Opinião

Bloqueio permanente do Twitter, a pena capital no mundo digital

Autores

  • Marcelo Schenk Duque

    é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg Alemanha professor do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UFRGS pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA) professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional professor de diversos cursos de pós-graduação lato sensu da UFRGS PUC/RS FESDEPRS FMP dentre outros professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS e membro da Associação Luso-Alemã de Juristas.

  • Graziela Harff

    é professora Universitária na ULBRA/RS advogada especializada em liberdade de expressão mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

17 de janeiro de 2021, 16h14

A invasão do Capitólio, sede do Congresso norte-americano, por apoiadores do governo Trump deixou o mundo — ao menos em sua parcela democrática — perplexo. As imagens são por si só estarrecedoras, ainda mais pelo fato ter ocorrido em uma das mais bem consolidadas democracias, com instituições fortes. Os fatos foram amplamente divulgados e dispensam maior detalhamento, de modo que podemos centrar a análise no ponto eleito para o debate: o banimento permanente da conta do presidente Trump no Twitter, por iniciativa da big tech, é uma medida proporcional? Para tentar responder essa questão há de se perceber que a medida em análise levanta diversas questões, concernentes tanto ao Direito Privado quanto ao Direito Constitucional. Quem pretende analisar a essência do problema irá inegavelmente perceber que se trata de um tema com elevado grau de complexidade e que, portanto, não admite uma resposta simples. Vamos aos fatos.

A rede social justificou o ato (bloqueio permanente da conta do Twitter) sob o argumento de que, após uma minuciosa análise das últimas postagens do presidente, havia uma glorificação da violência, o que violaria a política da empresa [1]. Sob o aspecto do Direito Privado, se poderia argumentar que quando se ingressa na rede social, celebra-se um contrato de adesão, que deve ser respeitado, mormente no que diz respeito à observância das políticas do Twitter, em que a medida de bloqueio seria uma prerrogativa dos seus administradores. Contudo, tal perspectiva está longe de esgotar o debate, ainda que se reconheça que o presidente Trump tenha utilizado sua rede com a finalidade de desinformação, incitação à violência e espírito antidemocrático. Alguns aspectos dão conta disso.

O primeiro se refere à figura presidencial que, como se sabe, por força do sistema de governo norte-americano, cumula as funções de chefia de Estado e de governo. Em particular, no exercício da chefia de governo é comum que nas democracias militantes se verifiquem manifestações polêmicas, de mau gosto e, em certos contextos, em limites muito tênues com aquilo que se considera irrazoável. Na prática, o juízo de reprovabilidade jurídica dos discursos dos chefes do Executivo deve ser analisado com cautela, pois encerram opiniões incisivas e contundentes, as quais permeiam o processo político e lhe são atinentes.

É claro que essa perspectiva não pode servir de justificação para que discursos de ódio e aqueles que visem à desinformação sejam proferidos. O fato é que a medida adotada pelo Twitter acabou por banir não apenas os discursos que continham desinformação ou pudessem incitar à violência, mas, igualmente, todos aqueles que se encontram dentro do âmbito de proteção da liberdade de expressão e da discricionariedade política do chefe de governo. Por exemplo, postagens que vinculam a defesa de agendas de governo e anúncios oficiais em geral. Em outras palavras, o banimento do Twitter, em caráter permanente, equivale a uma espécie de pena capital: a exclusão do mundo digital por parte de um presidente eleito.

Essa questão desperta um ponto sensível: a partir do instante em que chefes de governo empregam o Twitter para postagens que divulgam informações governamentais, a conta deixa de possuir aspecto eminentemente privado e passa a deter, igualmente, caráter institucional, o que atrai a análise, como já adiantado, para o campo do Direito Público, em particular o Constitucional. Prova disto é que, em julgado recente [2], a Justiça norte-americana entendeu que o presidente havia praticado uma discriminação por ponto de vista (viewpoint discrimination) ao bloquear alguns usuários da sua conta do Twitter, após postarem comentários que desagradaram ao presidente.

Isso porque, ainda que a conta no Twitter fosse teoricamente particular, era notório que existiam postagens recorrentes de conteúdo oficial, referentes ao mandato, de modo que a conta havia se convertido em um fórum público. Como tal, o governo não poderia simplesmente banir opiniões com base em um ponto de vista, sob pena de violação à 1ª emenda, em particular à liberdade de expressão, muito cara à cultura norte-americana. De fato, a corte destacou que um dos significados da liberdade de expressão é mais discurso, e não menos, em face de opiniões das quais se discorda. Portanto, o caráter institucional da conta permite a indagação sobre a viabilidade jurídica de um banimento de natureza permanente, já que a conta estava abrangida pela doutrina do fórum público, tal como ruas e praças, ou seja, não sendo uma mera conta privada.

Se, como expressou a decisão acima referida, o remédio para uma má ideia é outra — e de preferência boa — ideia, ou seja, mais discurso (counterspeech), como compatibilizar a decisão tomada pelo Twitter com esta noção? A indagação segue a lógica da doutrina da 1ª emenda, de que ideias combatem ideias, sem a intervenção governamental. Em Abrams v. United States (1919), o justice Oliver Wendell Holmes, em famoso voto dissidente na Suprema Corte, formulou a noção de livre mercado de ideias (marketplace of ideas), segundo a qual todas as opiniões devem circular no mercado, sem que se possa falar em censura. Essa noção continua ainda vigente nos Estados Unidos e é considerada um dos pilares da liberdade de expressão, ainda que exceções pontuais sejam reconhecidas pela Suprema Corte.

A incompatibilidade do bloqueio permanente com o caráter institucional da conta e a lesão imposta ao livre mercado de ideias não são os únicos aspectos problemáticos da medida. Igualmente preocupante é a interferência que ela pode acarretar na corrida eleitoral, vale dizer, a possibilidade de o Twitter influenciar o processo político. Vários fatores contribuem para demonstrar esta realidade. Como é sabido, não é exagero falar que Trump construiu sua carreia política em grande parte por força de suas postagens no Twitter. Gostemos ou não, soube utilizar a rede social em seu favor, conquistando um número invejável de seguidores. À medida que ficar privado de utilizar a rede, enquanto seus adversários políticos permanecerem tuitando para conquistar eleitores, fica evidente a ocorrência de um desequilíbrio na disputa eleitoral e do discurso político como um todo. E mais do que isso: um desequilíbrio gerado por uma empresa privada.

Esse ponto descortina outro, que consideramos o aspecto mais sensível da controvérsia: em que medida deve-se tolerar um poder de tal magnitude para as chamadas big techs? Essa é a discussão que, cada vez mais, vai ocupar os nossos esforços. Não podemos ser ingênuos ao ponto de desconsiderar que essas gigantes da comunicação, como quaisquer outras corporações privadas, possuem notórios interesses econômicos. Imaginemos a hipótese de medidas de banimento das redes virem a ser tomadas contra políticos que defendem projetos que vão de encontro aos referidos interesses econômicos, como, por exemplo, instituição de tributação de serviços digitais, regulação de conteúdos etc.

Há quem sustente, inclusive, que a medida de banimento em questão teria sido um agrado ao presidente eleito Biden, que, como se sabe, é um notório defensor da necessidade de regulação das redes sociais [3]. Será que estamos falando de uma mensagem do tipo "não necessitamos de regulação, pois nós mesmos somos capazes de banir os radicais das nossas redes"? Oferecer a cabeça do inimigo seria uma estratégia? Vale ressaltar que o próprio CEO do Twitter, Jack Dorsey, afirmou que o banimento do presidente, mesmo sendo uma decisão acertada, abre um precedente perigoso, em virtude do poder de uma empresa privada sobre o discurso público em nível global [4]. Essa confirmação do CEO do Twitter também reforça a preocupação com o domínio existente sobre a liberdade de expressão e o silenciamento que é promovido pelas redes sociais.

O que se deve perceber, independentemente da inclinação ideológica de cada um, é que se hoje toleramos o banimento definitivo das redes dos nossos adversários políticos, porque isso nos favorece politicamente, o que impedirá de, no futuro, nós mesmos sermos banidos, pelo fato de o nosso discurso não se alinhar aos interesses das big techs? Esse é o ponto que, como grande parte do iceberg, permanece submerso à visão comum, que, de maneira mais simplista, acaba somente olhando para os impropérios do banido. Não é por menos que a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, notoriamente conhecida pela oposição às políticas de Trump e pelo equilíbrio de suas manifestações, ponderou publicamente que o bloqueio permanente da conta constitui medida "problemática" [5].

A censura privada da liberdade de expressão, quando motivada por interesses políticos ou econômicos, pode nos levar a caminhos perigosos. É inegável que as redes sociais não podem servir ao fomento de atos de violência ou à disseminação de discurso de ódio. Isso decorre da constatação elementar de que a liberdade de expressão, como qualquer direito fundamental, não é absoluta, não podendo ser utilizada para a prática de condutas ilícitas. Todavia, restrições a bens constitucionais com altíssimo grau de impacto na vida digital de um político — como o banimento definitivo do Twitter — devem ser promovidas em conformidade com a estrutura definida pelo legislador, no marco da Constituição, sujeita à apreciação pelo Poder Judiciário, e não meramente ao livre arbítrio dos que administram as redes sociais. Ainda, a partir do momento em que decisões unilaterais como essa são tomadas, há também o risco de incoerências surgirem a cada momento, considerando o elevado número de políticos oportunistas, ditadores de plantão e populistas de todos matizes ideológicos, que permanecem livres, leves e soltos nas redes sociais mundo afora.

Por fim, outro aspecto a ser considerado na problemática: o banimento do Twitter gera o risco de os seguidores de Trump migrarem para outras plataformas, cujos meios de controle são escassos ou inexistentes, potencializando o risco de aumentar o radicalismo, difusão de teorias conspiratórias etc. Não se pode descartar, inclusive, que Trump tenha recursos para fundar sua própria rede social, hipótese em que o controle sobre o conteúdo de suas postagens ficará muito mais difícil, sem as regras da comunidade de Facebook e Twitter, por exemplo. Essas regras, atualmente, formam uma rede protetora para os discursos virulentos e que versam sobre desinformação. A questão é que as exceções à 1ª emenda, como a ação ilegal iminente, formulada em Brandenburg v. Ohio (1969), ou seja, aquela concreta e próxima, dificilmente são aplicáveis ao meio digital, pois os danos do discurso de ódio podem se desenvolver em algum momento no futuro [6]. Sob essa ótica, o banimento definitivo poderia ser considerado medida contraproducente, já que não traria as vantagens que dele se esperam.

De todo exposto, cientes de que o tema é muito complexo e que permite visões diversas das aqui sustentadas, pensamos que a medida de banimento definitivo do Twitter representa uma espécie de pena capital no mundo digital e, como tal, é marcada por exagero. À luz da teoria constitucional, que analisa a legitimidade das restrições impostas aos direitos fundamentais, pode até ser considerada uma medida adequada ao fim que se destina, mas não necessária, tampouco proporcional em sentido estrito. Isso porque há uma medida alternativa, menos lesiva, que seria a postagem de advertências, pelos administradores da rede, no que diz respeito à comprovação de desinformação ou até mesmo a exclusão de determinadas postagens, em situações extremas. Ambas se afirmam como estratégias mais plausíveis que o banimento definitivo, que, como dito, pode se tornar arbitrário e, eventualmente, voltar-se contra qualquer pessoa, ao simples sabor dos ventos.

 


[1] Disponível em: https://edition.cnn.com/2021/01/08/tech/trump-twitter-ban/index.html. Acesso em 14 de janeiro de 2021.

[2] ESTADOS UNIDOS. Segundo Circuito de Cortes de Apelação dos Estados Unidos. Knight First Amendment Inst. at Columbia Univ. v. Trump – 928 F.3d 226. Decisão disponível em: https://www.ca2.uscourts.gov/decisions/isysquery/f407cd48-fe32-42cd-931a-031a41da25e7/107/doc/18-1691_opn.pdf#xml=https://www.ca2.uscourts.gov/decisions/isysquery/f407cd48-fe32-42cd-931a-031a41da25e7/107/hilite/. Acesso em 14 de janeiro de 2021.

[3] Disponível em https://www.bbc.com/news/technology-55571291 Acesso em 14 de janeiro de 2021.

[6] HELDT, Amélie. Trump’s very own platform? Two scenarios and their legal implications. Disponível em: https://www.juwiss.de/03-2021/. Acesso em 14 de janeiro de 2021.

Autores

  • é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed, Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha, professor do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UFRGS, pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA), professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional, professor de diversos cursos de pós-graduação lato sensu da UFRGS, PUC/RS, FESDEPRS, FMP, dentre outros, professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre, professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS e membro da Associação Luso-Alemã de Juristas.

  • é professora Universitária na ULBRA/RS, advogada especializada em liberdade de expressão, mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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