Opinião

Era uma vez no Direito Tributário brasileiro... Parte 1

Autores

  • Diogo Ferraz

    é doutor em Direito Tributário pela Universitat de Barcelona mestre em Direito Público pela UERJ coordenador do Projeto Jurisprudência Tributária (PJT) e sócio de FreitasLeite Advogados.

  • Rafael Alves dos Santos

    é coordenador do Projeto Jurisprudência Tributária (PJT) professor do IBMEC e sócio do Abreu Goulart Santos Freitas & Megozzi Advogados.

16 de janeiro de 2021, 7h12

Todos certamente conhecem o meme que traz a frase "2020 será um ano de muita luz" acompanhada da imagem de uma luminosa explosão nuclear. Além de ser um divertido exemplo do sarcasmo que nós, brasileiros, usamos como escudo frente às tragédias da nossa realidade, trata-se da perfeita representação do que 2020 significou para o Direito Tributário, especialmente para os direitos e garantias dos contribuintes, no âmbito dos julgamentos do STF.

Muito já se escreveu sobre as inconsistências [1] e sobre as guinadas, qualitativas e quantitativas [2], da jurisprudência tributária construída pelo STF em 2020. Por isso, aqui pretendemos fazer algo diverso: especular sobre o desenho que o Direito Tributário brasileiro teria caso ao menos algumas dessas decisões tivessem sido diferentes.

Um exercício de fantasia, sim, mas que serve a dois propósitos: primeiro, o de evidenciar o tamanho do problema, isto é, a distância entre onde estamos e onde poderíamos estar, pois só conhecendo a magnitude do desafio é que podemos agir à altura; segundo, o de plantar alguma esperança para os anos vindouros, ao mostrar que bastam alguns overrulings (algo aparentemente normal para o STF) para que tenhamos um mundo tributário muito, muito melhor.

Imagine uma Constituição com força normativa
Comecemos pela suprema MOAB (mother of all bombs), que certamente é o RE nº 603.624, em que discutida a validade da obscura contribuição ao Sebrae após a EC nº 33/2001.

Apenas para que fiquemos todos na mesma página, a controvérsia girava em torno do caráter taxativo ou exemplificativo de uma norma de competência tributária (artigo 149 da CF/88), que prevê que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico podem ter alíquotas 1) ad valorem, "tendo por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro"; ou 2) específica, "tendo por base a unidade de medida adotada".

Afastando-se da melhor interpretação lógica e gramatical, o STF concluiu pelo caráter exemplificativo, o que significa, na prática, uma norma de competência tributária em branco, que concede poder ao Estado, mas não o delimita. A CF/88 volta a ser uma carta política desprovida de força normativa, que oferece sugestões sem caráter vinculante ao legislador. Parece 1214, mas era 2020.

E se fosse o contrário? E se a Suprema Corte tivesse mantido a força normativa da Constituição e estabelecido, como fez tantas outras vezes, que o poder tributário está limitado pelas normas de competência? Acreditamos que pelo menos [3] três consequências sistemicamente relevantes surgiriam em um cenário como esse.

Primeiro, teríamos uma Constituição levada a sério, cujas normas — jurídicas e impositivas — de competência tributária cumpririam a sua função mais básica, que é a de impor limites ao Estado (e não só conferir poderes), em proteção ao contribuinte. No caso, isso significaria concretizar a decisão constitucional de reduzir a pulverização das bases imponíveis das contribuições e a sobreposição de exações sobre a folha de pagamentos. Em um Estado democrático de Direito, qual é o sentido de uma Constituição anêmica, que não exige observância à vontade coletiva, e de um poder tributário sem amarras?

Segundo, teríamos efetividade nas iniciativas do constituinte derivado. Afinal, por que a EC nº 33/2001 teria elencado expressamente as bases de cálculo das contribuições, se o legislador pudesse ignorá-las, escolhendo qualquer outra que melhor lhe conviesse? Bastaria manter tudo como já estava (um âmbito de atuação quase infinito), sem necessidade de aprovar uma emenda constitucional para mudar a matriz constitucional das contribuições. Uma mudança, aliás, que poderia ressignificar o nosso federalismo manco, diminuindo a possibilidade de a União distorcer a alocação de receitas tributárias pelo uso desenfreado e desconexo das contribuições, cujo produto notoriamente não é dividido com Estados e municípios. Qual é o sentido de uma mudança que nada muda?

Terceiro, teríamos uma Corte Constitucional comprometida com — e honesta em relação aos — seus precedentes. A força normativa do rol taxativo do artigo 149 da CF/88 já havia sido reconhecida pelo STF no RE nº 559.937, que julgou inconstitucional uma parte da base de cálculo do PIS/Cofins-Importação somente porque, primeiro, fixou a premissa decisória de que a competência da União estava circunscrita (esta foi a expressão utilizada pelo tribunal) às bases de cálculo elencadas no dispositivo constitucional. Todavia, malabarismos argumentativos transformaram o fundamento determinante daquele precedente (a taxatividade) em um suposto obiter dictum.

Pode-se, corajosamente, mudar de ideia, com o respectivo ônus de justificação, tal como determina, inclusive, o artigo 927, §4º, do CPC. Não se pode, porém, obscuramente, desdizer o que foi dito sem prestar contas à sociedade.

De acordo com o ministro Luiz Fux [4], a jurisprudência tem de ser estável, sem ser casuística. Se um tribunal não respeita seus próprios precedentes, ele passa a ser desacreditado pela sociedade.

Imagine levar a sério o fundamento que legitimou uma Contribuição
Ainda no tema de "como levar a Constituição a sério", surge o RE nº 878.313, que tratava da subsistência da contribuição do artigo 1º da LC nº 110/2001, após o incontroverso [5] exaurimento da finalidade que justificou a sua criação (o custeio da recomposição dos saldos de FGTS dos trabalhadores com os valores dos chamados "expurgos inflacionários").

O STF confirmou a validade da contribuição. Apesar de reconhecer que "a causa de sua instituição" foi o específico custeio acima referido, o tribunal entendeu que "o propósito da contribuição (…) não se confunde com os motivos determinantes de sua instituição". Por isso, concluiu que as receitas dessa exação "poderão ser parcialmente destinadas a fins diversos, desde que igualmente voltados à preservação dos direitos inerentes ao FGTS, ainda que indiretamente".

Uma decisão diferente teria, no mínimo, duas consequências sistemicamente importantes: uma que certamente será chamada, pejorativamente, de positivista, mas que confere alguma racionalidade à organização do próprio sistema tributário; outra com o potencial de redesenhar, em certa medida, a relação entre representantes e representados, entre legislador e cidadão.

A primeira reside na atribuição de efeitos concretos à parte do artigo 149 da CF/88 que vincula as contribuições ali previstas (entre elas, as contribuições sociais gerais, como a do artigo 1º da LC nº 110/2001) à finalidade de servir como "instrumento da sua (da União) atuação nas respectivas áreas", a revelar que o traço distintivo dessa espécie tributária é a sua "vinculação a uma finalidade ideal, com grau de abstração maior, em determinada área (social, econômica ou profissional)" [6].

Nesse sentido, se a vinculação a uma finalidade tem a força de distinguir as "contribuições" das demais espécies tributárias, seria natural que ela fosse levada a sério, não só para definir todos os elementos desse tributo (sujeito passivo, fato gerador, base de cálculo e destinação que será dada ao produto da sua arrecadação), como para condicionar a sua própria legitimidade. Permitir a posterior alteração da finalidade de uma contribuição, sem o devido processo legislativo, é tornar essa finalidade um elemento acessório, irrelevante, o que vai de encontro à matriz constitucional dessa espécie tributária.

A segunda consequência, talvez mais importante, seria uma repressão à insinceridade legislativa [7] que torna cada vez maior o vácuo de representação entre a política e a sociedade. Embora esse possa ser um problema originalmente político, o Direito não deve contribuir ao seu agravamento; ao revés, sempre que possível, deve ser utilizado como ferramenta para a supressão ou mitigação desse problema.

Nesse contexto, deve-se ter em mente que, nas contribuições, a finalidade é a sua base de legitimação política e jurídica. É a decisão política de utilizar esse tributo para auxiliar o alcance de determinado fim que impulsiona a criação desse tipo de exação, que legitima o consentimento da sociedade (pelos meios democráticos) [8] àquela imposição e que lhe atribui juridicidade. Ao "propor" uma contribuição, o Estado "apresenta" à sociedade um instrumento destinado ao cumprimento de uma específica finalidade. Logo, a aprovação desse tributo significa que a sociedade consentiu a suportar a incidência tributária por considerá-la necessária ao cumprimento daquela concreta finalidade, não de outra.

Desse modo, conferir real efetividade à finalidade apresentada pelo legislador como justificativa para a introdução de uma contribuição significaria fazer o legislador cumprir a sua própria palavra. E cumprir a própria palavra certamente é o primeiro passo para que se estabeleça uma relação de confiança, algo absolutamente essencial para que o vínculo entre representantes e representados deixe de ser meramente formal e passe a ser substancial. Afinal, tal como preconiza o artigo 1º, parágrafo único, da CF/88, "todo poder emana do povo (…)".

Conclusão
Podemos ver que resultados diferentes em apenas dois casos julgados pelo STF em 2020 poderiam ter consequências que beneficiariam estruturalmente não só o Direito Tributário brasileiro, mas o próprio Estado democrático de Direito.

A título exemplificativo, teríamos: 1) a confirmação da força normativa da Constituição, com normas de competência tributária rígidas, que concedem e limitam o poder do Estado, o que, no caso, levaria à substancial redução na sobreposição de contribuições que incidem sobre uma mesma base econômica; 2) o prestígio ao constituinte derivado, cujas mudanças seriam dotadas de efetividade e poderiam aprimorar algo tão importante quanto o precário federalismo brasileiro, ao limitar a possibilidade de a União aprofundar a concentração da sua arrecadação em tributos que não são compartilhados com outros entes federativos; 3) a solidez do nosso ainda incipiente sistema de precedentes, com uma Corte Constitucional que ao menos levasse seus próprios precedentes a sério, reconhecendo-os e considerando-os ao tomar decisões sobre as mesmas questões jurídicas; 4) até mesmo uma mudança de paradigma na relação entre legislador e cidadãos, impondo àquele uma postura de sinceridade e compromisso que só poderia levar a uma maior confiança, a um maior consentimento e, consequentemente, a um melhor ambiente político, democrático e jurídico no país.

 


[1] Como na trilogia "STF, Plenário Virtual e a Matrix", publicada no portal Jota.

[2] Vejam o brilhante texto de Fábio Fraga e Lucas Henrici Marques de Lima, "12 anos em 1: o plenário virtual do STF e o furacão de precedentes tributários", publicado no portal Jota.

[3] Podemos falar de inúmeras outras, como a confirmação da supremacia das normas constitucionais, a exigir que uma Emenda Constitucional implique a revogação da legislação anterior que lhe é incompatível, conforme reiteradamente decidido pelo próprio STF; ou mesmo uma correção de rumos no consequencialismo que claramente norteou a decisão da Corte nesse caso, que, paradoxalmente, a pretexto de proteger o mercado de trabalho em tempos de crise, validou, a fórceps, uma tributação que recai sobre a folha de pagamentos (ou seja, que grava o emprego).

[5] É público e notório o documento da Caixa Econômica Federal, citado pelo próprio STF, que reconhece que os pagamentos dos acordos em tela se encerraram em 2012 (Ofício nº 0038/2012/SUFUG/GEPAS).

[6] ÁVILA, Humberto Bergmann. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 259.

[7] Para uma abordagem mais profunda do tema em relação aos tributos extrafiscais, vide FERRAZ, Diogo. "Tributação Extrafiscal no Mercado Financeiro: breves notas sobre suas possibilidades e limites jurídicos". In: ABRAHAM, Marcus et. Al. (coord). Estudos em Homenagem ao Professor José Marcos Domingues. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[8] Para um profundo estudo a respeito do vínculo entre procedimentos democráticos (especialmente o legislativo) e o consentimento, veja-se FILIPPO, Luciano Gomes. Consentimento ao Imposto e Eficiência Tributária. Curitiba: Juruá, 2012.

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