteada suspensão cautelar da norma impugnada. A probabilidade do direito invocado se evidencia pela circunstância de que a norma impugnada me parece estar a ensejar, na prática, a criação, de nova hipótese de inelegibilidade. Isso porque a ausência da previsão de detração, a que aludem as razões iniciais, faz protrair por prazo indeterminado os efeitos do dispositivo impugnado, em desprestígio ao princípio da proporcionalidade e com sério comprometimento do devido processo legal. É de se ponderar que os efeitos da norma impugnada somente vieram a ser sentidos pelos candidatos, de maneira significativa, nas eleições municipais de 2020. Por essa precisa razão, entendo que a presente decisão deve se limitar a abarcar, apenas, os processos de registro de candidatura das eleições de 2020 ainda pendentes de apreciação, inclusive no âmbito do TSE e do STF, o que mitiga o impacto sobre todo o restante do universo eleitoral. Para além disso, impedir a diplomação de candidatos legitimamente eleitos, a um só tempo, vulnera a segurança jurídica imanente ao processo eleitoral em si mesmo, bem como acarreta a indesejável precarização da representação política pertinente aos cargos em análise. O perigo da demora se mostra evidente diante da iminência da produção ― pelo dispositivo contra o qual se opõe a pecha da inconstitucionalidade ― de efeitos deletérios sobre o exercício dos mandatos dos candidatos vitoriosos no pleito eleitoral desse ano. Tais circunstâncias recrudescem a urgência na adoção do pleiteado provimento judicial, sob pena de se configurar prejuízo decorrente do retardamento de sua implementação, conforme já decidido por esta Corte em casos fronteiriços: ADI 5374 MC-AgR, Ministro Roberto Barroso; e ADI 2.333 MC, Ministro Marco Aurélio). Em face do exposto, defiro o pedido de suspensão da expressão "após o cumprimento da pena", contida na alínea ‘e’ do inciso I do art. 1º da Lei Complementar 64/1990, nos termos em que fora ela alterada pela Lei Complementar 135/2010, tão somente aos processos de registro de candidatura das eleições de 2020 ainda pendentes de apreciação, inclusive no âmbito do TSE e do STF".

Entretanto, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luis Roberto Barroso, despachando em 26 de dezembro último a medida cautelar proposta pelo candidato eleito no município de Pinhalzinho, Estado de São Paulo, que pretende a diplomação deste invocando o artigo 16 da Constituição Federal, que dispõe sobre o princípio da anualidade em matéria eleitoral, determinou o sobrestamento da tutela cautelar até o julgamento em plenário do STF da ação direta de inconstitucionalidade apresentada pelo Diretório Nacional do PDT.

Dessa forma, existem duas decisões que conflitam: a primeira do ministro Nunes Marques, que suspende parte do dispositivo legal e que deveria operar imediatamente; e a segunda do ministro Barroso, que sobresta o julgamento no TSE dos recursos em que é questionada a alínea "e" do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90.

Há ainda uma discussão a respeito da aplicabilidade de nova interpretação legal aos recursos da eleição municipal de 2020, sob o argumento que qualquer alteração deveria respeitar a anualidade.

Entendo que a decisão monocrática do ministro Kassio Nunes Marques é irretocável e sua aplicação deve ser imediata, considerando que, ao meu sentir, uma vez reconhecida a inconstitucionalidade, não seria justo aplicá-la somente na próxima eleição.

Para sustentar essa tese, sirvo-me do brilhantismo de Rodrigo Terra Cyrineu, que em artigo publicado no último dia 8 nesta ConJur leciona sobre o princípio da anualidade o seguinte:

"No âmbito eleitoral, a jurisprudência recente dos Tribunais Regionais Eleitorais vêm admitindo a retroação in bonan partem da novatio legis in mellius no campo do Direito sancionátório, como é o caso, por exemplo, do valor das multas em representações por doações eleitorais acima do limite legal. Da mesma forma se posicionam as cortes eleitorais no campo das condições de elegibilidade (requisitos para o pleno gozo do sufrágio passivo), a exemplo da sistemática da filiação partidária, tema no qual se reconhece o princípio da máxima efetividade dos direitos políticos. Ademais, decorre da própria racionalidade do discurso jurídico que os posicionamentos firmados sejam provisórios, passíveis, portanto, de alteração sempre que um melhor argumento se imponha na prática comunicativa.
O raciocínio desenvolvido no campo da edição de leis é perfeitamente aplicável aos precedentes. Se um tribunal, num primeiro momento, entende que determinada conduta possui um desvalor e, posteriormente, reconsiderada esse entendimento em prol do cidadão, há de ser aplicado o novel entendimento retroativamente, como defende, por exemplo, Alexandre Freitas Câmara especificamente quanto à eficácia temporal da superação de entendimento jurisprudencial. Nesse mesmo sentido, no âmbito do Direito Tributário, posiciona-se Misael Abreu Machado Derzi, para quem ‘tal como ocorre com o princípio da irretroatividade das leis, a retroação benigna, para favorecimento do cidadão contribuinte, nas relações de Direito Público, de modo algum é coibida pelo ordenamento.’
Já o contrário não é permitido, na medida em que o princípio da anterioriedade, irmão siamês do princípio da proteção à confiança legítima, por se tratar de uma garantia, opera em favor do cidadão e se dirige contra o Estado, e não vice-versa.
Disso resulta que sempre quando a viragem abrupta da jurisprudência — do TSE ou do STF — ampliar o âmbito de proteção de um direito político fundamental, há de ser permitida a sua aplicação imediata aos casos concretos da eleição corrente, sem que isso implique violação ao princípio da anterioriedade eleitoral".

É preciso entender que o aprimoramento da jurisprudência não fragiliza a Lei da Ficha Limpa, pelo contrário, dá segurança jurídica e legitimidade a essa lei, evitando que a ausência de prazo de inelegibilidade impeça o livre exercício de ser candidato daquele que já cumpriu sua pena e macule com a pecha de injusta uma lei que pretende tornar o Brasil mais justo.

Assim, a aplicação imediata da decisão do ministro Nunes Marques pelo Tribunal Superior Eleitoral é necessária para permitir que os candidatos abarcados pela mesma sejam diplomados e, posteriormente, assumam seus mandatos legitimamente, evitando alternâncias prejudiciais aos municípios e estabelecendo segurança jurídica para o enfrentamento de crises como a que estamos sofrendo com a pandemia da Covid-19, que precisa do pulso firme dos prefeitos para sua condução ser exitosa.

 

* O autor deste artigo é o responsável pela defesa do prefeito de Pinhalzinho, Tião Zanardi

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