Opinião

O uso da inteligência artificial na triagem e seleção de processos para conciliação

Autor

  • Guilherme Vinicius Justino Rodrigues

    é advogada mestrando em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDSP-USP) e especialista em Direito Processual Civil pela Ponticífia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

17 de janeiro de 2021, 6h34

Cada vez mais tem sido comum as empresas implantarem programas baseados em inteligência artificial dentro de sua operação jurídica, a fim de auxiliar a definição das estratégias que irão adotar enquanto litigantes.

Ao receber a citação, há duas possibilidades, e a escolha vai significar a "estratégia" para o caso, que pode ser: a autocomposição, para ao menos tentar conciliar antes do julgamento; ou a resistência, pretendendo a solução adjudicada por entender que tem razão ou porque quer formar entendimento jurisprudencial a seu favor.

A triagem depende de critérios qualitativos e, por sua vez, pode ser realizada por novas tecnologias [1]. Seu uso confere velocidade à realização de atividades tidas antes como burocráticas [2] (tais como criação de pasta para processos novos, com nome do cliente, dados pessoais, seguimento do produto reclamado, identificação de assunto repetitivo) e ajuda na identificação de palavras-chave (que podem relacionar-se a situações sensíveis como preconceito, discriminação ou outra situação nivelada em grau de importância).

Outro modelo de filtro, que serve ao propósito de seleção de "estratégia", é a árvore de decisão, que classifica perguntas e prevê o resultado a partir das respostas. Por exemplo, imagine uma seguradora, ao ser citada em processo no qual seu cliente pede indenização securitária, por causa de recusa administrativa fundada em falta de apresentação de documento, é importante à árvore de decisão conter uma pergunta específica sobre a exibição desse documento no processo e, caso a resposta seja positiva, com a juntada dele, a resposta da árvore de decisão deve conduzir à "estratégia” de conciliação.

Nessa esteira, se a ferramenta antevir o insucesso, seria escolhida a "estratégia" de acordo.

A ferramenta dotada de machine learning [3], uma inteligência artificial que aprende e realiza fluxos mais rápidos, pode ser a primeira leitora da peça inicial. Ela pode, por exemplo, realizar a triagem em relação ao assunto tratado no processo, de modo a não apenas definir a "estratégia" dele, mas também o assunto sensível do caso.

Nesse sentido, a tecnologia de inteligência artificial pode vir a ser uma grande ferramenta de auxílio para a diminuição do impacto do volume de ações, especialmente se a conciliação, indicada pela ferramenta, resolver o litígio.

Entretanto, o eventual viés da empresa anterior à implementação da ferramenta, de considerar somente impacto financeiro ou de imagem, sem levar em consideração, por outro lado, a jurisprudência ou o impacto social do volume de ações, pode ser negativo para as ferramentas eletrônicas, que conservam eventuais vieses e se influenciam na tomada de decisões. Com isso:

"Hoje, já se sabe que não é a quantidade de informações enviadas para alimentar os sistemas de IA que importa, e sim a qualidade destas, pois dados enviesados ensinarão a máquina a desempenhar suas funções também de forma enviesada, perpetuando, de forma automatizada, as desigualdades sociais, erros e outras mazelas de nossa sociedade" (Nunes, 2018).

O uso da ferramenta eletrônica para buscar palavras-chave que, por sua vez, denotam a relevância do caso e a delicadeza do assunto — apesar da massificação das disputas de consumo — serve de primeiro critério das instituições bancárias para selecionar casos para autocomposição [4].

Por outro lado, ainda que a triagem inicial dos casos com a utilização de critérios específicos resulte na indicação de defesa, isso não significa a necessidade de se esperar pela sentença [5], tampouco que a única solução do caso é pelo provimento jurisdicional. Assim, conforme as considerações de Antonio Carlos Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco:

"(…) A Justiça Estatal não é o único caminho pelo qual se procura oferecer solução aos conflitos. Como forma de autocomposição, existe também a negociação, em que as parte em conflito dirimem seus conflitos diretamente ou com intermediação de seus advogados, sem recorrer a formas mais institucionalizadas que se servem de um terceiro facilitados (conciliador ou mediador)" (Cintra, Grinover e Dinarmo, 2014, p. 32-33).

A existência de critérios para servir de filtros é uma realidade no Judiciário para encaminhar processos para seus núcleos de conciliação, como referiu-se nesta tese de doutoramento:

"Quando o encaminhamento é feito pelo juiz, o que ocorre na maioria das vezes, ele não prescinde do consentimento das partes envolvidas, mas é o juiz quem define e aplica os critérios para filtrar e selecionar os casos que vão para o setor de mediação/conciliação. Isso pode ser feito a qualquer tempo, embora em muitos programas tenha notado-se a preferência para que os encaminhamentos à mediação sejam realizados na fase inicial do processo, antes da instrução provatória, podendo ou não haver suspensão dos prazos processuais” e prosseguiu “Os critérios utilizados para triagem também podem variar, assim como quem os define" (Gabbay, 2011, p. 205-6).

Nesse contexto, é possível perceber o ganho do machine learning na atividade jurídica, especialmente: 1) na possibilidade de previsão de resultado; 2) análise de documento, de modo a encontrar tendência; 3) analisar diversas decisões judiciais para encontrar suas justificativas; e 4) encontrar, organizar e classificar documentos, aplicável, por exemplo, à fase de discovery no processo norte-americano. Esse estudo arremata:

"Using these principles, this Part suggests that there are a subset of legal tasks often performed manually today by attorneys, which are potentially partially automatable given techniques such as machine learning, provided the limitations are understood and accounted for"  (Surden, 2014, p.101).

Portanto, a inteligência artificial é aliada para contribuir com a seleção de processos para conciliação, logo no início da demanda, com impacto positivo no volume de ações.

 


Referências bibliográficas
ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. Meios Consensuais de Resolução de Disputas Repetitivas: a conciliação, a mediação e os grandes litigantes do Judiciário. Dissertação (mestrado em direito). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, p.152,153 e 160. 2014.

— CINTRA, Carlos de Araújo. DINAMARCO, Candido Rangel. GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. Ed Malheiros. 30ª edição. São Paulo. p. 32-33, 2014.

— DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol I. Ed: Malheiros, 7ª edição. P. 121, 2013.

— GABBAY, Daniela Monteiro. Mediação & Judiciário: Condições necessárias para a institucionalização dos meios autocompositivos de solução de conflitos. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo. 2011.

— GALANTER, Marc. Why the "haves" come out ahead? Speculations on the limits of legal change. Law and Society Review, v.9, n.1, p. 95-160, 1974. Republicação (com correções) em Law and Society. Dartmouth, Aldershot: Cotorrell, 1994, p. 165-230.

— GUERREIRO, Luis Fernando. Efetividade das Estipulações voltadas à Instituição dos Meios Multiportas de Solução de Litígios. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 74. 2012.

— LORENCINI, Marco Antônio Garcia Lopes. Sistema Multiportas: opções para tratamento de conflitos de forma adequada in Negociação, Mediação e Arbitragem. São Paulo. Coordenação: Carlos Alberto de Salles, Marco Antônio Garcia Lopes e Paulo Eduardo Alves da Silva. Ed: Método, 2012.

— MACHADO, Maíra Rocha. O estudo do caso na pesquisa em direito. In: Pesquisar Empiricamente o Direito. São Paulo: Rede de estudos empíricos em Direito, p.384, 2017.

— MARQUES, Ricardo Dalmaso. Inteligência artificial e direito: o uso da tecnologia na gestão do processo no sistema brasileiro de precedentes. Revista de Direito e as Novas Tecnologias. vol. 3/2019. Abr/Jun. DTR-2019-35395. 2019.

— NUNES, Dierle. Marques, Ana Luiza Pinto Coelho. Inteligência artificial e Direito processual: vieses algorítmicos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. Revista de Processo. Vol. 285/2018, p. 421-447.2018.

— SURDEN, Harry. Machine learning and law, Whashington Law Review, v. 87-115.2014.

— WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: YARSHELL, Flávio Luiz; ZANOIDE, Maurício de Moraes (coord.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover, p. 690. São Paulo: DPJ, 2005.

— WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. In: Cesar Peluso, e Morgana de Almeida Richa (orgs.). Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional. Rio de Janeiro: Forense, p. 4-5. 2011.


[1] Relevante pesquisa sobre a inteligência artificial e direito apontou sobre o sucesso do projeto "Victor" no STF: "Na fase inicial do projeto, a ferramenta passou a ser utilizada para (i) converter imagens em textos no processo digital (já que muitas petições ainda são apresentadas em formato de imagem); (ii) separar cada documento que consta dos autos (peça, decisão, acórdão etc.); (iii) separar e classificar as peças processuais mais comuns na prática do STF; e (iv) identificar os temas de repercussão geral de maior incidência44. A triagem dos processos – uma das principais, senão a principal função do Victor nesse momento inicial – para fins de identificação de temas de repercussão geral (e a consequente admissão ou não de recursos) foi indicada como de precisão de 84%, e que poderia chegar a 95% em semanas" (MARQUES, 2019, p. 8).

[2] Vale referir a pesquisa de Dierle Nunes: "Nos Estados Unidos, sistemas de inteligência artificial, como o Ross e o Watson, são utilizados por escritórios advocatícios para realizar pesquisas jurídicas, analisar documentos, redigir contratos e prever resultados [..]". "Sistemas de inteligência artificial também são utilizados por escritórios para a análise de tendência de juízes ao julgar determinados temas[…]" (NUNES, 2018, p. 421-447).

[3] "O aprendizado de máquinas (machine learning) é um dos principais exemplos dessas novas capacidades; considerado um braço da inteligência artificial, ele pode ser utilizado para, por meio de algoritmos, possibilitar que programas de computador possam "aprender" com suas experiências prévias e, assim, melhorar gradativamente sua performance" (MARQUES, 2019, p. 4).

[4] O magistério do Professor Kazuo Watanabe, ao analisar a lei de mediação, reforça o prestígio que se deve os meios alternativos de solução de conflitos. Assim: "é prioritária a busca da ‘pacificação das partes, ao invés da solução adjudicada do conflito’, reputando-se como ‘de relevante valor social" (WATANABE, 2005).

[5] Ainda que se tenha provocado, o Estado-Juiz, ainda assim é possível e recomendável conciliar: "é possível pensar que uma pessoa, uma vez procurado a porta do Poder Judiciário, se depare com um leque de opções em que a solução sentença judicial passa a ser uma das opções (leia-se, uma das portas)" (LORENCINI, 2012).

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