Opinião

O que fazer em um caso de discriminação em ambiente institucional

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15 de janeiro de 2021, 20h58

1) Introdução
Não é raro encontrarmos na mídia relatos e denúncias de casos em que pessoas sofreram algum tipo de discriminação em ambiente institucional (por exemplo, em universidades, escolas, hospitais, instituições públicas). Geralmente são casos que envolvem assédio moral ou sexual de mulheres, discriminação de pessoas negras, intolerância com pessoas com deficiência ou hostilização de pessoas LGBT [1]. Tais ocorridos são mais comuns do que se imagina e, como se sabe, muitas vezes pouco se faz no sentido de recriminar tais posturas institucionalmente. Além disso, é comum que a vítima da situação não saiba que caminhos pode tomar para buscar sanar a injustiça sofrida.

Um levantamento realizado pelo The Intercept em 2019 apurou que, entre universidades privadas e públicas, "desde 2008, pelo menos 556 mulheres, entre estudantes, professoras e funcionárias, foram vítimas de algum tipo de violência em instituições de ensino superior. Entre os casos, há assédio sexual, agressão física e/ou psicológica e estupro a maioria dentro das instalações universitárias e praticada principalmente por alunos e professores" [2].

A reportagem alerta, ainda, que foram contabilizados apenas os casos que foram reportados na imprensa e/ou pelos movimentos estudantis, chamando a atenção para a subnotificação da violência de gênero nesses espaços. Ou seja, para além dos casos que têm repercussão na mídia, diversos outros semelhantes se valem do silenciamento das vítimas e da impunidade dos agressores.

2) O que é discriminação e por que denunciar?
O reconhecimento da discriminação como fenômeno social merecedor de atenção especial é um debate atual no mundo jurídico. Isso porque, no nosso ordenamento, as pessoas são tratadas a partir do princípio da igualdade em abstrato: todo cidadão é igual e merece as mesmas proteções pelo Direito. O que vem se discutindo, entretanto, é que o Direito precisa reconhecer as desigualdades que existem de fato na sociedade para que possa, através da proteção jurídica e legal, promover uma igualdade real entre os sujeitos que, na realidade prática, não são reconhecidos como iguais, como é o caso das mulheres em relação aos homens e das pessoas negras em relação às brancas. Nas palavras de Adilson Moreira [3]: "A igualdade só pode ser um princípio jurídico eficaz na medida em que as instituições sociais identificam os processos responsáveis por diferentes formas de discriminação".

Partindo desse pressuposto, mesmo que se entenda o Direito enquanto instrumento ainda limitado para a efetiva transformação social, é possível se utilizar de suas ferramentas já existentes nos casos de discriminação, denunciando a discrepância entre a igualdade formal e a situação de fato das minorias. A depender do caso, para além do âmbito criminal, a princípio de forma independente, pode-se demandar o agressor nas esferas civil e administrativa, na qual se visa à sua responsabilização perante a entidade com que tenha ligação.

Um exemplo importante de proteção legislativa que nosso ordenamento confere contra casos de discriminação é a Lei estadual de São Paulo nº 10.948/2001, a qual "dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual". Ela estabelece punições administrativas (ou seja, para além do âmbito civil ou penal) à quem atentar contra as disposições da lei, incluindo qualquer cidadão, ainda que servidor público (civil ou militar), e organizações sociais ou empresas, de caráter público ou privado, instaladas no Estado de São Paulo.

A prática do ato discriminatório tratado pela lei será apurado mediante processo administrativo, o qual pode ser iniciado, inclusive, por reclamação do(a) próprio(a) ofendido(a). As penalidades a serem aplicadas podem ser de advertência, multa e, em caso de organizações e empresas privadas, suspensão ou cassação de licença estadual para funcionamento. As empresas e funcionários públicos serão punidos na forma do Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo.

3) Responsabilização civil
A responsabilidade civil é a obrigação do indivíduo de reparar os danos que tenha causado de forma ilícita a terceiro. Os danos podem ter natureza patrimonial ou extrapatrimonial — estes são os chamados danos morais, que se referem à lesão dos direitos de personalidade, ou seja, os direitos que se referem aos atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções pessoais [4]. A Constituição Federal prevê, em seu artigo 5º, inciso X, que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

A condenação por danos morais deve considerar as finalidades de reparação à pessoa que sofreu o dano, bem como de punição ao agressor, desestimulando-o a cometer novas violações. Além disso, sopesa-se a situação econômica das partes, a gravidade da conduta e o quanto ela repercutiu na vida da vítima a fim de quantificar o valor da indenização.

4) Responsabilização administrativa
4.1) O que fazer quando sofremos uma discriminação em entidade pública?
Quando uma situação de discriminação é enfrentada dentro de uma instituição pública (por exemplo, uma universidade, um hospital, uma escola ou qualquer outro órgão), há regramento específico para o tratamento do caso. A instituição, enquanto órgão do poder público, possui o chamado poder disciplinar, responsável por dar à Administração Pública o poder-dever de apurar denúncias e aplicar sanções.

Pautado no princípio do interesse público, é de relevante interesse do órgão público a apuração de irregularidades, como são os casos de discriminação, praticadas por servidores. Os servidores podem ser desde aqueles que trabalham em setores de atendimento até aqueles que são professores universitários, médicos, servidores do sistema de Justiça e do Judiciário etc.

Uma pessoa, inserida no sistema do órgão, seja como usuária, aluna, paciente ou até mesmo também uma servidora ou empregada do local, mas que responde para outros servidores superiores hierarquicamente, e que sofre uma situação discriminatória, pode procurar as instâncias competentes da instituição para que se apure o ocorrido e para que medidas sejam tomadas.

Muitas vezes, vítimas de tais situações não se reconhecem em situação de discriminação, ou, mesmo que se reconheçam, acreditam que não vale a pena denunciar e buscar a apuração e as medidas cabíveis. Isso pode acontecer por medo de retaliação por parte da vítima (muito comum em relações de hierarquia) ou por ela acreditar que seu ato não fará diferença e não terá resultados. Mas destacamos que o ambiente da Administração Pública também é local em que se deve procurar a efetivação da justiça e a proteção dos direitos, e não apenas no Poder Judiciário, como nos ensina Odete Medauar [5].

A Lei 8.112/90, por exemplo, que regula o regime jurídico dos servidores federais, em seu artigo 143 dispõe que "a autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa". Portanto, é dever da Administração e direito do administrado (ou, por vezes, do próprio servidor) que irregularidades sejam apuradas.

Tal apuração é feita por meio de um processo administrativo disciplinar, ou de uma sindicância, os quais são espécies do gênero processo Administrativo. Esses procedimentos são regulados pela Lei 8.112/90, no âmbito federal, e, por exemplo, pela Lei 10.261/68 no âmbito estadual de São Paulo

O processo administrativo disciplinar (PAD) tem como objetivo apurar casos que ensejem punições mais severas, como demissão e suspensão por mais de 30 dias. Já a sindicância visa a apurar casos que possam ensejar penalidade de advertência ou suspensão por menos de 30 dias, ou seja, casos de menor gravidade. Existe também uma segunda modalidade de sindicância, a qual funciona como um procedimento prévio ao processo administrativo disciplinar, com caráter informativo. É instaurada quando os fatos denunciados estiverem pouco definidos, quando houver muita incerteza sobre o que de fato ocorreu e sobre quem seria o responsável.

Tais procedimentos correm perante comissões processantes ou comissões sindicantes, as quais são responsáveis por apurar os fatos denunciados e buscar provas. Após as oitivas, a apresentação das provas e as alegações finais, a comissão elabora um relatório final, o qual ainda não possui caráter punitivo e nem decisório, mas apenas conclusivo. Ou seja, ele indica o que a comissão concluiu com base no que foi apurado. Esse relatório servirá de base para que a autoridade competente tome uma decisão (punitiva ou não) sobre o caso.

Vale ressaltar que tais procedimentos devem ocorrer de forma gratuita, como já reconhecido, inclusive, pelo STF (Súmula Vinculante nº 21) [6] e pelo STJ (Súmula 373) [7].

4.2) O que fazer quando sofremos uma discriminação em uma entidade privada?
No âmbito das entidades privadas, como instituições de ensino, hospitais e empresas em geral, não existe uma lei federal que preveja o procedimento ou a própria obrigatoriedade da apuração para a aplicação de sanções administrativas. Entretanto, é muito comum que existam regimentos ou políticas internas que estabelecem regras para a conduta dos indivíduos ligados a essas instituições, bem como as respectivas penalidades em casos de desvio.

Tais regulamentos também podem dispor sobre qual o departamento ou autoridade competente para o recebimento de denúncias, além da possibilidade de prever um procedimento interno para investigar condutas irregulares, antecedendo a aplicação de punições, assegurado o contraditório e a ampla defesa.

No caso em que o acusado tenha vínculo empregatício com a entidade, nos termos do Enunciado 77 do Tribunal Superior do Trabalho, "nula é a punição de empregado se não precedida de inquérito ou sindicância internos a que se obrigou a empresa por norma regulamentar". Ou seja, para a imposição de advertência, suspensão ou demissão com e sem justa causa, para além do que prevê a Constituição Federal e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a empresa também deve observar as próprias normas e garantir o procedimento interno de apuração.

Com relação às instituições de ensino superior (IES) privadas, conforme o artigo 207 da Constituição Federal, as universidades gozam de autonomia administrativa, de forma que podem exigir o cumprimento do seu próprio regimento e aplicar as sanções previstas. Assim, os alunos, submetidos a tais normas internas, também podem ser punidos quando atentarem contra a conduta regulamentada pela IES, inclusive com expulsão, se assim prevista.

5) Qual a importância de um auxílio técnico jurídico em procedimento administrativo?
O artigo 3º da Lei 9.784/99, na qual encontramos as regras do processo administrativo no âmbito federal, estabelece que é direito do administrado "fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei". Isso quer dizer que o acompanhamento por advogado(a) ao longo do procedimento administrativo é uma escolha da vítima, o que, por um lado, constitui um direito importante para que o acesso a uma apuração administrativa não seja restrito apenas àqueles que têm condições de contratar o serviço de um(a) advogado(a). Isso foi reconhecido, inclusive, na Súmula Vinculante nº 5 do STF [8].

Por outro lado, chamamos atenção para o fato de que, por mais que não seja obrigatória a presença e a representação do advogado(a), ela é extremamente recomendada. Isso porque o auxílio técnico de um profissional do Direito pode fazer a diferença na garantia: 1) dos direitos que ali estão sendo pleiteados; 2) da lisura do procedimento; e 3) do devido processo legal.

Com isso se relaciona, também, o exercício dos direitos dos administrados (ou seja, os cidadãos que fazem uso dos serviços públicos). O artigo 3º da Lei 9.784/99, já mencionada, prevê alguns desses direitos, entre eles:

"II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;
III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;"

Portanto, em uma situação de discriminação, objeto de estudo do presente texto, a vítima tem direito não só a realizar uma denúncia e ver um processo administrativo ou sindicância ser instaurado, mas também a acompanhá-lo, ser notificado de seus andamentos, ter acesso aos autos, se manifestar no processo e etc. Nesses momentos se insere a importância da defesa técnica exercida por um(a) advogado(a).

 


[1] ARAÚJO, Glauco "Professor e médico da Santa Casa que usou 'blackface' diz que não tinha intenção de expor conteúdo racista: 'Inocente e infeliz escolha'". Portal G1, 08/10/2020. Disponível em <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/10/08/professor-e-medico-da-santa-casa-que-usou-blackface-diz-que-nao-tinha-intencao-de-expor-conteudo-racista-inocente-e-infeliz-escolha.ghtml>. Acesso em 23/10/2020;
— 
EPTV 1 'Faculdade apura conduta de professor que pediu para aluna supostamente sem roupa 'abrir a câmera'". Portal G1, 30/09/2020. Disponível em <https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2020/09/30/aluna-diz-que-esta-sem-roupa-durante-aula-online-e-professor-pede-que-ela-abra-a-camera-faculdade-em-sp-apura-conduta.ghtml>. Acesso em 23/10/2020;
— LONGO, Ivan "'Se o estupro é inevitável, relaxa e goza', diz professor de medicina do Ceará em aula online". Revista FÓRUM online, 30/092020. Disponível em <https://revistaforum.com.br/brasil/se-o-estupro-e-inevitavel-relaxa-e-goza-diz-professor-de-medicina-do-ceara-em-aula-online/>. Acesso em 23/10/2020

[2] SAYURI, Juliana; SICURO, Rodrigo. "Abusos no Campus – Mais de 550 foram vítimas de violência sexual dentro das universidades desde 2008". The Intercept, 10/12/2019. Disponível em <https://theintercept.com/2019/12/10/mais-de-550-mulheres-foram-vitimas-de-violencia-sexual-dentro-de-universidades/>. Acesso em 29/10/2020

[3] MOREIRA, Adilson J. O que é discriminação?. Belo Horizonte: Letramento, 2017, p. 49.

[4] GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2003, p. 144 apud TARTUCE, Flávio. Direito civil: lei de introdução e parte geral – 15. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 228-229.

[5] MEDAUAR, Odete, Direito Administrativo moderno. 21. ed. – Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 162.

[6] Súmula Vinculante nº 21 do STF: É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo. (Data de Aprovação – Sessão Plenária de 29/10/2009; data de publicação: DJE de 10-11-2009)

[7] Súmula Vinculante nº 21 do STF: É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo. (Data de Aprovação – Sessão Plenária de 29/10/2009; data de publicação: DJE de 10-11-2009)

[8] Súmula Vinculante nº 5 do STF: A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. (Data de Aprovação – Sessão Plenária de 7/5/2008; data de publicação: DJE de 16/5/2008).
— SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Limites ao poder disciplinar do empregador: A tese do Poder Disciplinar Compartilhado. Gen Jurídico, 08/11/2017. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2017/11/08/limites-poder-disciplinar-empregador/#_ftnref29>. Acesso em 29/10/2020.

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