Opinião

Restabelecimento da proibição de despejos na Covid-19 pelo STF é um alento

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12 de janeiro de 2021, 6h04

No apagar das luzes de 2020 e em reclamação movida pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ), o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, restabeleceu a eficácia da Lei Estadual nº 9.020/2020, que suspende o cumprimento de ordens de despejo, reintegrações e imissões de posse e remoções no estado do Rio de Janeiro em ações distribuídas durante a pandemia da Covid-19. Isso porque, em representação de inconstitucionalidade apresentada pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), o desembargador Ferdinaldo do Nascimento, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), deferiu medida liminar para suspender a integralidade da referida lei, sob o fundamento de que havia fumaça de inconstitucionalidade, por suposta violação à competência privativa da União para legislar sobre direito civil e processo civil.

Antes de adentrar nos meandros da decisão, é preciso relembrar que a Lei Estadual nº 9.020/2020 foi produto de ampla articulação dos movimentos sociais voltados à preservação da vida e da moradia de pessoas vulneráveis durante a pandemia. De fato, diante da recomendação sanitária de que todos permanecessem em casa, o cumprimento de ordens de despejo em geral geraria deslocamento de pessoas, maior risco de contaminação e transmissão do vírus, bem como agravaria a crise social vivenciada. Nesse ponto, não há como não se recordar da efetivação da ordem de reintegração de posse na Casa Nem em 24 de agosto, ocasião em que 35 famílias foram desalojadas e foram deslocados diversos servidores públicos, um número significativo de policiais, guardas municipais, assistentes sociais, além de jornalistas, transeuntes e vizinhos [1].

Diante dessa conjuntura, não à toa, o relator especial das Nações Unidas sobre direito à moradia pediu que o Brasil suspendesse todos os tipos de despejo enquanto durar a pandemia, reconhecendo-os como uma espécie de violação de direitos humanos [2]. Além disso, medidas semelhantes foram adotadas em outros países do mundo, como nos Estados Unidos [3] e na França [4].

Foi nesse contexto, portanto, que nada menos que 11 parlamentares apresentaram o projeto que deu origem à Lei Estadual nº 9.020/2020 perante a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), em 18/3/2020. Após ter sido vetado pelo governador do Estado, o veto foi integralmente rejeitado pela Alerj, culminando com a promulgação da lei em 25 de setembro.

Feito esse breve introito, surgem três pontos que merecem maiores considerações: o primeiro, referente à existência ou não de vício formal de inconstitucionalidade, por violação à competência privativa da União; o segundo, relativo à (i)legitimidade de uma associação de magistrados para pleitear a declaração de inconstitucionalidade de uma lei pelo simples fato de ela sobrestar o cumprimento de decisões proferidas por juízes; e o terceiro, atinente à (in)viabilidade de que decisão monocrática determine a suspensão de uma lei, sem que haja posterior submissão da mesma a referendo do colegiado.

Adentrando no primeiro e principal ponto, não nos parece que a lei estadual viole a competência privativa da União para legislar sobre direito e processo civil (artigo 22, I, da CRFB). Em razão da complexidade dos esforços requeridos para contenção do novo coronavírus e do fato de que as normas editadas para tanto, comumente, tratam de diversas matérias (v.g., saúde, transporte, educação), que se sujeitam a regras de competências distintas, são frequentes os conflitos potenciais entre as respectivas normas constitucionais de competência. Em tais situações, há de se analisar a questão central tratada pela norma e, no caso da pandemia, não há dúvidas de que ela é a saúde pública [5]. Afinal, sem o vírus, não haveria necessidade de adoção de quaisquer dessas medidas.

Trata-se exatamente da situação em comento: o artigo 1º da Lei Estadual nº 9.020/2020 foi editado com o objetivo de adotar medidas destinadas a mitigar a propagação do novo coronavírus. Com efeito, a despeito de dispor sobre o sobrestamento de mandados de reintegração de posse, despejo, dentre outros, não se pode perder de vista o seu objetivo central: impedir que milhares de pessoas sejam desalojadas de suas respectivas residências, fiquem à mercê da própria sorte em meio a uma pandemia e não possam, por consequência, cumprir uma das principais medidas para evitar a propagação do vírus — ficar em casa.

Nesse sentido, em se tratando de saúde pública, incide a regra do artigo 24, §2º, da Constituição da República e do artigo 74, §1º, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro: cabe à União editar normas gerais e, aos Estados e municípios, normas suplementares. Dessa forma, não havendo conflito da norma estadual com qualquer norma federal, salta aos olhos que o Estado agiu de acordo com a sua competência suplementar.

A esse propósito, na ADPF nº 672, o STF reconheceu a competência concorrente dos Estados e suplementar dos municípios para legislar sobre proteção à saúde em tempos de pandemia. Mas, indo além, a decisão reconheceu a possibilidade de Estados e municípios adotarem medidas restritivas de direitos durante a pandemia — incluindo a suspensão de atividades e circulação de pessoas — "independentemente de superveniência de ato federal em sentido contrário".

Após essa decisão, sobrevieram outras do STF no mesmo sentido. No referendo da medida cautelar da ADI nº 6341, o Plenário decidiu que os Estados e municípios possuem competência para definir quais são as atividades essenciais cujo funcionamento deve ser resguardado durante a pandemia dentro de seu próprio território, a despeito do que dispuser a União sobre o tema. Adotando a mesma ratio, no referendo da medida cautelar da ADI nº 6343, o plenário decidiu pela desnecessidade de autorização de órgãos federais para que Estados e municípios possam restringir a locomoção interestadual e intermunicipal por rodovias, portos e aeroportos durante a pandemia. Não à toa, à luz dessas decisões, o ministro Ricardo Lewandowski, recentemente, disse que o STF revalorizou o princípio federativo na pandemia [6].

Para além disso, nessas hipóteses em que a dúvida sobre a competência legislativa decorra de multidisciplinariedade, o intérprete deve ser deferente ao Poder Legislativo e acolher interpretação que não tolha a competência que detêm os entes menores para dispor sobre determinada matéria, à luz da presunção de constitucionalidade das leis e da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Trata-se da regra da presunção a favor da competência dos entes menores da federação ("presumption against preemption"), a qual já foi adotada pelo STF [7].


 

 

 

 

 

 

 

Dessa forma, no caso em análise, foi acertada a decisão do ministro Lewandowski de restabelecer a Lei Estadual nº 9.020/2020, já que reconheceu, em um exame preliminar, afronta ao entendimento prevalecente no STF de que as medidas de proteção à saúde pública durante a pandemia são matéria de competência legislativa concorrente, sem hierarquia entre os entes da federação. Para o relator, o sobrestamento imposto pela lei, ao menos a princípio, é temporário, levando-se em conta a complexidade atualmente enfrentada em razão da pandemia. A situação se agrava diante das peculiaridades da unidade federativa, cuja taxa de contágio do coronavírus é crescente e cujos serviços de saúde estão à beira de um colapso [8].

 

Lado outro, apesar de não ter sido analisado pelo ministro em sua decisão, há de se debruçar sobre o segundo ponto mencionado: há pertinência temática entre as atribuições da Amaerj e a lei impugnada para justificar a sua legitimidade para o controle de constitucionalidade? Parece-nos que não. A discussão em pauta lembra recente fala do ministro Gilmar Mendes quando decidiu que a Associação Nacional de Membros do Ministério Público (Conamp) não tem legitimidade para propor ADPF impugnando concessões da ordem em Habeas Corpus coletivos. Na ocasião, o ministro bem lembrou que a tese do Conamp é baseada na "controvertida e injuriosa premissa de que a defesa das prerrogativas dos membros do MP confunde-se com o interesse processual da acusação, como se a ordem concessiva dos Habeas Corpus pudesse de forma direta violar o interesse coletivo da categoria" [9].

A mesma razão há de ser aplicada ao presente caso. A lei em questão nada impõe aos magistrados, em nada lhes atinge direitos, vantagens ou prerrogativas. O interesse que eles possam ter na desconstituição dos dispositivos impugnados será o mesmo que tenham os cidadãos em geral, contrários, por razões diversas, à suspensão dos despejos. Assim, decidir que a Amaerj tem pertinência temática única e exclusivamente porque seus associados proferem as decisões determinando reintegrações de posse e despejos significa entender que a defesa das prerrogativas dos magistrados confunde-se com um interesse processual destes determinarem tais remoções, o que não se coaduna com um sistema republicano.

No mais, como incumbe aos juízes interpretar e aplicar todo o direito, estar-se-ia concedendo, por via transversa, a suas associações de classe uma legitimidade universal para propositura de representações de inconstitucionalidade, alçando-as a um patamar superior às demais associações legitimadas. Estar-se-ia, assim, elitizando ainda mais o controle de constitucionalidade estadual, na contramão da ratio da recente decisão do STF na ADPF 709, que admitiu que instituições que representem grupos vulneráveis proponham ações diretas, com fundamento no artigo 103, IX, da Constituição [10].

Por fim, o terceiro ponto que merece consideração é que, após a intensa articulação social e parlamentar já narrada, a lei estadual foi integralmente suspensa por decisão monocrática de um desembargador do TJE-RJ, sem que tenha sido submetida a referendo posterior do colegiado na sessão subsequente. O tema está na ordem do dia após o "caso André do Rap" [11] e as discussões sobre a mudança do regimento interno do STF [12], mas parece ter sido perdido de vista pelo TJERJ. Aliás, para além da importância da cláusula de reserva de plenário (artigo 97 da CRFB) e dos princípios da colegialidade e da separação dos poderes, a omissão em submeter a liminar a referendo do órgão especial violou o próprio regimento interno do TJ-RJ, que, nesses casos, exige a apresentação do processo em mesa na primeira sessão subsequente (artigo 105, §3º).

Desse modo, a decisão do ministro Ricardo Lewandowski é um alento para o pacto federativo, o sistema republicano e a separação dos poderes. É um alento, ainda, para milhares de pessoas vulneráveis que residem em um estado marcado pela desigualdade social e que precisam ver assegurados o seu direito à saúde e à moradia em meio a essa crise humanitária que vivemos. Nesses tempos difíceis, há de se festejar quando o Poder Judiciário tem fôlego e coragem para exercer uma jurisdição anticíclica [13], voltada a moderar o ciclo autoritário e à proteção dos direitos fundamentais.

 

 


[1] G1. Justiça determina reintegração de posse do prédio onde funciona a Casa Nem, em Copacabana, no Rio. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/08/24/justica-determina-reintegracao-de-posse-do-predio-onde-funciona-a-casa-nem-em-copacabana-no-rio.ghtml. Acesso em 6/1/2020.

[2] ONU NEWS. Relator da ONU diz que Brasil tem que suspender despejos durante pandemia. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/07/1719591. Acesso em 6/1/2021.

[3] O GLOBO. Nova York estende proibição de despejos na pandemia. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/nova-york-estende-proibicao-de-despejos-na-pandemia-24815825. Acesso em 06/01/2020; THE CHARLOTTE OBSERVER. NC Courts stop evictions and foreclosures as part of coronavirus responde. Disponvel em: https://www.charlotteobserver.com/news/coronavirus/article241226521.html. Acesso em 6/1/2021.


 

[4] LE MONDE. Logement: la trêve hivernale est prolongée de deux mois. Disponível em: https://www.lemonde.fr/argent/article/2020/03/13/logement-la-treve-hivernale-est-prolongee-de-deux-mois_6032970_1657007.html. Acesso em 6/1/2021.

[5] BRANDÃO, Rodrigo. Coronavírus e o conflito federativo. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coronavirus-e-o-conflitofederativo-11042020 Acesso em 24/11/2020.

[6] STF. Lewandowski diz que STF revalorizou o federalismo na pandemia. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=448639. Acesso em 24/11/2020.

[7] STF, ADI 3110, Tribunal Pleno, rel. min. Edson Fachin, Julgamento: 4/5/2020, Publicação: 10/6/2020

[8] STF. Restabelecida lei que suspende despejos e remoções no RJ durante a pandemia. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=458112&ori=1. Acesso em 6/1/2021.

[9] ConJur. MP não é apenas órgão acusatório e deve defender direitos de réus, diz Gilmar. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-09/mp-nao-apenas-orgao-acusatorio-defender-direitos-gilmar. Acesso em 17/12/2020.

[10] SARMENTO, Daniel. Jurisdição constitucional e o empoderamento dos excluídos. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-jurisdicao-constitucional-e-o-empoderamento-dos-excluidos-15082020. Acesso em 6/1/2021.

[11] JORNAL DE BRASÍLIA. Após caso André do Rap, Fux quer que liminares sejam submetidas imediatamente ao plenário do STF. Disponível em: https://jornaldebrasilia.com.br/politica-e-poder/apos-caso-andre-do-rap-fux-quer-que-liminares-sejam-submetidas-imediatamente-ao-plenario-do-stf/. Acesso em 6/1/2021.

[12] ConJur. Gilmar Mendes propõe mudanças no regimento interno do Supremo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-21/gilmar-propoe-mudancas-regimento-interno-stf. Acesso em 06/01/2020; STF. Mudanças no Regimento Interno enfatizam atuação colegiada do STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=446754&ori=1. Acesso em 6/1/2021.

[13] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Democracia militante e jurisdição constitucional anticíclica. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/democracia-militante-e-jurisdicao-constitucional-anticiclica-16052020. Acesso em 7/1/2021.

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