Opinião

O Brexit e os seus impactos na proteção dos direitos intelectuais

Autor

  • Anita Mattes

    é doutora pela Université Paris-Saclay mestre pela Université Panthéon-Sorbone professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

17 de janeiro de 2021, 18h15

Durante a última semana, dois cidadãos britânicos chegando à Europa continental foram surpreendidos pelo confisco de seus sanduíches de presunto e sardinha em conserva. "Vocês têm carne em seus sanduíches? Sim? Então temos de apreender tudo. Bem-vindos ao Brexit, senhores" [1], disse o funcionário da alfândega aos turistas no Porto de Hook, na Holanda.

Essas regras rígidas sobre a importação de carnes, frutas, verduras e peixes são algumas das consequências práticas da nova realidade Brexit — de "british" (britânico) e "exit" (saída). Uma batalha que durou quatro anos e meio, iniciando com a escolha dos cidadãos britânicos pela saída definitiva da União Europeia (UE), mediante a realização de um referendo em 23 de junho de 2016, nos termos do direito disposto no artigo 50 do Tratado da União Europeia [2].

Pouco antes do término do período de transição, em 31 de dezembro de 2020, um novo acordo de comércio e cooperação foi firmado — o EU-UK Trade and Cooperation Agreement [3]. Isso significa que, desde 1° de janeiro deste ano, novas regras são aplicáveis às relações entre o Reino Unido e a União Europeia, acarretando mudanças significativas, que deverão ser observadas por todos os operadores desse mercado, inclusive as empresas brasileiras.

O acordo abrange não somente o comércio de bens e serviços, mas também um vasto leque de outras áreas de interesse dos Estados, como investimento, concorrência, auxílios estatais, tributos, transporte aéreo e rodoviário, energia e sustentabilidade, pesca, proteção de dados e coordenação da segurança social.

Entre essas medidas, a proteção dos direitos de propriedade intelectual — isto é, marcas, patentes, designs, direitos autorais e outros — merece atenção especial, tendo em vista que, desde o primeiro dia deste ano, nem todos os direitos que são protegidos dentro do conglomerado europeu continuam a sê-lo no Reino Unido.

Em termos gerais, o acordo de saída [4] (artigo 54), aprovado em 2019 e em vigor desde 2020, dispõe que, mesmo após o período de transição, os direitos de propriedade intelectual já registrados ou concedidos pelo Escritório Europeu continuam válidos no Reino Unido. Realmente, no tocante às patentes europeias legalmente concedidas pelo EPO (European Patent Office  Escritório Europeu de Pantentes), órgão não vinculado à União Europeia, continuam válidas no Reino Unido após 1º de janeiro de 2021.

Portanto, nenhuma ação é necessária. Da mesma forma, a proteção de certificados de variedades vegetais (cultivares) não deve ser afetada, uma vez que o Reino Unido é membro da UPOV (International Union for the Protection of New Varieties of Plants  União Nacional de Proteção de novas Variedades de Plantas).

Por outro lado, as marcas sofrerão um grande impacto. Aquelas registradas depois de 1° de janeiro de 2021 na União Europeia não serão mais automaticamente protegidas no território do Reino Unido. Nesse caso, o titular de uma marca que visa à proteção em ambos os territórios deverá solicitar dois registros diferentes: um no Escritório Europeu de Propriedade Intelectual (European Union Intellectual Property Office — EUIPO) e outro no Escritório de Propriedade Intelectual do Reino Unido (Intellectual Property Office — UKIPO).

Em relação às marcas já depositadas ou registradas no EUIPO antes de 1º de janeiro de 2021, surgirão duas circunstâncias distintas: 1) o titular de uma marca registrada regularmente na União Europeia torna-se titular também do registro da mesma marca, "clonada" no Reino Unido, gratuitamente, constituída pelo mesmo sinal, para os mesmos produtos ou serviços e com a mesma data de depósito da marca original na UE; se, contudo, 2) a marca ainda estivesse em processo de registro em 31 de dezembro de 2020, ou seja, entre a fase de exame e a fase de oposição, ela não será importada ("clonada") para o UKIPO. Caso o titular queira manter seus direitos no Reino Unido, um novo pedido de marca registrada no UKIPO deverá ser realizado no período de nove meses a contar do dia 1° de janeiro de 2021, exatamente para a mesma marca, com a mesma especificação de produtos e serviços contidos no pedido realizado perante o EUIPO.

Por fim, restam as consequências do Brexit no tocante ao direito do autor. A título preliminar, deve-se notar que, apesar das diferenças fundamentais entre o direito autoral continental e o copyright insular, esses direitos são regidos por leis nacionais e tratados internacionais que são independentes do sistema da União Europeia. Ademais, deve ser ressaltado que nos últimos anos a legislação britânica adaptou-se a inúmeras diretivas e decisões europeias. Portanto, com a sua saída da União Europeia, parece possível que o Reino Unido se reaproprie de certos textos ou conceitos e descarte outros, realizando, assim, sua própria visão desse direito.

O Brexit pode, assim, parecer até interessante e desafiador aos estudiosos do Direito Autoral. Contudo, causará um impacto relevante no dia a dia dos operadores do Direito e dos seus titulares, principalmente no tocante a sua gestão. Licenças e acordos de uso desses direitos, por exemplo, que foram realizados no contexto de um território unitário europeu que incluía o Reino Unido, devem, portanto, ser revistos e adaptados a fim de garantir que estejam em conformidade com a nova situação e com os desejos das partes no que diz respeito ao uso de direitos, pagamentos, resolução de litígios e outros pontos.

Até o presente momento, nenhum Estado-membro havia se retirado da União Europeia. O Brexit é, portanto, uma situação nova, que carece de referências, mas que criará importantes precedentes e, espera-se, visando a um acordo de divórcio razoável para todos seus cidadãos, empresas e operadores de seus mercados.

 


[1] Paesi Bassi, i doganieri sequestrano panini al prosciutto ai cittadini britannici: "Benvenuti nella Brexit", Jornal La Reppublica, 12 de janeiro 2021.Documento disponível no link.

[2] Artigo 50 do Tratado da União Europeia: "Qualquer Estado-Membro pode decidir, em conformidade com as respectivas normas constitucionais, retirar-se da União", documento disponível no link.

[3] Link

[4] Acordo de saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia (2019/C 384 I/01), documento disponível aqui.

Autores

  • Brave

    é advogada na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, Cultore della materia na Università Bicocca em Milão, doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbonne, pesquisadora do Centre d’Étude et de Recherche en Droit de l’Immatériel (CERDI/Saclay) e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais.

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