Opinião

O atípico lançamento tributário de IPTU no município do Rio de Janeiro

Autor

  • Paula Stemberg

    é mestra em Direito do Estado pela UFPR advogada professora universitária licenciada e conselheira na Junta de Recursos Administrativos-Tributários da Prefeitura Municipal de Curitiba (PR).

16 de janeiro de 2021, 6h34

"— Janeiro!
— 
(Re)Matrícula, IPVA, IPTU!".

Não há como não associar essas responsabilidades pecuniárias ao primeiro mês de cada ano. Hoje nos ateremos a uma delas: o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).

Em 1º de janeiro 2021, o Decreto 48.378, promulgado pelo recém-eleito prefeito do município do Rio de Janeiro, anunciou que será outra a modalidade de lançamento tributário do IPTU a ser utilizada na localidade a partir deste ano.

De acordo com o decreto, os contribuintes do IPTU no Rio de Janeiro deverão apresentar até o último dia útil do mês de junho de cada ano (a partir deste ano de 2021) a Declaração Anual de Dados Cadastrais (DeCAD), por meio eletrônico, no formulário próprio que será disponibilizado pelo município.

Os contribuintes deverão prestar as seguintes informações por meio do referido formulário: "I – número da inscrição imobiliária no cadastro municipal; II – endereço do imóvel; III – nome e CPF/CNPJ do contribuinte, bem como o tipo de seu vínculo jurídico com o imóvel; IV – exercício a que se referem as informações prestadas na declaração; V – área edificada; VI – utilização do imóvel, ou seja se é não edificado, edificado com uso residencial ou edificado com uso não residencial (loja, indústria, escola, clínica, hotel, etc); VII – tipologia (característica construtiva) do imóvel". Outras informações também poderão ser solicitadas no formulário.

O artigo 9º do referido decreto municipal esclarece que "a Administração Tributária poderá adotar, no todo ou em parte, em seu cadastro, informações constantes ou decorrentes da declaração de que trata este Decreto, inclusive para fins de lançamentos tributários". Sinaliza, assim, que poderá haver outra finalidade à DeCAD que não a de participação do contribuinte no procedimento do lançamento tributário, e sinaliza que essa outra finalidade poderá ser a de levantamento do número de bens imóveis sob a responsabilidade de um mesmo contribuinte, como indica o artigo 4º do decreto. Analisaremos apenas a primeira delas.

Trata-se de uma das etapas que comporão o chamado lançamento por declaração, como ocorre, por exemplo, com os contribuintes de um "imposto-irmão", o ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural).

O lançamento tributário é o ato administrativo de competência privativa da administração tributária do respectivo ente político, no caso, o município do Rio de Janeiro, que constitui definitivamente o crédito tributário ou, mais apropriadamente, que declara a existência da relação jurídica ocorrida, e da qual decorre a obrigação de pagar o tributo. Ou seja, é o ato declaratório da existência de uma relação jurídico-tributária pré-existente, e a obrigação correspondente, constante do crédito tributário, conferindo-lhe liquidez e lhe tornando exigível [1], como se confere no artigo 142 do Código Tributário Nacional (CTN):

"Artigo 142  Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível". 

Não obstante o ato administrativo declare a relação jurídica, há que se considerar também o argumento de que "a aplicação do direito equivale à criação do direito" [2], que conclui que ainda que declarando a relação jurídico-tributária existente, o ato administrativo constitui a obrigação, mas isso porque anteriormente ao lançamento não há a exigibilidade do pagamento da obrigação tributária devida, do "direito existente" [3].

Considerando que a norma é geral e abstrata, e não se individualiza ao sujeito que age ou é responsável pela conduta que concretiza a hipótese de incidência da norma no mundo real se não por um ato que torne essa mesma norma concreta, também se poderá afirmar que o lançamento tributário é o ato administrativo que concretiza e individualiza a norma — transportando a conduta prescrita no mundo do dever-ser (geral, abstrato) à conduta realizada no mundo do ser (concreto, individualizado).

Embora o lançamento tributário seja de competência privativa da administração tributária, a competência para participar do procedimento administrativo que resulta no ato administrativo do lançamento tributário, no Direito brasileiro, não é exclusiva. Inclusive a legislação tributária faz expressa previsão de participação do próprio sujeito passivo da obrigação tributária no ato do lançamento tributário.

Assim, o legislador propõe três denominações, ou classes, às modalidades de lançamento tributário, de acordo com o grau de participação das contribuintes no procedimento: o lançamento de ofício, o lançamento por declaração e o lançamento por homologação, também chamado, embora indevidamente, de autolançamento.

O lançamento de ofício ocorre quando não há nenhuma participação do sujeito passivo no procedimento declarante da obrigação tributária, nas hipóteses previstas nos incisos I a IX do artigo 149 do CTN:

"Artigo 149  O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:
I – quando a lei assim o determine;
II – quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária;
III – quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade;
IV – quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória;
V – quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte;
VI – quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária;
VII – quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;
VIII – quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior;
IX – quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade especial'.

O lançamento por homologação exige que a pessoa do polo passivo da relação jurídica apresente a declaração constando o cálculo relativamente ao tributo em questão e o pagamento sem que haja, no ínterim entre declaração e pagamento, a intervenção ou participação da pessoa do polo ativo da relação jurídica (município). Posteriormente ao pagamento é que ocorrerá, no prazo máximo de cinco anos contados a partir do fato jurídico tributário [4], a homologação pelo município da declaração e do próprio pagamento realizado pelo sujeito passivo. Somente então é que ocorrerá o lançamento — razão pela qual parcela da doutrina julga inadequado denominar esta modalidade de lançamento de "autolançamento", já que não há ato administrativo declaratório de lançamento antes da homologação realizada pelo ente tributante [5], como regulado pelo artigo 150, do CTN:

"Artigo 150  O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa."

Cumpre ainda ressaltar que a homologação pode ser expressa, quando expedido o "termo de encerramento de fiscalização", ou tácita, pelo decurso do tempo quando expirados os cinco anos previstos na legislação (§4º do artigo 150 do CTN).

Finalmente, o lançamento por declaração conta com a participação da pessoa do polo passivo da relação jurídico-tributária, porém, essa participação é menor se posta em relação ao lançamento por homologação. Isso porque essa pessoa deverá apresentar as informações — aquelas requeridas pela Administração Pública do respectivo ente tributante no sentido de qualificar e/ou mensurar o fato jurídico-tributário — que serão verificadas pela autoridade administrativa, e somente após a expedição do ato administrativo do lançamento é que se tornará exigível o pagamento do tributo. Nesse sentido é o artigo 147, do CTN:

"Artigo 147  O lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiro, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação".

Essa possível adoção pelo município do Rio de Janeiro da modalidade de lançamento por declaração se difere da modalidade usualmente adotada pelos municípios brasileiros, do lançamento de ofício, no qual não há nenhuma participação do sujeito passivo no procedimento administrativo constituinte do dever do pagamento e declaratório da relação jurídico-tributária. Do ponto de vista do município, embora haja responsabilidade da autoridade administrativa competente para a retificação de ofício da declaração que contenha erro apurável, o trabalho é certamente facilitado porque traz a sujeição passiva à responsabilidade da participação no procedimento administrativo. Já do ponto de vista da pessoa que é sujeito passivo, estafada com a quantidade de obrigações instrumentais que somam excessivo peso ao já barroco sistema tributário, mais uma nova obrigação instrumental traz uma ainda maior sobrecarga.

O município do Rio de Janeiro deverá se atentar para a possibilidade de que mesmo tendo um dos metros quadrados mais caros da América Latina, trata, neste caso, de um imposto que alcança potencialmente uma grande pluralidade de grupos sociais. Assim, deverá prever algum tratamento diferido para os casos de dificuldade de acesso à internet e equipamento eletrônico, e ainda aos casos de dificuldade de preenchimento da DeCAD online, para que não se aplique indevidamente quaisquer penalidades contra estas pessoas.

Em linhas finais, é preciso expressar nossa inadmissão de constitucionalidade e legalidade a um decreto que institui uma obrigação instrumental, tal qual nossa inadmissão a suposta legalidade da norma que obscuramente pretende legalizar eventual enriquecimento ilícito, e sobre esses temas nos manifestaremos oportunamente. Por ora, podemos afirmar que aparentemente, na cidade do Rio de Janeiro, não apenas ao dizer "janeiro", mas doravante também ao se dizer "junho", se responderá, atipicamente: "IPTU!".

 


[1] VIEIRA, José Roberto. Parecer: Decadência nas Contribuições para a Seguridade Social. Curitiba, inédito, 1997. p.1-10.

[2] DA COSTA, Valterlei A. Teoria Trilógica do Tributo. 2019. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Curso de Graduação em Direito, Curitiba.

[3] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do direito tributário. 3ªed. São Paulo: Noeses, 2018. p.383

[4] Cf. §4º, do artigo 150, do CTN.

[5] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário.28ªed. São Paulo: Saraiva, 2017. p.376 e ss. Ver: artigo 142, do CTN.

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