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Advocacia criminal para colaboradores

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13 de janeiro de 2021, 7h13

A colaboração premiada ingressou no ordenamento jurídico pátrio como uma prova nominada, pois embora fosse citada por diversos dispositivos legais esparsos, ela não tinha procedimento probatório tipificado até o advento da Lei nº 12.850/13.

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Sua natureza jurídica é de meio de pesquisa (ou investigação), pois tem natureza extraprocessual e não contraditória, possuindo a finalidade de obtenção de provas materiais, não sendo, por si só, fonte de conhecimento judicial [1].

Segundo a Suprema Corte, o instituto em apreço tem natureza jurídica de negócio jurídico processual personalíssimo, pois o seu objeto é a cooperação do acusado para a investigação e processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio efeito substancial (de Direito Material), concernente à sanção premial a ser aplicada ao colaborador [2].

Na prática judiciária contemporânea, a colaboração premiada se tornou novo paradigma de Justiça negocial e antiepistêmica. Esse paradigma não está baseado na reconstrução dialética e probatória dos enunciados fáticos imputados, e, sim, em "imposição solipsística de uma 'verdade escolhida' pelo acusador" [3].

Curiosamente, a incorporação desse novel instituto negocial ao ordenamento jurídico não foi acompanhada de adaptação do marco deontológico [4]. A academia tampouco se debruçou sobre as implicações deontológicas da colaboração premiada, com raras exceções [5].

Assim, nosso objetivo é expor alguns dilemas éticos e morais enfrentados pelo advogado, quando seu cliente manifesta o desejo de celebrar acordo de colaboração premiada.

A esse propósito, a última palavra sobre a celebração desse acordo cabe ao cliente, pois são os direitos fundamentais dele que sofrerão as consequências dessa importante decisão tática [6].

Daniel Richman aponta que o defensor nem sempre consegue fazer aconselhamento de cariz neutro e objetivo sobre a decisão de colaborar com autoridades públicas, visando ao melhor interesse do cliente. Isso porque tal aconselhamento pode ser influenciado pela ideologia pessoal, ou interesses econômicos, do causídico [7].

Quanto ao aspecto ideológico, é compreensível que alguns advogados entendam que seu múnus público transcende o interesse individual do cliente, visando a determinado objetivo político (v.g. combate a abusos persecutórios, corrupção e violência policial, penas desproporcionais, racismo estrutural, seletividade do sistema penal etc.) [8].

Tal objetivo é frustrado quando o defensor se envolve em procedimento que ele considera ética e moralmente repulsivo: fazer aliança com agência do poder punitivo para viabilizar a persecução penal de terceiros, em troca da impunidade (ou punição reduzida) do cliente.

Outro aspecto é que essa aliança com o poder punitivo estatal pode ser considerada uma traição à causa comum de colegas (defensores de corréus). Isso porque o dever de solidariedade entre causídicos pode ser considerado meio de compensar abusos persecutórios.

No que tange ao aspecto econômico, a política contrária à representação de colaboradores premiados pode atender a incentivos hauridos da economia real do mercado de serviços jurídicos.

As premissas de Richman são as seguintes: 1) os acordos de colaboração premiada homologados judicialmente tornam-se públicos; 2) os clientes informados tomam conhecimento desses acordos, e consideram o advogado do colaborador (ao menos em parte) responsável pela decisão tática de colaborar com as autoridades públicas.

A consequência prática é que esse perfil de defensor tende a atrair clientela interessada em acordos de colaboração premiada, seja pela experiência profissional do causídico, seja pelas supostas relações por ele mantidas com autoridades públicas.

Uma nuance interessante é que, caso o advogado faça uma quantidade expressiva de acordos de colaboração premiada, certos clientes podem desconfiar que ele é incapaz de proporcionar defesa efetiva durante eventual julgamento. Além disso, a contratação desse defensor pode sinalizar para as autoridades públicas que o cliente já se decidiu pela via negocial, sendo desnecessária a oferta de condições vantajosas para ele.

Já outros clientes podem preferir causídicos que desaconselham acordos de colaboração premiada, pois têm restrições ideológicas ou morais a esses acordos. Isso porque, se determinado grupo de acusados concluir que a melhor estratégia no caso concreto é fazer pacto coletivo de não colaboração, a contratação de advogado ideologicamente avesso à colaboração premiada consiste em garantia contra traições desse pacto.

Nas causas do interesse de associações ou entidades (formais ou informais, lícitas ou ilícitas), o defensor que nutre relação (financeira, pessoal, profissional etc.) com o potencial alvo da colaboração premiada do seu cliente pode atuar como óbice à celebração do acordo.

A hipótese apresentada por Richman é que a demanda da clientela mais elitizada por causídicos que aconselham pacto de solidariedade entre corréus suplanta a demanda por profissionais dispostos a celebrar acordos de colaboração premiada. Nessa toada, os incentivos econômicos do mercado de serviços jurídicos podem ensejar preponderância de advogados contrários à colaboração premiada, independentemente do melhor interesse dos seus clientes.

Ao final, Richman questiona se o defensor que por princípio é contra a colaboração premiada de fato possui condições de aconselhar o seu cliente, de forma neutra e objetiva, sobre os potenciais benefícios e riscos advindos da celebração desse acordo.

Hodiernamente, alguns causídicos adotam a política de recusar o patrocínio dos interesses de colaboradores premiados, por considerarem antiética e imoral essa vertente de atuação profissional.

Outros advogados entendem que essa política tem cariz elitista, só estando disponível para defensores privados bem sucedidos, e não aos demais defensores privados ou defensores públicos. Além disso, há acusados cuja situação processual os priva de qualquer alternativa realista à colaboração premiada. Por fim, há acusados que ficarão desprovidos de defesa efetiva, caso os causídicos se pautem por critérios de ética ou moralidade pessoal, ao decidirem quem merece a sua assistência jurídica.

Barry Tarlow defende que — independentemente de quaisquer opiniões pessoais sobre a colaboração premiada — todos os advogados devem apoiar o direito individual de colega exercer julgamento independente, recusando-se a participar de atividades colaborativas com agências do poder punitivo [9].

O reconhecimento desse direito não autoriza a conclusão de que tal postura profissional é moralmente superior (ou inferior) a outras crenças pessoais, só que o defensor não pode ser privado de tomar decisões baseadas na sua consciência pessoal.

Segundo Tarlow, a política de não representar colaboradores premiados é consistente com o melhor interesse do cliente, desde que: 1) o cliente manifeste sua concordância informada com representação processual limitada pelos princípios éticos e morais do causídico; 2) o advogado concorde em aconselhar o cliente sobre a alternativa negocial e informe o cliente sobre quaisquer propostas recebidas de autoridades públicas nesse sentido; 3) as partes concordem que, caso o cliente opte pela colaboração premiada, o defensor o auxiliará a buscar substituto.

Do ponto de vista estratégico, pode melhor atender ao interesse do cliente postura mais aguerrida e vigorosa do causídico, desinteressada em manter relações diplomáticas com autoridades públicas. Por outro flanco, estratégia e táticas mais beligerantes do advogado podem colocá-lo em situação de desvantagem, caso ele posteriormente precise estabelecer relação negocial com autoridades públicas.

Assim, independentemente das questões éticas e morais suscitadas pela colaboração premiada, a estratégia processual por si só pode recomendar que outro defensor conduza as negociações da colaboração premiada.

Ainda de acordo com Tarlow, a ideia de que o causídico não deve considerar seus próprios valores éticos e morais sobre a colaboração premiada viola a deontologia advocatícia, pondo em causa os princípios fundamentais do sistema de administração da Justiça criminal.

Isso porque o preconceito social contra advogados — retratados como pistoleiros de aluguel amorais capazes de fazer qualquer coisa para assegurar a impunidade dos seus clientes pelo preço certo — pode ser reforçado pela ideia de que a conduta do defensor não deve ser governada por valores éticos e morais.

A conclusão é no sentido da importância de que todos os causídicos apoiem o direito de colega exercer sua autonomia e moralidade, de forma responsável. A proteção do sobredito direito é essencial para a advocacia e integridade do sistema de administração da justiça criminal.

O artigo 1.16(b)(4) das Regras-Modelo de Conduta Profissional (Model Rules of Professional Conduct) da American Bar Association (ABA) permite a renúncia ao mandato quando o cliente insistir em adotar conduta que o advogado considera repugnante, ou da qual ele tem discordância fundamental.

Com base nesse dispositivo, Tarlow sustenta que o envolvimento compulsório em atividades colaborativas com autoridades públicas violaria a autonomia e responsabilidade pessoal do defensor.

Isso porque eventual clivagem entre conduta profissional e valores éticos e morais do causídico o privaria de bússola ética norteadora de decisões principiológicas, comprometendo sua discrição ética e julgamento reflexivo.

Nada obstante, caso o profissional opte pela política de não representar colaboradores premiados, ele deve informar o cliente a respeito já durante a primeira entrevista, assegurando que o cliente compreendeu tal política e seus motivos, e que todas as opções estratégicas e táticas processuais do cliente continuam preservadas.

Essa informação deve abarcar os seguintes aspectos: 1) o advogado está disponível para debater com o cliente as suas opções negociais; 2) o defensor comunicará o cliente sobre quaisquer propostas recebidas de autoridades públicas, e as discutirá com o cliente; 3) o causídico indagará as autoridades públicas sobre a possibilidade de negociação, caso o cliente tenha tal interesse; 4) o cliente compreende que seu advogado renunciará ao mandato e não participará de negociações visando a acordo de colaboração premiada, havendo necessidade de contratação de novo defensor; 5) o causídico atuará na defesa dos interesses do cliente durante o julgamento, caso seja malograda a tentativa de colaboração [10].

Há quatro possíveis objeções à política de não patrocinar os interesses de colaboradores premiados.

A primeira é que tal postura implica julgamento moral desfavorável ao cliente e suas escolhas. Para Tarlow, não se trata de julgamento moral sobre a pessoa do cliente, nem sobre o crime imputado, e, sim, sobre o envolvimento pessoal do advogado em procedimento de colaboração premiada que ele considera ética e moralmente repulsivo.

A segunda é que defensores públicos não podem declinar o patrocínio dos interesses de colaborador premiado hipossuficiente. Segundo Tarlow, o regime deontológico da Defensoria Pública impede o patrocínio de causa contrária aos valores éticos e morais do defensor. Nesse caso, é possível a nomeação judicial de defensor dativo privado para o interessado na colaboração premiada.

A terceira é que tal política pode resultar de ganância pessoal, visando à captação de causas financiadas por terceiros que têm medo de incriminação pela colaboração premiada do cliente. Tarlow rebate que a política em apreço impõe recusa de quantidade considerável de causas lucrativas, que proporcionam ao advogado muito menos trabalho do que a defesa do cliente durante julgamento contencioso.

A derradeira é que o rigor das penas corporais e seus critérios de aplicação judicial podem tornar a colaboração premiada a única opção tática factível para o cliente. Malgrado Tarlow reconheça que o precitado rigor mudou o cálculo moral subjacente à decisão de fazer colaboração premiada, isso não é suficiente para justificar violação da ética e moralidade pessoal do defensor.

Assim, é lícito concluir que o instituto da colaboração premiada, malgrado suscite dilemas éticos e morais que não são poucos, nem simples, nem de fácil resolução, não possui marco deontológico advocatício adequado.

Por exemplo: como reconciliar, na prática, a autodeterminação ética e moral do causídico contrário à colaboração premiada com o direito do cliente ao aconselhamento neutro e objetivo sobre a opção de colaborar com autoridades públicas, visando ao seu melhor interesse?

 


[1] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos sobre o processo penal brasileiro), In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoide (Orgs.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover, pp. 303-318. São Paulo: DPJ Editora, 2005.

[2] STF, Pleno, HC 127.483-PR, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 04.02.2016.

[3] BADARÓ, Gustavo. A colaboração premiada: Meio de prova, meio de obtenção de prova ou um novo modelo de justiça penal não epistêmica, In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Coords.). Colaboração premiada, pp. 127-149. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

[4] No Código de Ética e de Conduta do Ministério Público da União e no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos advogados do Brasil nem sequer há referência à colaboração premiada. A Orientação Conjunta nº 01/18, das 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, contém preceitos deontológicos sobre a atuação de procuradores da República em acordos dessa natureza.

[5] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de; SOUSA, Matheus Herren Falivene de. Código de ética da advocacia na justiça criminal negocial: Proposta de regras deontológicas para integridade defensiva na colaboração premiada, In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, n. 303, pp. 13-15, fev. 2018.

[6] BURKOFF, John. Flipper ethics, In: Champion, February 2007, p. 38.

[7] RICHMAN, Daniel. Cooperating clients, In: Ohio State Law Journal, v. 56, n. 01, pp. 69-151, 1995.

[8] ETIENNE, Margareth. The ethics of cause lawyering: An empirical examination of criminal defense lawyers as cause lawyers, In: Journal of Criminal Law & Criminology, v. 95, n. 04, pp. 1.195-1.260, 2004-2005.

[9] TARLOW, Barry. The moral conundrum of representing the rat, In: Champion, March 2006, p. 64.

[10] É recomendável que todos esses termos e condições constem do contrato de honorários advocatícios, e a procuração limite os poderes outorgados à representação contenciosa (não negocial) do cliente, demonstrando-se a boa-fé objetiva do defensor.

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