Opinião

Condicionar entrada de brasileiros no país a teste de Covid-19 é inconstitucional

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15 de janeiro de 2021, 12h35

O filme "O Terminal" (2004) retrata a história de Viktor Navorski, vivido por Tom Hanks, um cidadão do país fictício Krakozhia que passou a morar no aeroporto internacional de Nova Iorque após um embaraço diplomático entre seu país e os Estados Unidos. E, desde 30 de dezembro, brasileiros ao redor do mundo estão se vendo em uma situação ainda mais complicada ao tentar embarcar de volta para casa.

A Portaria nº 630, publicada pela Presidência da República em 17 de dezembro, e posteriormente atualizada em 23 de dezembro pela Portaria nº 648, que condiciona o embarque de estrangeiros e nacionais em aeronaves com destino ao Brasil à apresentação de um teste negativo para Covid-19, realizado com no máximo 72 horas de antecedência [1], é flagrantemente inconstitucional, mas seus efeitos práticos já estão sendo sentidos por muitos brasileiros ao redor do mundo enquanto a norma permanece em vigor.

O direito à entrada de um nacional em seu próprio país é implícito à nacionalidade, que nada mais é do que uma relação político-jurídica entre uma pessoa e um Estado. Essa relação é permeada por um feixe de direitos e deveres que, apesar de pequenas variações de um país para outro, são comumente aceitos em quase toda comunidade internacional. Estabelece-se, então, uma via de mão dupla: se um Estado pode, por exemplo, sujeitar um nacional ao cumprimento de suas leis, a esse mesmo nacional não podem, entre outras coisas, serem negados direitos fundamentais inerentes à relação de nacionalidade, como é a possibilidade de entrada e livre circulação no país.

No Brasil, a nível constitucional, o direito de entrada e/ou regresso do nacional pode ser extraído do artigo 5º, inciso XV, que dispõe ser "livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens". A tentativa de exegese, no entanto, seria até dispensável, haja vista que a entrada e permanência compõem o conteúdo mínimo do direito de nacionalidade. Afinal, a nacionalidade pressupõe a livre circulação do nacional no território.

De forma bem mais específica — e direta —, a Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da qual o Brasil é signatário, diz, no parágrafo 4º do artigo 12: "Ninguém poderá ser privado arbitrariamente do direito de entrar em seu próprio país". Igualmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos — também assinada pelo Brasil — prevê em seu artigo 13.2: "Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar".

O direito à entrada de um nacional em seu país, mais do que uma garantia abstrata, é amplamente reconhecido ao redor do mundo em função de um elemento prático: Estados não possuem, em circunstâncias normais, quaisquer deveres de abrigar estrangeiros. A contrario sensu, o abrigo do nacional é dever do Estado do qual se possui nacionalidade. Se um nacional não pode retornar a seu próprio país (e não necessariamente será acolhido por outro Estado), as opções restantes podem até parecer roteiros interessantes para novos filmes, mas não são exatamente animadoras para o protagonista: permanecer ilegalmente no exterior ou vagar por territórios estrangeiros.

Exageros à parte, a situação é grave pois coloca brasileiros no exterior em uma situação de vulnerabilidade prática (por, por exemplo, não terem condições materiais de permanecerem no país ou até custear tratamento para a própria Covid-19) e jurídica (vistos de permanência no exterior possuem uma validade geralmente curta, entre 30 e 180 dias, e a extrapolação desse período é considerada crime em muitos países).

Alguém poderia argumentar que a portaria do governo federal, na verdade, não nega a entrada no país, apenas condiciona o embarque em aeronaves com destino ao Brasil à apresentação do teste com resultado negativo. Apesar da criatividade, o argumento não se sustenta. Se a única forma de entrada no Brasil é, em muitos casos, por via aérea, e o governo impede o embarque (ou atribui às companhias aéreas a tarefa de fazê-lo) no país de origem, na prática o governo está negando a entrada e obrigando que a pessoa, caso não tenha o teste, permaneça no exterior.

O exemplo, nesse caso, não é meramente ilustrativo. Diversos jornais noticiaram nas últimas semanas casos de brasileiros que foram impedidos de embarcar de volta ao Brasil por não terem condições de realizar o teste no exterior. Em um dos episódios, o México impediu o ingresso de um brasileiro em seu território por motivo alheio à pandemia e determinou a deportação do turista ao Brasil, tendo a companhia aérea na sequência negado o embarque pela falta de apresentação do exame — que não pôde ser realizado, uma vez que o ingresso no território mexicano fora negado. Em outro, relatou-se a falta de laboratórios especializados para realização do teste em Punta Cana, na República Dominicana, o que inviabilizou o retorno de brasileiros ao país. Em todos os casos, o Superior Tribunal de Justiça denegou a concessão dos mandados de segurança que autorizariam o retorno ao Brasil [2].

Outro argumento em defesa da medida adotada pelo governo federal seria um apelo à razoabilidade: "Basta fazer o teste, então, é como a obrigatoriedade de usar máscara durante o voo". O problema é que a situação não é tão simples assim. Segundo a portaria, o único teste válido é o RT-PCR realizado até 72 horas antes do momento do embarque, mas há locais em que esse teste, especificamente, não está disponível; outros em que só pessoas com sintomas podem fazer; e outros em que até é possível fazer, mas não há garantia de resultado em até 72 horas ou o custo é bastante elevado, especialmente nos países que não possuem sistema de saúde público e universal (nos Estados Unidos, por exemplo, a realização do teste demanda uma consulta médica prévia e a conta final pode chegar facilmente a R$ 2 mil por pessoa).

Apesar da situação de pandemia e da gravidade da Covid-19, a medida, ainda que bem intencionada, não é razoável porque existem medidas efetivas de controle menos gravosas ao brasileiro no exterior, como as políticas de testagem no desembarque e intenso monitoramento que vêm sendo realizadas por muitos países que têm, com sucesso, reduzido a dispersão do vírus. Outra possibilidade seria condicionar o reingresso no país a um período de isolamento obrigatório por alguns dias (já no Brasil), como é a prática na maioria dos países do mundo. Aliás, vale ressaltar, apenas se tem notícia de dois países que, nesse momento, condicionam a entrada de seus próprios nacionais à apresentação do teste negativo para Covid-19: Brasil e China.

Não precisaria nem ser dito, mas se você precisa viajar e pode realizar o teste, essa é a melhor solução: é, aliás, o que todos deveríamos fazer voluntariamente. Mas condicionar o retorno de brasileiros ao seu próprio país à apresentação de um resultado de um teste de difícil acesso mesmo em países desenvolvidos, equiparando-os, sem termos práticos, a estrangeiros, é, no entanto, inconstitucional.

 


[1] §1º Para fins do disposto no caput, o viajante de procedência internacional, brasileiro ou estrangeiro, deverá apresentar à companhia aérea responsável pelo voo, antes do embarque:
I – documento comprobatório de realização de teste laboratorial RT-PCR, para rastreio da infecção pelo coronavírus SARS-CoV-2, com resultado negativo ou não reagente, realizado nas setenta e duas horas anteriores ao momento do embarque (…).

[2] Mandados de Segurança nº 27.219, 27.220, 27.222 e 27.223, com decisões monocráticas do ministro Humberto Martins.

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