Opinião

O ICMS recolhido não é o existente na receita das empresas

Autor

  • Nicolau Abrahão Haddad Neto

    é advogado sócio-fundador da Advocacia Haddad Neto especialista em Direito Tributário pelo CEU-IICS mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie e professor convidado da FGV-SP (GV-LAW).

10 de janeiro de 2021, 7h12

Como se sabe, em 2017 o Supremo Tribunal Federal decidiu na sistemática da repercussão geral um tema tributário importantíssimo, assentando essencialmente que "o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins" (RE 574.706-PR). Portanto, no mérito do tema tem-se que o ICMS ("todo ele") deva ser excluído da receita bruta ou do faturamento dos contribuintes (base de cálculo daqueles tributos), conforme o dispositivo do próprio acórdão, de relatoria da ministra Cármen Lúcia.

Referido decisum fora endossado de pronto pelos ministros Luiz Fux e Rosa Weber (atuais presidente e vice-presidente do STF, respectivamente), além de Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello — hoje substituído pelo ministro Kassio Nunes Marques. Como colocado, a decisão está concluída com relação ao mérito, o que a torna imodificável nesse sentido. Mas a Fazenda Nacional suscitou discussão principalmente sobre o quantum de ICMS que deve ser retirado da base de cálculo do PIS e da Cofins, de modo que remanesce a necessidade de esclarecimentos importantíssimos, para o que é nossa pretensão contribuir.

A Fazenda quer excluir da receita bruta dos contribuintes apenas o ICMS que houver sido efetivamente recolhido. Entretanto, isso somente seria cogitável se o respectivo valor recolhido correspondesse ao tanto de ICMS que realmente existisse na receita bruta das empresas, o que não ocorre, não somente porque as bases de cálculo de PIS e Cofins são completamente distintas da do ICMS (daqueles, a receita e deste, o preço), como também, e principalmente, em razão de peculiaridades desse imposto.

A apuração do ICMS computa a incidência deste imposto em diversos componentes da receita das empresas, por meio de direito a crédito ou creditamento de ICMS, mas não o faz em relação ao ICMS existente em "toda" a receita.

Deve-se observar que a questão que envolve o crédito ou creditamento, para efeito de apuração do ICMS recolhido aos diversos Estados da federação, tem reflexo direto no quantum que desse imposto existe na receita das empresas e toda limitação de crédito ou creditamento que no ICMS é efetivada resulta na sua mantença na receita das empresas. E o creditamento de ICMS é aspecto tão intricada que tem gerado uma judicialização incontestável.

Uma singela pesquisa jurisprudencial bem ilustra toda a problemática que envolve o tema e que demonstra que o ICMS recolhido não contempla todo o ICMS existente na receita da empresa. Ligeira pesquisa no sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça nos apresenta 83 relevantes exemplos disso, sendo certo que nos utilizamos de critérios de busca extremamente restritos ("insumo", "crédito" e "ICMS"). Os números de tais processos são os seguintes, para todos poderem conferir a evidência: AREsp 1079725, AgInt no REsp 1802032, REsp 1816565, REsp 1808979, REsp 1808979, EDcl no AgInt no AREsp 991299, AgInt no REsp 1653671, AgRg no REsp 1315268, AgInt no AREsp 706338, AgInt no AREsp 986861, REsp 1594374, REsp 1645827, AREsp 851938, AgRg no REsp 1524609, REsp 1425740, AgRg no REsp 1345124, AgRg no AREsp 325916, AgRg no REsp 1493322, AgRg no AREsp 293848, REsp 1435626, AgRg no REsp 1396201, REsp 1357935, AgRg no AREsp 224082, EDcl no REsp 1322072, AgRg no REsp 1199262, EDcl nos EDcl no Ag 1297351, RMS 31641, REsp 1090156, AgRg nos EREsp 770648, AgRg no REsp 1127416, REsp 1175166, AgRg no Ag 1182149, RMS 28248, REsp 690769, AgRg no REsp 834303, EDcl no REsp 904082, RMS 23730, EDcl no REsp 1085542, AgRg no Ag 1022174, RMS 24637, AgRg na MC 14312, REsp 919363, REsp 708650, REsp 867895, EDcl nos EDcl no REsp 770648, REsp 885018, REsp 770648, REsp 623583, RMS 20454, REsp 799724, REsp 782074, AgRg no REsp 731885, REsp 678988, RMS 19521, REsp 638745, REsp 690938, REsp 740285, RMS 19176, AgRg no Ag 655552, REsp 667308, AgRg no REsp 132828, AgRg nos EREsp 259877, REsp 552167, REsp 539626, AgRg no RMS 13390, EREsp 254099, EREsp 144575, REsp 336299, RMS 11438, RMS 10701, REsp 264507, REsp 119900, EDcl no REsp 101797, REsp 117135, REsp 113917, REsp 110481, REsp 52671, REsp 88161, REsp 90615, REsp 84808, REsp 55810, REsp 59185 e REsp 22340 (levantamento realizado aqui, último acesso em 16/12/2020, às 8h15).

Isso decorre até mesmo da complexidade de interpretação do ICMS, que não tem sua multiplicidade de incidências neutralizada pela norma constitucional da não cumulatividade. Longe disso, não se contempla no ICMS recolhido todo o ICMS existente nas operações de uma empresa.

Em verdade, no próprio regime jurídico desse imposto nem toda nota fiscal paga pelo contribuinte é considerada para se apurar o ICMS recolhido. É relevantíssimo que se entenda isso, a fim de se buscar excluir "todo" o ICMS existente na receita ou no faturamento das empresas pagadoras de PIS e de Cofins.

Tomemos um exemplo, para facilitar a apreensão, considerando pagamentos tributados pelo ICMS e realizados pela empresa em um dado mês:

1) Pagou R$ 3 mil em itens de escritório, higiene e limpeza;

2) Pagou R$ 5 mil em EPI;

3) Pagou R$ 5 mil em itens considerados não essenciais à atividade da empresa pela legislação do ICMS, apesar serem consumidos no processo de fabricação;

4) Pagou R$ 5 mil para transportar artigos ligados ao processo produtivo, no entanto não incorporados ao produto final;

5) Pagou R$ 5 mil a título dos chamados materiais de uso e consumo;

6) Pagou R$ 5 mil pela reposição de peças desgastadas do seu maquinário;

7) Pagou R$ 7 mil em serviços de comunicação;

8) Computou o pagamento de R$15 mil (quinta parte de um total de R$ 75 mil), utilizado com equipamentos fabris; e

9) Pagou R$ 50 mil de insumo para a fabricação.

Obviamente, tais pagamentos serão cobertos pela receita que a empresa terá ou, em outras palavras, em tal receita estarão contemplados todos os nove pagamentos acima, pagamentos nos quais sem dúvida há ICMS, inclusive, destacado nas notas fiscais. E todo esse ICMS deverá ser retirado da receita bruta da empresa, para efeitos de PIS e de Cofins, se se desejar por em prática o quanto o STF decidiu.

Certamente, essa retirada será efetivada ao se levar em conta o ICMS destacado nas correspondentes notas fiscais. Porém, se for tomado unicamente do ICMS recolhido, apenas o do nono pagamento mencionado será retirado (insumo para a fabricação).

É que a legislação do ICMS restringe o cômputo do ICMS existente em diversos itens para efeitos de se reduzir seu recolhimento. Diferentemente do ICMS que há na matéria-prima, que pode ser computado integralmente para a apuração do ICMS a recolher, quanto ao ICMS existente nos bens imobilizados, como máquinas, ainda que a atividade comporte seu repasse ao preço, à base de um quinto por mês ou 20%, como no exemplo, o regramento do ICMS não permite um aproveitamento maior do que 1/48 por mês; além disso, não é computado o ICMS que há em produtos os quais, apesar de consumidos no processo de fabricação, são considerados não essenciais para o produto final; o mesmo ocorre com os chamados materiais de uso e de consumo, cujo ICMS neles existente igualmente não é computado; idem para o das peças do maquinário, repostas por desgaste, também ordinariamente não sujeitas ao creditamento de ICMS; idem para o dos serviços de comunicação tributados pelo ICMS; idem para o existente nos materiais de escritório; idem para o dos materiais de limpeza em geral; todos eles, enfim, sem permissão normativa do respectivo crédito ou creditamento, por vezes, ainda que judicializados.

Veja-se que, no factível exemplo, os pagamentos com ICMS somaram R$ 100 mil, mas somente R$ 50 mil estariam computados na apuração do ICMS recolhido. Em outras palavras, se unicamente o valor do ICMS recolhido for retirado da receita, deixar-se-á de ser excluído 50% de todo o ICMS existente na receita da empresa.

Salta aos olhos, portanto, o porquê da judicialização acerca do direito a crédito ou creditamento de ICMS, demonstrando que o ICMS recolhido não computa todo o ICMS existente na receita da empresa e, por conseguinte, comprovando que o critério defendido pela Fazenda Nacional está dissociado do que foi decidido pelo STF.

Em contrapartida, o ICMS destacado nas notas fiscais permite a exclusão de "todo ele" — ICMS existente na receita bruta das empresas. Talvez tenha sido por isso que os ministros que votaram contra os contribuintes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, registraram em seus votos que o que se discutia no julgamento era a não inclusão do ICMS "destacado na nota fiscal", como se pode ver em pelo menos 18 menções que por eles são feitas ao longo do acórdão (nas seguintes páginas do acórdão do RE 574.706-PR podem-se conferir as menções que referidos ministros fizeram a tal evidência: pág. 14, 34, 37, 40 2 vezes; 42, 45, 110, 112, 114, 119 2 vezes; 123, 133, 136, 200, 213 e 220).

É necessário, pois, que o ministro-presidente do STF, Luiz Fux, paute o caso com a maior brevidade, em 2021, para que não pairem quaisquer inseguranças sobre o tema e para que injustiças sociais sejam tolhidas.

E tais iniquidades se efetivam até mesmo na Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) da Secretaria da Receita Federal do Brasil. Apesar de vislumbrarmos que referido órgão não cumpriu os requisitos que tornam uma solução de consulta válida e aplicável [1], a Cosit, por meio da Solução de Consulta Interna (SCI) nº 13, de 18 de outubro de 2018, absurdamente estabeleceu que "o montante a ser excluído da(s) base(s) de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins é o valor mensal do ICMS a recolher": insegurança e desordem inaceitáveis, a exigirem da Suprema Corte brasileira um brevíssimo ponto final.

 


[1] A nosso sentir, a Cosit estabeleceu uma solução de consulta juridicamente inaplicável, a referida SCI-13, porque (1) inexistiu a motivação jurídica, tanto da COCAJ (Coordenação-Geral de Contencioso Administrativo e Judicial), que elaborou a indagação, quanto da Cosit, que a respondeu, para deliberarem a respeito do tema, o que se configura em afronta direta aos artigos 4º, II, e 8º, ambos da Portaria RFB nº 2.217/14, e (2) porque houve clara vulneração ao quanto determinado pelos §§ 4º e 5º do artigo 19 da lei nº 10.522/02, em razão da inexistência da prévia manifestação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para que se produzisse a solução de consulta, condição necessária de validade, como é a determinação da citada lei.

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