Justiça Tributária

Faltou o reembolso do ICMS aos exportadores no acordo da Lei Kandir

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

11 de janeiro de 2021, 8h02

Spacca
Finalmente acabou a novela do acordo da Lei Kandir na disputa entre estados e a União. Porém, ficou faltando uma perna nesse ajuste, que envolve três partes, uma delas esquecida, que é a das empresas exportadoras.

Voltarei o filme uns quadros para poder situar aqueles que não acompanharam toda a novela.

A Constituição de 1988 originalmente permitiu aos Estados tributar, via ICMS, a exportação de mercadorias, o que era um erro, pois não se deve usar tributos primordialmente arrecadatórios para situações que devem ser reguladas apenas de forma regulatória pela União, via Imposto de Exportação.

Isso foi corrigido pela Lei Kandir (Lei Complementar 87/96), que proibiu esta tributação e criou um fundo temporário para compensar as perdas de arrecadação dos cofres estaduais.

Posteriormente, através da Emenda Constitucional 42/03 foram criados dois artigos. Um no corpo permanente (artigo 155, § 2º, X, “a”) e outro no ADCT (artigo 91).

O artigo 155, § 2º, X, “a” determinou que às empresas exportadoras fosse “assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”. Ou seja, tais empresas deveriam manter seus créditos.

E o artigo 91 (ADCT) determinou que fosse criada uma “fonte de recursos federal” para financiar os Estados a pagar esses valores, em montante a ser definido em lei complementar, de acordo com critérios, prazos e condições nela determinados, podendo considerar algumas variáveis.

Pois bem, o estado do Pará ingressou com uma ação perante o STF (ADO 25) pedindo que o STF declarasse em mora o Congresso Nacional em razão de não haver editado essa lei complementar prevista no artigo 91, ADCT. Foi relator o Ministro Gilmar Mendes, que, em determinado momento do trâmite, presidiu um acordo histórico firmado entre todos os Estados e a União, pelo qual a União se comprometeu a transferir aos entes descentralizados R$ 62 bilhões no período entre 2020 e 2037. Isso foi “sacramentado” pela Lei Complementar 176, publicada em 29/12/2020, sendo que a primeira parte dos recursos já foi transferida.

Tudo indica que o conflito interfederativo foi encerrado. Porém, como fica o ressarcimento dos exportadores, parte privada nesse conflito?

Para compreensão do papel das empresas exportadoras é necessário considerar que: (1) o comércio internacional é algo importante para o país, que necessita de reservas internacionais decorrentes da balança comercial; (2) existem resíduos tributários na cadeia exportadora, pois incide ICMS na compra dos insumos para produção dos bens a serem exportados e, a despeito de não haver tributação na exportação, estes resíduos oneram o produto; (3) existe uma regra simples em comércio exterior: não se exporta tributos, apenas mercadorias; logo, não permitir que as empresas exportadoras sejam compensadas desses resíduos implica em tornar os bens exportados mais caros, isto é, não competitivos no mercado internacional – o que acarreta menos vendas e menos saldos na balança comercial internacional, o que é importante para o país. Lucas Bevilacqua tratou de todos esses pontos em sua tese de doutorado, transformada em livro.

Este é o ponto omisso no histórico acordo realizado: não ficou claro que cabe aos exportadores a compensação desses resíduos, decorrentes dos valores transferidos aos Estados. Os R$ 62 bilhões estão formalmente desvinculados dessa compensação, ingressando sem carimbo nos cofres estaduais, o que manterá essas empresas com o pires na mão implorando aos Estados o ressarcimento desses valores, o que se configura um desrespeito ao artigo 155, § 2º, X, “a” da CF.

Em síntese: o conflito interfederativo foi resolvido (artigo 91, ADCT), mas o conflito privado remanesce, descumprindo a Constituição (artigo 155, § 2º, X, “a”).

Alguém dirá: o texto está errado, pois os Estados compensam estas perdas regularmente. Tal alegação será falsa, pois estas compensações são enormemente dificultadas pelos Estados, conforme exposto por Paulo Duarte e Guilherme Mendes, com exemplos dos Estados de São Paulo e Minas Gerais, que poderiam ser ampliados.

Em coluna escrita no já remoto janeiro de 2017, alertei para esse ponto: quem ficará com o dinheiro do Fundo da Lei Kandir? Infelizmente, o acordo histórico não foi claro nesse aspecto.

Naquele texto escrevi: “Não se pode ler o artigo 91 do ADCT sem conectá-lo direta e imediatamente ao artigo 155, parágrafo 2º, X, ‘a’ da Constituição — ambos criados pela mesma EC 42, de 2003. Aliás, a própria petição inicial da ADO 25 faz a conexão entre os dois artigos, embora silencie quanto ao ressarcimento dos exportadores.”

O que fazer? As empresas exportadoras devem ir ao Poder Judiciário para vincular um artigo constitucional a outro, fazendo com que estes R$ 62 bilhões, a serem pagos entre 2020 e 2037, sejam usados primordialmente para compensar as empresas exportadoras. Porém tais empresas devem agir logo, senão esses recursos irão pelo ralo, dia a dia.

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