Opinião

A nova relativização dos direitos dos passageiros de transporte aéreo

Autores

  • Luciana Atheniense

    é advogada secretária-geral da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB Federal sócia do escritório Aristoteles Atheniense Advogados em Belo Horizonte (BH) e mestre em Direito Comunitário e da Integração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

  • Maria Luiza Baillo Targa

    é doutoranda e mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université Savoie Mont Blanc em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e advogada sócia do RMMG Advogados.

13 de janeiro de 2021, 9h11

A Medida Provisória (MP) nº 1.024, publicada em 31 de dezembro de 2020 [1], alterou trechos da Lei nº 14.034/2020 [2], que dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da Covid-19. Foram modificadas as redações do caput e do §3º do artigo 3º da referida lei, tendo sido ainda revogado o §9º desse mesmo artigo.

Em sua redação original, o caput do artigo 3º previa que, em caso de cancelamento de voo entre os dias 19/3/2020 e 31/12/2020, o reembolso do valor pago pelo consumidor na aquisição de passagens aéreas seria feito pela companhia aérea no prazo de 12 meses, a contar da data do voo cancelado, observadas a atualização monetária calculada com base no INPC e, quando cabível, a prestação de assistência material. Com a promulgação da MP nº 1.024/2020, estendeu-se o período de cancelamento para o dia 31/10/2021, de modo que quaisquer voos cancelados até a referida data, desde 19/3/2020, terão o seu reembolso realizado em 12 meses, a contar da data em que foi rescindido o serviço pela transportadora.

Por sua vez, o §3º disciplinava que, caso o consumidor desistisse da viagem que seria realizada entre os dias 19/3/2020 e 31/12/2020, poderia optar ou pelo reembolso do valor pago (que também seria feito em 12 meses da data da viagem, porém, do montante a ser reembolsado seriam descontadas as penalidades contratualmente estabelecidas) ou pelo recebimento de um crédito de valor correspondente ao da passagem aérea a ser utilizado no prazo máximo de 18 meses a contar do seu recebimento. Agora, tais regras valem para as solicitações de desistência pelo passageiro de voos entre 19/3/2020 e 31/10/2021, mantendo-se vigentes as demais disposições do texto original.

Por fim, o §9º, ora revogado, trazia uma exceção ao reembolso em 12 meses no que diz respeito aos valores referentes às tarifas aeroportuárias ou de outros valores devidos a entes governamentais pagos pelo passageiro e arrecadados por intermédio do transportador, determinando que tais montantes deveriam ser ressarcidos em até sete dias, contados da solicitação, salvo se a restituição foi realizada mediante crédito por opção do consumidor.

Analisando tais modificações, conclui-se que a MP nº 1.024/2020 teve como fim único a ampliação das regras emergenciais de reembolso e de concessão de crédito disciplinadas pela Lei nº 14.034/2020, estendendo a relativização das normas previstas na Resolução nº 400/2016, da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), cujo artigo 29 dispõe que "o prazo para o reembolso será de sete dias, a contar da data da solicitação feita pelo passageiro, devendo ser observados os meios de pagamento utilizados na compra da passagem aérea" [3]. Segundo o coordenador da Frente Parlamentar dos Aeronautas, deputado Jerônimo Goergen, "o setor aéreo sofreu muito e ainda sofre com tudo que vem acontecendo", e a MP nº 1.024/2020 "evita que a situação piore, até porque as perdas são bilionárias. Nossas empresas aéreas são estratégicas para a retomada da economia, assim que tivermos o novo normal" [4].

Novamente, vê-se que os interesses do setor aéreo são colocados acima dos interesses dos consumidores, sem que, pelo menos, forneça-se uma contrapartida ao passageiro, que sequer será isento do pagamento das penalidades contratuais caso desista do serviço motivado pelo receio de ser contaminado pela Covid-19 do destino contratado, ou ainda que eventualmente comprove situação de redução de renda ou de desemprego [5].

Se já não bastassem os prejuízos advindos com a promulgação da Lei nº 14.034/2020 (que é a lei de conversão da MP nº 925/2020), entre eles a manutenção da possibilidade de desconto das penalidades contratuais caso o passageiro solicite o cancelamento dos serviços em virtude da pandemia (o que, frise-se novamente, demonstra a ausência de qualquer relativização dos deveres dos passageiros mesmo em uma situação de calamidade pública, de crise sanitária e financeira) e as alterações permanentes (embora a lei mencione "medidas emergenciais") no Código Brasileiro de Aeronáutica relativamente à prova do dano moral e as novas excludentes de responsabilidade [6], agora amplia-se por mais dez meses a possibilidade de reembolso no prazo de 12 meses, em vez do prazo de sete dias previsto na Resolução nº 400/2016 da Anac.

Frise-se que essa MP não foi a única a recentemente relativizar direitos dos passageiros consagrados pela legislação nacional: em maio do ano passado, a Resolução nº 556/2020, da ANAC, flexibilizou, para voos programados originalmente até 31/12/2020 [7], a aplicação de dispositivos da Resolução nº 400/2020 [8] e, em 10 de dezembro, sobreveio a Resolução nº 598, que deu nova redação aos artigos 6º, 6-A e 7º da Resolução nº 556/2020, ampliando para 30/10/2021 a mitigação dos deveres dos fornecedores de serviços aéreos [9].

Segundo a própria Agência de Aviação Civil, a flexibilização temporária e excepcional da aplicação da Resolução n. 400/2016 contemplou as seguintes disposições [10]:

 O transportador deve comunicar o passageiro com antecedência mínima de 24 horas sobre eventual alteração programada do voo.

— A assistência material fica assegurada ao passageiro em território nacional, exceto nos casos de fechamento de fronteiras e de aeroportos por determinação de autoridades.

— As manifestações dos passageiros devem ser respondidas em até 15 dias nos canais eletrônicos de atendimento da empresa aérea e no Consumidor.gov.br.

— Nos casos de alteração programada, atraso, cancelamento ou interrupção do voo, fica assegurada a reacomodação do passageiro em voo de terceiro, quando não houver disponibilidade de voo da própria empresa.

Como já se afirmou em texto anterior [11], o Poder Executivo falha no cumprimento ao dever constitucional que lhe é imposto de promoção da defesa do consumidor (artigo 5º XXXII, da Constituição Federal) e, também, no dever de observar que a defesa do consumidor é princípio norteador da ordem econômica (artigo 170, V, da Constituição Federal), pois, mais uma vez, flexibiliza o direito ao reembolso (através da MP nº 1.024/2020) e aos demais direitos essenciais (através da Resolução nº 598/2020), que são assegurados aos passageiros pelo Código de Defesa do Consumidor em diálogo com a Resolução nº 400/2016 e com o Código Civil.


 

 

 

Embora seja, de fato, essencial à economia do país mitigar os impactos econômicos da crise ao setor de transporte aéreo, olvida-se o Executivo (e o Legislativo, ao promulgar a Lei nº 14.034/2020) que o consumidor é a parte reconhecidamente vulnerável dessa típica relação de consumo, cuja defesa de seus interesses é direito fundamental e cláusula pétrea. Deixar-se de observar os seus direitos é, pois, desrespeitar a principiologia que norteia o ordenamento jurídico pátrio, sendo certo que o setor poderia ser beneficiado de outras formas pelo governo sem que fosse necessário mitigar os direitos do passageiro (uma das opções, por exemplo, seria a concessão de empréstimos que atendam efetivamente aos interesses das empresas aéreas nacionais) [12].

 

Resta agora a expectativa de que o Poder Judiciário considere, em suas decisões acerca de pedidos de reembolso ou de ações indenizatórias decorrentes de contratos de transporte aéreo, também os interesses do passageiro, o qual foi igualmente impactado pelos efeitos da pandemia da Covid-19, seja em virtude da pandemia propriamente dita (receio de viajar ante a possibilidade de contaminação na própria viagem), seja pela crise financeira dela advinda (desemprego, redução de renda).

 


Referências bibliográficas
— AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. MP prorroga regras para reembolso de voos cancelados e para desistência do consumidor, Câmara dos Deputados, Brasília, 05 jan. 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/719814-MP-PRORROGA-REGRAS-PARA-REEMBOLSO-DE-VOOS-CANCELADOS-E-PARA-DESISTENCIA-DO-CONSUMIDOR. Acesso em: 10 jan. 2021.

— AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. ANAC prorroga a flexibilização das regras para o transporte aéreo de passageiros. ANAC. Disponível em: https://www.anac.gov.br/noticias/2020/anac-prorroga-a-flexibilizacao-das-regras-para-o-transporte-aereo-de-passageiros. Acesso em: 10 jan. 2021.

— ________. Resolução nº 400, de 13 de dezembro de 2016. ANAC. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/ resolucoes-2016/resolucao-no-400-13-12-2016. Acesso em: 10 jan. 2021.

— ________. Resolução nº 556, de 13 de maio de 2020. ANAC. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/ resolucao-no-556-13-05-2020. Acesso em: 10 jan. 2021.

— ________. Resolução nº 563, de 9 de junho de 2020. ANAC. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/ resolucao-no-563-09-06-2020. Acesso em: 10 jan. 2021.

— ________. Resolução nº 598, de 10 de dezembro de 2020. ANAC. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/ resolucao-no-598-10-12-2020. Acesso em: 10 jan. 2021.

— ATHENIENSE, Luciana; TARGA, Maria Luiza Baillo. Os impactos da Lei 14.034/20 nos direitos dos passageiros-consumidores. CONJUR, 09 ago. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-09/opiniao-lei-1403420-direitos-passageiros-consumidores. Acesso em: 10 jan. 2021.

— BOUÇAS, Cibele. Voamos 85% da malha doméstica em novembro e faremos mais, diz presidente da Azul. Valor, São Paulo, 14 dez. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/12/14/voamos-85percent-da-malha-domestica-em-novembro-e-faremos-mais-diz-presidente-da-azul.ghtml. Acesso em: 10 jan. 2021.

— BRASIL. Lei nº 14.034, de 5 de agosto de 2020. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L14034.htm. Acesso em: 10 jan. 2021.

— ________. Medida Provisória nº 1.024, de 31 de dezembro de 2020. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/ mpv1024.htm. Acesso em: 10 jan. 2021.

— SQUEFF, Tatiana Cardoso; TARGA, Maria Luiza B. A preservação do setor aéreo a qualquer custo? Comentários à Lei 14.034, de 05 de agosto de 2020. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 132, p. 405-419, nov./dez. 2020.

 

[1] BRASIL. Medida Provisória n. 1.024, de 31 de dezembro de 2020. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv1024.htm. Acesso em: 10 jan. 2021.

[2] BRASIL. Lei n. 14.034, de 05 de agosto de 2020. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L14034.htm. Acesso em: 10 jan. 2021.

[3] AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. Resolução n. 400, de 13 de dezembro de 2016. ANAC. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/resolucoes-2016/ resolucao-no-400-13-12-2016. Acesso em: 10 jan. 2021.

 

[4] AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. MP prorroga regras para reembolso de voos cancelados e para desistência do consumidor, Câmara dos Deputados, Brasília, 05 jan. 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/719814-MP-PRORROGA-REGRAS-PARA-REEMBOLSO-DE-VOOS-CANCELADOS-E-PARA-DESISTENCIA-DO-CONSUMIDOR. Acesso em: 10 jan. 2021.

[5] A única exceção à regra do reembolso em 12 meses e sem penalidades está disciplinada no artigo 3º, §6º, da Lei n. 14.034/2020, verbis: “§ 6º O disposto no § 3º deste artigo não se aplica ao consumidor que desistir da passagem aérea adquirida com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data de embarque, desde que o faça no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, contado do recebimento do comprovante de aquisição do bilhete de passagem, caso em que prevalecerá o disposto nas condições gerais aplicáveis ao transporte aéreo regular de passageiros, doméstico e internacional, estabelecidas em ato normativo da autoridade de aviação civil” (BRASIL. Lei nº 14.034, de 5 de agosto de 2020. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ _ato2019-2022/2020/Lei/L14034.htm. Acesso em: 10 jan. 2021).

[6] A esse respeito, ver: SQUEFF, Tatiana Cardoso; TARGA, Maria Luiza B. A preservação do setor aéreo a qualquer custo? Comentários à Lei 14.034, de 05 de agosto de 2020. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 132, p. 405-419, nov./dez. 2020.

[7] De frisar que a Resolução nº 563, de 9 de junho, antecipou parte dos efeitos da Resolução nº 556 para todos os voos originalmente programados para 04 de fevereiro de 2020, retroagindo os efeitos desta para antes mesmo de sua entrada em vigor (AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. Resolução nº 563, de 9 de junho de 2020. ANAC. Disponível em: https://www.anac.gov.br/ assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/resolucao-no-563-09-06-2020. Acesso em: 10 jan. 2021).

[8] A Resolução ainda determinou que as reclamações dos passageiros fossem registradas na plataforma Consumidor.gov.br, vinculada ao Ministério da Justiça (AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. Resolução n. 556, de 13 de maio de 2020. ANAC. Disponível em: https://www. anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/resolucao-no-556-13-05-2020. Acesso em: 10 jan. 2021).

[9] AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. Resolução n. 598, de 10 de dezembro de 2020. ANAC. Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2020/resolucao-no-598-10-12-2020. Acesso em: 10 jan. 2021.

[10] AGÊNCIA NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL. ANAC prorroga a flexibilização das regras para o transporte aéreo de passageiros. ANAC. Disponível em: https://www.anac.gov.br/ noticias/2020/anac-prorroga-a-flexibilizacao-das-regras-para-o-transporte-aereo-de-passageiros. Acesso em: 10 jan. 2021.

[11] ATHENIENSE, Luciana; TARGA, Maria Luiza Baillo. Os impactos da Lei 14.034/20 nos direitos dos passageiros-consumidores. ConJur, 09 ago. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-09/opiniao-lei-1403420-direitos-passageiros-consumidores. Acesso em: 10 jan. 2021.

[12] Segundo reportagem do Valor Econômico, o presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR), Eduardo Sanovicz, referiu que “nenhuma empresa recorreu ao empréstimo do BNDES porque a proposta do banco não atendia os interesses das empresas. E elas optaram por pegar recursos no mercado em condições até mais favoráveis” (BOUÇAS, Cibele. Voamos 85% da malha doméstica em novembro e faremos mais, diz presidente da Azul. Valor, São Paulo, 14 dez. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/ noticia/2020/12/14/voamos-85percent-da-malha-domestica-em-novembro-e-faremos-mais-diz-presidente-da-azul.ghtml. Acesso em: 10 jan. 2021.

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  • Brave

    é advogada especialista em Direito do Turismo e relações de consumo.

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    é doutoranda e mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Francês e Europeu dos Contratos pela Université Savoie Mont Blanc, em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS e em Direito Público pelo UniCEUB.

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