Opinião

Em São Paulo, alíquota de ICMS abaixo de 18% não é benefício fiscal, é direito

Autor

  • Alice Gontijo

    é doutoranda pela USP mestre em Direito Tributário pela UFMG e sócia do Sacha Calmon — Misabel Derzi Consultores e Advogados.

14 de janeiro de 2021, 18h35

Se o consumidor for hoje a uma concessionária em São Paulo comprar um carro novo, sabe que 12% do valor irão para o Estado a título de ICMS. Atento que é, ele jamais diria: "Que baita vantagem! Poderiam ser 18%". O cidadão sabe que ser 12% ou 18% é decisão da Assembleia Legislativa. E seus representantes decidiram pela alíquota de 12%, não só para o carro novo, mas também para tratores agrícolas, alguns combustíveis e diversos insumos da construção civil [1] — caso alguém também esteja pensando em renovar a frota da lavoura, abastecer o avião ou reformar a casa.

Vantagem seria se, tendo de recolher 12% de alíquota, o contribuinte recebesse um crédito para abatimento, um prazo diferenciado para pagamento ou pudesse decotar da base de cálculo os itens opcionais que adicionou ao carro. Isso nunca lhe escaparia! Se a Assembleia Legislativa definiu em 12% a alíquota, não há vantagem alguma, há dever (de pagar) e também direito (de assim lhe ser exigido). E não é agora, por ato do governador, que isso vai mudar!

Mas, a partir desta sexta-feira (15/1), passa a vigorar um "complemento de 1,3%" à alíquota de 12% para os próximos 24 meses, como medida para o equilíbrio das contas do Estado. A medida encontraria respaldo no Convênio nº 42, de 3 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que autorizou os Estados e o Distrito Federal a reduzir os benefícios fiscais em no mínimo 10%, viabilizando a majoração da carga tributária para enfrentar a crise que então assolava o país — e que, por razões outras, ainda não nos deixou. O convênio foi introjetado no Estado pela Lei n° 17.293 de 15 de outubro de 2020, que podendo majorar de 12% para 13,3% a alíquota, assim não o fez. Criou uma ficção e considerou que todas as alíquotas inferiores a 18% são benefício fiscal [2] para, então, outorgar ao governador a faculdade de alterar a alíquota como bem quisesse. Este, por sua vez, editou, no mesmo dia 15 de outubro, o Decreto nº 65.253, aumentando a alíquota para 13,3%, que passa a viger nos próximos dias.

Pode isso? Não, não pode, por três principais razões.

A primeira razão é que equiparar todas as alíquotas abaixo de 18% a benefício fiscal — como pretende a Lei n° 17.293/20 — é pura ficção! O bom português já esclarece: benefício é "vantagem, ganho, proveito" [3], conceitos relacionais que só se compreendem por meio de comparação. Isto é, só há vantagem quando há desvantagem; ganho, quando há perda; proveito, quando há prejuízo. Quando todos os paulistas estão, por lei (Lei nº 6.374/89), sujeitos à mesma alíquota de 12%, não há benefício fiscal algum!

Benefícios fiscais reduzem o valor a ser pago, já as alíquotas estabelecem exatamente o valor a ser pago. A alíquota é um dos elementos da obrigação tributária, por isso dotada dos atributos de abstração e generalidade, que significam: aplica-se a todos indistintamente (e não a um determinado contribuinte) e a todas as situações previstas na norma (e não a um caso específico). Já os benefícios atuam no montante da obrigação a pagar. Isto é: ocorre o fato (venda do automóvel), incide a norma (na venda de carro, pagar 12%) e nasce a obrigação (pagar 12%), aí vem a benesse que reduz o valor a pagar (mediante concessão de um crédito, redução da base de cálculo, dentre outras técnicas). Aqui reside uma diferença significativa em Direito Tributário entre exonerar a obrigação e reduzir o montante a pagar.

Quando todos os compradores de carro novo estão igualmente sujeitos à alíquota de 12%, não há benefício fiscal algum! É como comparar carro com lancha, para dizer que está em vantagem quem se locomove pela via terrestre (sujeita a 12% [4]) em comparação com quem opta pela via aquática (sujeita a 25% [5]). Há princípio basilar [6] que orienta para o tratamento isonômico daqueles que estão em igual situação, o que importa em também conferir tratamento diferenciado àqueles que se encontram em posições díspares, como no carro ou na lancha.

E mais: em matéria tributária é absolutamente vedado o uso de ficção para aumentar tributo. A ficção é uma técnica pragmática para atribuir efeitos jurídicos próprios de um instituto a outro. Serve de exemplo o crime continuado, que trata como uma unidade a pluralidade de crimes da mesma espécie. Mas em matéria tributária esse poder é limitado, em proteção ao contribuinte, não podendo servir para ampliar o poder de criar tributos. Por exemplo, se o consumidor desistir de comprar o carro e optar por alugá-lo, não lhe podem exigir o ICMS, sob a ficção de que aluguel é compra, porque venda resulta em transferência definitiva de propriedade e locação, por mais longa que seja, não confere ao locatário nada mais do que a posse.

A segunda razão pela qual o Decreto nº 65.253/20 não pode majorar a alíquota de 12% para 13,3%, está no próprio Convênio nº 42/16, que teria respaldado a Lei n° 17.293/20, pois ele se aplica apenas a benefícios "que resultem em redução do valor do ICMS a ser pago". A alíquota de 12% tanto não é benefício fiscal que dificilmente se adequa às disposições do referido convênio.

O primeiro inciso da cláusula primeira do convênio sujeita a fruição do benefício ao depósito, pelo contribuinte, de 10% do seu valor em fundo estadual. Ainda que essa hipótese não tenha sido adotada em São Paulo (foi em outros Estados, como o Rio de Janeiro), serve de exemplo para indagar: seria o caso de se depositar 10% de 12%, ou seja, 1,2%? Ou 10% da diferença entre 12% (alíquota "beneficiada") e 18% (alíquota "máxima"), ou seja, 0,6% (18% – 12% = 6%)? O segundo inciso do convênio prevê que o benefício seja reduzido em, no mínimo, 10% de seu valor. Como então reduzir a alíquota de 12% se não majorando-a? Em quanto: 1,2% ou 0,6%? Cabe interpretar "reduzir" como "aumentar" para se chegar ao efeito pretendido, que é a majoração da carga tributária? Finalmente, o parágrafo primeiro do convênio prevê a penalidade no caso de descumprimento: "resultará na perda definitiva do respectivo incentivo ou benefício". Isso significa que, se o contribuinte, que teve a alíquota majorada de 12% para 13,3% deixar de pagar 13,3% ele irá "perder o benefício". Qual benefício, o de pagar 12%? E vai pagar quanto, 18%? Revela-se o absurdo!

Por último, a terceira razão: toda essa volta foi necessária porque sabe-se que, em linha constitucional, decreto não pode alterar alíquota para aumentar tributo, só a lei pode. Ainda que o STF [7] tenha recentemente permitido a delegação ao Executivo para estabelecer alíquotas, assim o fez desde que sejam definidas as condições, fixados os tetos e esteja presente a função extrafiscal. O Convênio nº 42/2016 só fixa piso — o que é insuficiente; a Lei n° 17.293 não fixa nem piso nem teto; e a função do ICMS é exclusivamente fiscal, isto é, arrecadatória. Enfim, ao Executivo foi dado um cheque em branco, que lhe permitiu majorar a alíquota de 12% para 13,3%, e com uma nova canetada para a alíquota que lhe aprouver…

Essas três razões são importantes porque elas tornam a situação dos contribuintes que estão sujeitos à alíquota inferior a 18% muito diferente daquela em que estão os contribuintes que têm verdadeiros benefícios fiscais. Ainda que para estes a medida do governador também seja censurável, ela o é por outras razões. O caso que aqui se apresenta é, para nós, ainda mais grave aos princípios constitucionais tributários e merece apreciação adequada.

Se quiser comprar um carro, o melhor que o paulista faz é atravessar a fronteira, já que todos os Estados vizinhos aplicam a alíquota de 12%, como há anos convencionaram os secretários de Fazenda em deliberação no Confaz.

 


[1] Vide artigo 34 da Lei nº 6.374/89.

[2] Artigo 22, §1° da Lei nº 17.293/2020.

[3] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário Aurélio, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, p. 198.

[4] Vide artigo 34, §1º, item 12 da Lei nº 6.374/89.

[5] Vide artigo 55, VIII do RICMS/SP.

[6] Vide artigo 150, I da CR/88 e artigo 163, § 6º, da CE/89.

[7] A decisão foi proferida no dia 10 de dezembro de 2020, quando do julgamento do Tema 939/RG.

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    é advogada tributarista, é mestre pela UFMG em Direito Tributário, doutoranda pela USP e sócia do escritório Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e Advogados.

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