Reflexões Trabalhistas

Livre iniciativa, valor social do trabalho e dignidade da pessoa humana

Autor

  • Raimundo Simão de Melo

    é consultor Jurídico advogado procurador regional do Trabalho aposentado doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP professor titular do Centro Universitário do Distrito Federal-UDF/mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e autor de livros jurídicos.

15 de janeiro de 2021, 8h01

A dignidade humana é um valor moral e espiritual inerente à pessoa humana, o qual se manifesta na autodeterminação consciente e responsável da própria vida. Consubstancia-se o princípio da dignidade da pessoa humana na pretensão ao respeito por parte dos demais indivíduos da coletividade aos direitos fundamentais da pessoa como integrante de uma coletividade, o qual se apresenta em dupla concepção: como direito individual em relação ao Estado e aos demais indivíduos e como dever fundamental de tratamento igualitário dos homens entre si na sociedade em que vivem. Significa, na ordem jurídica, que cada um respeite o seu semelhante da mesma forma como deve ser respeitado, como assegura a Constituição Federal. Sua base provém do Direito Romano: viver honestamente, não prejudicar ninguém e dar a cada um o que lhe pertence.

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Conforme Cleber Francisco Alves ("O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da doutrina social da igreja", p. 111/112. Rio de Janeiro: Renovar, 2001), "o homem é uma pessoa e não somente uma porção de matéria, um elemento individual na natureza, como um átomo. Ele é, de algum modo, um todo, um universo, um ser moral autodeterminado, portador de valores únicos e supremos". Para esse autor, o tratamento da dignidade da pessoa humana como valor ou como princípio jurídico — e, em consequência, o seu caráter preferencialmente deontológico ou axiológico-teleológico revela-se decisivo para definir o papel dos intérpretes e aplicadores da Constituição nas sociedades democráticas e contemporâneas (Op. cit., p. 122/123).

O princípio da dignidade da pessoa humana nas relações de trabalho encontra assento na Constituição Federal brasileira, que, no artigo 1º, estabelece que são fundamentos da República e do Estado democrático de Direito, entre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. Essas dicções são complementadas pelo artigo 170 da mesma Lei Maior, que, ao tratar da ordem econômica, assegura a livre iniciativa, fundada na defesa do meio ambiente e na valorização do trabalho humano, de modo a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Observa-se que a ordem econômica brasileira dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado (SILVA, José Afonso da. "Curso de Direito Constitucional positivo", 5ª Ed., p. 660. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989).

No limiar do terceiro milênio, somos atores ou personagens num palco de transformações históricas radicais no caráter da mão-de-obra, notadamente a industrial, decorrente da automação e da informatização. Conjuga-se a essa nova realidade crescente desemprego, decorrente de políticas econômicas conservadoras, a que se alia um sentimento generalizado de impotência da sociedade civil uma cidadania cansada diante das possibilidades que, eventualmente, poderia a democracia política oferecer em termos de criação e apresentação de novas opções e novos modelos sociais.

O capitalismo globalizado dos séculos 20 e 21 não tem priorizado soluções para as questões sociais e humanitárias. A sua primazia é o aspecto econômico, que se sobrepõe a qualquer outro. Na concepção de Gilberto Dupas ("Ética e poder na sociedade da informação", p. 9 e 82. São Paulo: UNESP, 2000), "apesar de ter sido um período de excepcionais conquistas da ciência, o século 20 não terminou bem. O mundo capitalista viu-se novamente às voltas com problemas que pareciam ter sido eliminados: desemprego, depressões cíclicas, população indigente em meio a um luxo abundante e o Estado em crise. É preciso possuir, de antemão, sabedoria em seu sentido ético para tirar o melhor proveito possível da técnica". Nessa linha, afirma Alfredo Bosi ("Prefácio à obra de Gilberto Dupas, Ética e poder na sociedade da informação") que "as luzes não se irradiam pelo mundo dos homens de modo harmonioso e justo; ao contrário, a ciência e as tecnologias (e o poder de produzir, mercar e comandar a que dão acesso) foram submetidas às engrenagens de um darwinismo econômico que hoje se chama de globalização financeira".

Se o prognóstico do século 20 foi ruim, o que esperar do atual século até o seu final, quando se vê que o homem, que administra as políticas econômicas e sociais, está cada vez mais dando ênfase ao capital em detrimento do social? Como, com políticas totalmente liberais e conservadoras, com o desmonte dos direitos sociais, como tem sido a tônica no mundo globalizado, incluir socialmente os trabalhadores e lhes assegurar trabalho decente?

Como disse Nelson Mannrich ("Legislação trabalhista: garantia de patamares mínimos". In: ROMAR, Carla Tereza Martins; SOUSA, Otávio Augusto Reis de (Coords.). "Temas relevantes de direito material e processual do trabalho Estudos em homenagem ao Professor Pedro Paulo Teixeira Manus", p. 573. São Paulo: LTr, 2000), "a busca do progresso deve estar em harmonia com a observância de princípios éticos e de justiça social, tidos como fundamentais".

Nessa ótica, a Constituição brasileira de 1988 destacou como princípio fundamental a dignidade humana, como fundamento e substrato principal dos demais direitos e garantias individuais e coletivas, garantindo a posição do homem na sociedade política na busca do verdadeiro Estado de bem-estar social (artigos 1º e 170), que assegure a livre iniciativa na ordem econômica capitalista, respeitando a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a proteção do meio ambiente, o que requer a intervenção do Estado na defesa desses primados humanitários.

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Professor Titular do Centro Universitário — UDF, no mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas e na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP), na Pós-Graduação em Direito e Relações do Trabalho. Consultor Jurídico e Advogado. Procurador Regional do Trabalho aposentado. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.

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