Interesse Público

Considerações sobre o PL 4253/20 e a futura lei de licitações

Autores

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

  • Mariana Avelar

    é advogada na Manesco Ramirez Perez Azevedo Marques Sociedade de Advogados mestre e doutoranda em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

14 de janeiro de 2021, 8h01

As sanções contratuais devem ser compreendidas em seu caráter instrumental. Por isso, relevante é a lição de Maria João Estorninho, para quem "a função principal da sanção nos contratos administrativos não é, nem a de reprimir as violações contratuais nem a de compensar a Administração pelos prejuízos sofridos, mas sim a de obrigar o particular a cumprir a prestação a que está adstrito e, dessa forma assegurar a prossecução do interesse público subjacente ao contrato" [1]. A sanção não é sempre a alternativa única e adequada para a salvaguarda do interesse público [2].

Spacca
Não se ignoram os percalços no caminho. Como sintetizado por Juliana Palma, a cultura repressiva está fundada, basicamente: 1) na identificação histórica da Administração Pública como titular de papel central no exercício da autoridade estatal; 2) na compreensão da função sancionadora como dever-poder e, portanto, atividade absolutamente indisponível; 3) na identificação da sanção administrativa como medida a ser valorada em virtude de seus efeitos na esfera da pessoa punida; e IV) no apelo à atuação da Administração Pública repressiva, com suporte no clamor social e na própria estrutura dos órgãos de controle.[3]

O tema da contratualização da atividade sancionatória está em parte refletido no PL.

O PL traz a possibilidade de que o acordo de leniência também isente seu signatário das sanções previstas na lei orgânica do Tribunal de Contas competente, caso este se manifeste favoravelmente.  

A atuação dos Tribunais de Contas no âmbito da leniência não está contemplada pela Lei Anticorrupção [4], o que ensejou grande polêmica quanto ao papel dessa instituição na celebração e fiscalização desses acordos. A já revogada IN 74/15 do TCU previu o controle prévio dos acordos, a configurar verdadeira invasão da esfera de atuação das autoridades competentes para sua celebração [5]. Após uma série de questionamentos doutrinários e a decisão cautelar do STF [6], a IN 74 foi revogada pela IN 83/2018, mais comedida no delineamento das atividades de fiscalização dos processos de celebração de acordo de leniência pelo TCU.

Nova pretensão de ampliar a atuação do TCU ocorreu pela assinatura de acordo de cooperação firmado, em agosto de 2020, por TCU, STF, CGU, Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e AGU. O documento previu que "a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União, no curso de negociação para acordo de leniência e à medida em que as informações forem sendo recebidas, nos termos da Lei nº 12.846, de 2013, compartilharão tais informações ao Tribunal de Contas da União para eventual atuação nos termos do presente ACT". Ainda a segunda ação operacional do memorando de entendimentos em questão apontou que:

"2) Concluindo a CGU/AGU que o acordo está em condições de ser assinado e ainda não havendo manifestação do TCU, este será comunicado para que se manifeste em até 90 (noventa) dias acerca da possibilidade de não instaurar ou extinguir procedimentos administrativos de sua competência para cobrança de dano em face de colaboradora, por considerar que os valores negociados atendem aos critérios de quitação de ressarcimento do dano; 3) Havendo manifestação do Tribunal de Contas da União no sentido de considerar que os valores negociados no acordo satisfazem aos critérios estabelecidos para a quitação do dano por ele estimado, o tribunal dará quitação condicionada ao pleno cumprimento do acordo".

A proposta do PL segue a tendência de envolvimento dos Tribunais de Contas na celebração dos acordos de leniência, ao permitir que este anua com o acordo, suspendendo a aplicação de sanções de sua competência. Um alerta, todavia, é necessário: os TCs não são competentes para o processamento e a assinatura do acordo de leniência, pelo que não se pode lhes outorgar a proeminência da condução dessas tratativas.

Como a Lei 12.846/13, o PL 4253 também prevê que a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade será considerado na aplicação das sanções, condicionando tal atenuação ao cumprimento de normas e orientações dos órgãos de controle.  

Da mesma forma, tais programas poderão ser exigidos em caso de reabilitação de licitantes ou contratantes que tenham cometido fraudes ou atos lesivos tipificados pela Lei Anticorrupção. Nesse ponto, o projeto de lei corrige omissão grave da lei, que não exigiu a implementação ou melhoria dos programas de integridade para celebração dos acordos de leniência. A esse respeito, já se escreveu:

"A aposta na superação de práticas ilícitas não pode se concentrar na ameaça repressiva estatal. Os programas de integridade, que em ambos os cenários balizarão a aplicação de sanções, precisam integrar o rol de compromissos do particular interessado em frear/relativizar o furor punitivo estatal. A utilização de instrumentos regulatórios que abandonem o dogma da sanção em prol de objetivos outros é positiva e irreversível, mas, tanto quanto ocorreu na Lei Anticorrupção, desperdiça-se a oportunidade de melhorar o ambiente das entidades quando não se lhes impõe o aperfeiçoamento ou a instituição de programas de integridade como condição para os acordos substitutivos. Soa insuficiente minimizar as sanções sem promover, como se poderia, os programas de integridade. Afinal, também deve se perseguir a melhoria da atuação das entidades, fomentando a inclusão/reformulação de ferramentas de gestão, controle e monitoramento de riscos, para que a infração não se reproduza" [7].

O incentivo ao compliance encontra paralelo em outras ordens jurídicas, com destaque para o Direito estadunidense. Carla Veríssimo [8] destaca que as atuais diretrizes de aplicação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) dão grande enfoque ao incentivo à implementação, melhoria e expansão dos programas de compliance das empresas investigadas, bem como na admissão de monitores contratados de forma independente, para averiguar a efetiva implementação dessas práticas de integridade e cumprimento de acordos firmados por essas empresas. O incentivo às práticas de integridade viabilizou-se ali graças à implementação de instrumentos consensuais que objetivam a reabilitação da empresa [9], considerando-se que nos Estados Unidos há grande discricionariedade para proposição de acordos de não processamento (Non-Prosecution Agreements — NPA, firmados entre a acusação e o investigado), de suspensão do processo ou da ação penal (Deferred Prosecution Agreements — DPA, homologados judicialmente) [10], ou ainda de acordos de cooperação sobre a culpa do investigado (plea agreements ou plea bargain), no bojo dos quais costumeiramente se acorda a adoção de boas práticas de integridade, governança e controles internos.

O projeto de lei ressalta que a aplicação das disposições referentes às infrações e sanções deverá observar, em termos principiológicos, as disposições da LINDB, por força do artigo 5º do PL 4253.

Alguns pontos do PL, contudo, não nos parecem devidamente harmonizados à nova roupagem das relações jurídico-administrativas, sobretudo quando em mente os direitos e as garantias dos contratados, na avaliação da gravidade da conduta e das condições na qual esta foi praticada, e, ainda, nas consequências da atividade sancionadora, nos termos dos artigos 21 e 22 da LINDB.

Salvo nas estreitas hipóteses de cabimento dos acordos de leniência (relacionados aos ilícitos previstos pela legislação anticorrupção), o PL não trouxe avanços na previsão de instrumentos de contratualização da função sancionadora.

É certo que tais acordos ou termos são referenciados no artigo 26 da LINDB para além de diversas previsões setoriais, sobretudo no âmbito da atuação das agências reguladoras [11] [12]. A isso se soma o argumento de que se as situações que configuram atos de corrupção podem ser objeto de ajustes, problemas relacionados à execução do contrato também poderiam ser. Contudo, a previsão de transações ou acordos substitutivos na legislação de licitações estimularia o uso e conferiria maior segurança jurídica a esses instrumentos, cujo emprego pode contribuir para a correção dos rumos.

Para além de perder a oportunidade de expressamente admitir a contratualizaçao para além do acordo de leniência, a leitura literal do PL indicaria que alguns direitos e garantias fundamentais do devido processo legal seriam reservados a determinadas situações: o direito de produzir provas, alegações finais e de ter a defesa apreciada por comissão de servidores estáveis ou empregados públicos do quadro permanente foram mencionados apenas para as penalidades de suspensão e inidoneidade.  No caso da aplicação de multa sanção que não pode ser desprezada —, a lei facultou ao interessado 15 dias para defesa sem expressar qualquer outra garantia. A interpretação da futura legislação conforme a Constituição não poderá, evidentemente, restringir o alcance da garantia fundamental do devido processo legal, razão pela qual a literalidade (como usual) não servirá como régua interpretativa.

Houve ainda ampliação dos efeitos temporais das sanções de impedimento de contratar para até três anos e fixou-se o termo máximo de seis anos para aplicação da declaração de inidoneidade. A tendência de endurecimento das reprimendas refletiu-se também na criação de novos tipos penais [13], no aumento de penas [14] e na previsão de que as multas a serem aplicadas não poderão ser inferiores a 2% do valor do contrato.

Os possíveis aplausos ao endurecimento não contabilizam o efeito adverso: o de desencorajar contratantes probos de participar de contratações públicas, reduzindo o número de interessados capazes de satisfazer as necessidades da Administração.

Ainda é muito cedo para decantar todos os aspectos do assunto e por isso, à guisa de conclusão, importa afirmar que a intepretação e aplicação de seus dispositivos deve observar os preceitos da LINDB, segundo os quais excessos e desproporcionalidades não são permitidos, nem mesmo em nome de eventual sancionamento de condutas reprováveis.

 


[1] ESTORNINHO, Maria João. Réquiem pelo contrato administrativo (reimpressão). Coimbra: Almedina, 2003, p.128.

[2] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: transceding the desregulation debate. New York: Oxford  University Press, 1992.
FREEMAN, Jody. Private parties, public functions and the new administrative law. Administrative Law Review, vol. 52, no. 3, 2000, pp. 813–858. JSTOR. Disponível em: www.jstor.org/stable/40711903. Acesso em 9 Jan. 2021.

[3] DE PALMA, Juliana Bonacorsi. Atuação administrativa consensual: estudo dos acordos substitutivos no processo administrativo sancionador. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 302-303.

[4] Esta questão chegou a ser tratada pela Medida provisória nº 703, de 2015 da seguinte forma: Art. 16, § 14 O acordo de leniência depois de assinado será encaminhado ao respectivo Tribunal de Contas, que poderá, nos termos do inciso II do art. 71 da Constituição Federal, instaurar procedimento administrativo contra a pessoa jurídica celebrante, para apurar prejuízo ao erário, quando entender que o valor constante do acordo não atende o disposto no § 3º .A vigência da medida provisória encerrou-se sem sua conversão em lei, de modo que a atual redação da Lei Anticorrupção não contempla balizas para atuação dos Tribunais de Contas.

[5] André Rosilho, ao analisar tal normativo, afirmou: “O curioso é que nesse ambiente de incerteza quanto aos reais contornos de suas competências, o TCU não raro tem se utilizado de seu poder regulamentar (a ele genericamente conferido pelo art. 3º de sua Lei Orgânica) para, sob o pretexto de esclarecer seu papel enquanto órgão de fiscalização e de operacionalizar suas atribuições, pavimentar novas vias de controle para além dos limites fixados pelas normas constitucionais e legais. Trata-se de uma estratégia de autolegitimação do seu poder, em boa medida possível por conta da dificuldade de se extrair do ordenamento jurídico parâmetros e critérios claros e objetivos. A instrução normativa 74/2015, editada pelo TCU para disciplinar a fiscalização do processo de celebração dos acordos de leniência da Lei Anticorrupção, de 2013, ilustra o diagnóstico que acabo de traçar”. (ROSILHO, André. Poder Regulamentar do TCU e o Acordo de Leniência previsto na Lei Anticorrupção. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Andre-Rosilho/poder-regulamentar-do-tcu-e-o-acordo-deleniencia- da-lei-anticorrupcao>. Acesso em: 17 mai. 2017.

[6] BRASIL. STF. MS 34031-DF.Rel. Min. Gilmar Mendes. DJE 25/02/2016.  No julgamento cautelar “o ministro Gilmar Mendes concedeu liminar, suspendendo a determinação de encaminhamento ao Tribunal de Contas da União (TCU) das informações sobre os acordos de leniência em trâmite na Controladoria Geral da União (CGU). Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310678. Acesso em 6 de janeiro de 2021.

[7] FORTINI, Cristiana. A atividade sancionatória e a aposta da CVM para o acordo de supervisão. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-28/atividade-sancionatoria-proposta-cvm-acordosupervisao. Acesso em: 6 jan. 2020.

[8] VERÍSSIMO, Carla. Compliance: incentivo à adoção de medidas anticorrupção. São Paulo: Saraiva Jur, 2017, p. 159 e ss.

[9] É o que se extrai do Manual dos Procuradores Federais dos E.U.A. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. U.S. Attorney Manual. 9-28.000 – Principles of Federal Prosecution of Business Organizations. Disponível em: <https://www.justice.gov/usam/usam-9-28000-principles-federalprosecution-business-organizations>. Acesso em: 5 jan 2020.

[10] Tal como destaca Carla Veríssimo, os DPAs e os NPAs oferecem vantagens em comparação com outros tipos de acordo penal uma vez que não implicam em confissão de culpa por parte da empresa. São espécies de negociações pelas quais as empresas e os órgãos de persecução penal entram em acordo sobre valores de indenização e multas, bem como referentes a adoção de medidas de governança corporativa e ou reestruturação empresarial. (VERÍSSIMO, Carla. Compliance: incentivo à adoção de medidas anticorrupção. São Paulo: Saraiva Jur, 2017, p.161).

[11] Assim foi previsto no art. 32 da Lei 13.848/19.

[12] CASIMIRO, Lígia Maria Silva Melo de; MAIA, Isabelly Cyrne Augusto. Reflexões sobre a articulação das agências reguladoras com os órgãos de defesa do consumidor e do meio ambiente (artigos 31 a 33 da Lei 13.848/2019) In.: SCHIER, Adriana da Costa Ricardo; FORTINI, Cristiana; CASIMIRO, Ligia Maria Silva Melo de; VALLE, Vanice Regina Lírio do (coord). Marco Legal das Agências Reguladoras na visão delas: comentários à Lei 13.848/2019 e à IN 97/2020. Belo Horizonte: Forum, 2021. P. 183-195.

[13] É o caso, por exemplo, do crime de omissão grave de dado ou de informação por projetista.

[14] A título de exemplificação, o crime de contratação direta ilegal é apenado com detenção de 3 a 5 anos e multa pela Lei 8.666/1993 e na dicção do PL 4253, o crime poderá ser sancionado com a pena de reclusão de 4 a 8 anos e multa.

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