Opinião

Santa Tereza D’Avila, o juiz das garantias e o STF: pequenas digressões

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11 de janeiro de 2021, 10h10

Spacca
Diligentemente, o Instituto de Garantias Processuais ingressou com habeas corpus coletivo com o objetivo de suspender a decisão monocrática proferida pelo ministro. Luiz Fux, em 22 de janeiro de 2020, nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, que tratam do Juiz das Garantias.

Por que o IGP tem razão? Simples. Um Ministro do STF pode suspender, cautelarmente, uma lei ou parte dela. Porém, não o pode para sempre ou sine die.

Por quê? Porque existe o artigo 97 da CF e o artigo 10 da Lei 9.868 que tratam do assunto. A cautelar monocrática é só permitida no recesso. De uma leitura sistemática, tem-se que, por ser exceção, terminado o recesso judiciário a liminar deverá ser submetida ao Plenário. Não me parece haver outra leitura acerca da dicção dos dois dispositivos que tratam da matéria.

Dito isso, levando em conta aquilo que se entende como Rule of Law (que é mais do que simples Estado de Direito), não pode restar dúvida sobre a seguinte questão: a decisão do ministro Luiz Fux se tornou inconstitucional ao não ser submetida ao plenário. Ou isso ou a Lei 9.868 é inconstitucional. Ou o artigo 97 da CF é inócuo.

Repiso aqui uma citação minha que está na muito bem formulada inicial do IGP:

"Minha crítica é, pois, sistêmica. Objetiva a preservação dos direitos constitucionais dos que são atingidos e pelos que são beneficiados por uma decisão em sede cautelar. Há um direito fundamental dos cidadãos no sentido de que sejam cumpridos os artigos 10 da Lei 9.868 e 97 da CF. Parece-me que o legislador foi sábio no sentido de permitir que, no recesso, a cautelar possa ser emitida monocraticamente. Mas me parece, também, que foi mais sábio ainda ao exigir que, imediatamente, essa mesma decisão seja submetida aos demais membros do STF" (ler aqui).

O Supremo Tribunal pode aproveitar, ao julgar esse HC, para pagar uma dívida para com o sistema jurídico. Há dezenas de decisões monocráticas em situação idêntica. Se a Constituição mesma diz, no artigo 97, que inconstitucionalidades devem ser declaradas via full bench (plenário), por qual razão uma decisão monocrática pode atravessar meses e anos? A resposta parece simples.

André Rufino de há muito trata dessa pauta, assim como o próprio ministro Gilmar Mendes (artigo de ambos na nota1) e, a seguir, em outro artigo do qual extraio a seguinte observação:

O fato da existência de leis e atos normativos com vigência suspensa (há anos) por decisão judicial de apenas um indivíduo deveria ser motivo de muita preocupação, especialmente do próprio Supremo Tribunal Federal. A manutenção dessas decisões enseja um estado de coisas inconstitucional, que afronta especialmente a regra constitucional da reserva de plenário, mas que também significa uma afronta a todo o sistema de divisão funcional de poderes e, enfim, à própria democracia representativa. Enquanto a teoria e a filosofia do direito e da política permanecem discutindo a fundo sobre a (i)legitimidade democrática do poder conferido a um grupo de juízes para suspender e/ou anular (com efeitos gerais) os atos políticos dos demais Poderes, é certo que não resta mais a menor dúvida de que, em uma democracia, um único juiz não deve deter todo esse poder (aqui).

Se se entender que uma decisão monocrática no âmbito do controle de constitucionalidade pode valer como uma "medida provisória sem prazo" ou um ato de império feito por um só juiz, então teremos que alterar a própria Constituição. O artigo 97 já nada mais valerá. E a Lei 9868 também não.

No caso do HC impetrado pelo IGP, mais do que os direitos fundamentais violados dos réus que não estão sendo julgados por um juiz competente determinado por uma lei suspensa por juízo monocrático, há um direito líquido e certo da cidadania brasileira em ver julgado, imediatamente, essa importante lei. Um direito líquido, certo e exigível!

Não há só um dever fundamental de o STF apreciar, de imediato, a liminar monocrática em seu plenário; há um direito fundamental de todos os prejudicados, os quais, quem sabe, podem vir a demandar o Estado em futuro próximo, se o STF julgar improcedente as referidas ADIs.

A propósito: Em 2018, o Ministro Alexandre de Moraes, em palestra (https://bit.ly/2zVjsXT.), sugeriu que se alterasse o RISTF para acelerar o julgamento de liminares monocráticas. Coincidentemente, é o próprio Ministro Alexandre quem é o relator do HC impetrado pelo IGP.

Post scriptum: O que Santa Tereza de Ávila tem a ver com o juiz de garantias?

Bom, tudo e nada. Ela pode ser a padroeira do Juiz das Garantias. Por analogia. Ou por licença (bem) poética de minha parte. Explico, com todo carinho e respeito pela Santa.

Conta-se (o Prof. Vicente Barreto quem conta bem a história) que ela era uma mulher de princípios. Implacável. Doutora da Igreja. Ia ela em direção a um mosteiro quando uma roda da carroça ficou presa em um buraco da estrada. Chovia que "Deus mandava". Raios. Mais chuva. E ela e o cocheiro tentando tirar a roda. E chovia. E os raios passavam raspando. De repente, Santa Tereza vira-se, olha para o céu e, dedo em riste, esbraveja, dizendo um palavrão: Você aí, qual é a sua? Faz isso com os seus? Depois você se queixa…!

Pois é. Há poucos dias saiu um livro acusando o STF de fazer catimba e antijogo (ver aqui). Os inimigos do STF adoraram. Festejaram. Malhar o STF é um esporte em alta. Como o Presidente sabe, sou amicus e não inimicus da Corte. Estes ela já os têm de sobra. Portanto, este texto, o HC do IGP e as ações a favor dos necessitados (são tantas) são um pouco do esbravejar de Santa Tereza. Algo como " — Poxa, Presidente. Mostre que a Corte joga um bolão. Tape a boca de quem diz que a Corte faz catimba e pratica o antijogo. Emudeça essa torcida. A Corte tem futebol prá isso."

Ah: tem outra genial dela: Certa vez Santa Tereza ia de uma cidade para outra. Chovia (de novo) "que Deus mandava". Ela caiu do cavalo e se sujou toda. Ouviu a voz de Deus: "É assim que eu gosto de tratar os meus chegados". E ela, de bate pronto, respondeu: "Não admira que tenha tão poucos."

Santa Tereza não deixava nada sem resposta!

Se as histórias sobre a Doutora da Igreja são verdadeiras, não posso afiançar. Mas foram bem contadas. Como devoto de Nossa Senhora de Lourdes, confesso minha queda por Santa Tereza de Ávila. Que mulher fascinante!


1 MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. Questões atuais sobre medidas cautelares no controle abstrato de constitucionalidade. In: Observatório da Jurisdição Constitucional, ano 5, 2011/2012.

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