Diário de Classe

Ronald Dworkin e o império do direito

Autor

  • Gilberto Morbach

    é doutorando e mestre em Direito summa cum laude pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos como bolsista do CNPq editor do Estado da Arte (Estadão) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Iris Murdoch Society.

9 de janeiro de 2021, 11h53

No Diário de Classe de hoje, a tarefa que assumo é a de revisitar um clássico da teoria do direito. Engana-se quem pensa que o embate entre o positivismo jurídico e a proposta teórica de Ronaldo Dworkin encerrou-se com o célebre argumento dos princípios, articulado em “The Model of Rules I” — um dos textos que compõem a coletânea Taking Rights Seriously [TRS, Levando os Direitos a Sério] — e tão discutido desde então. A discussão torna-se muito mais rica e, não só isso, lança as bases para ainda outras discussões que são ainda hoje centrais na teoria do direito — sobretudo no contexto anglo-saxão, verdade, mas para a própria teoria do direito em si enquanto empreitada de investigação filosófica sobre a natureza do direito enquanto prática e fenômeno.

Por isso, não se pode jamais ignorar a importância de Law’s Empire (LE, O Império do Direito, publicado no Brasil também pela Martins Fontes) para a teoria do direito. Em 1986, Ronald Dworkin publicou aquela que é até hoje considerada uma de suas melhores obras — se me permitem uma breve nota pessoal, minha favorita do autor, talvez ao lado de Justice in Robes [Justiça de Toga] e, por que não, Justice for Hedgehogs [Justiça para Ouriços] (uma obra que, nas palavras de ninguém menos que A.C. Grayling, já nasceu clássica). Em LE, refinando seus argumentos contra o positivismo jurídico, Dworkin articulou sistemática e sofisticadamente a sua própria teoria: law as integrity, o “direito como integridade”. Se em TRS Dworkin argumentou que o positivismo não oferecia uma boa explicação da prática jurídica, é n’O Império do Direito que ele explica por que esse erro era cometido. Ao fazê-lo, Dworkin oferece também a sua concepção sobre a melhor interpretação do fenômeno jurídico.

Falo em concepção e intepretação porque é exatamente esse um dos argumentos centrais em Law’s Empire. Se os positivistas pretendiam oferecer um conceito de direito, como vimos com Hart, Dworkin dirá que essa empreitada sofre de um problema fundamental já em sua origem: uma má-compreensão acerca da natureza própria do conceito. O positivismo analítico, segundo a então ‘nova’ tese dworkiniana (nova ao menos no sentido de sua expressão, já que coerente com o que escrito antes), parte do pressuposto de que todos os conceitos — incluindo, pois, o conceito de direito — são conceitos criteriais: conceitos que são compartilháveis somente quando as pessoas que os compartilham concordam em uma definição prévia da qual se derivem os critérios para a aplicação correta do termo em questão. Assim, uma análise positivista do conceito de direito, que o toma por um conceito criterial, passaria pela elucidação de quais são os testes que aqueles que compõem a prática jurídica compartilham (à exceção dos casos marginais, limítrofes) para identificar quais proposições jurídicas são verdadeiras — i.e., quais proposições são realmente jurídicas; em última análise, o que é e o que não é direito válido. (O leitor já familiarizado com obras clássicas na teoria do direito vai identificar aqui, de algum modo, algo da regra de reconhecimento como desenvolvida por Hart.)

Esse é o início do argumento do semantic sting, o “aguilhão semântico”.[1] Na análise de Dworkin, os juízes, ainda que concordem entre si com relação a quais estatutos sobre a matéria em questão foram promulgados, e com relação a quais precedentes têm relação com o ponto, podem ainda assim discordar sobre o que o direito realmente é e exige, sobre o significado e o alcance de seus fundamentos enquanto fundamentos jurídicos. Traduzindo em termos mais simples: o positivismo, diz Dworkin, parte da ideia de que o direito é um conceito criterial: há critérios prévios que devem ser preenchidos para que saibamos o que é direito e o que não é. O positivismo, diz Dworkin, está errado. Está errado porque há, na prática jurídica, desacordos teóricos sobre os fundamentos do direito. Há desacordos exatamente sobre os critérios. O direito, portanto, não pode ser um conceito criterial; trata-se de um conceito interpretativo.

Dworkin, novamente, lança mão do caso Riggs v. Palmer, que foi seu pano de fundo para o argumento dos princípios.[2] Agora, contudo, o argumento é um pouco diferente: Dworkin não quer somente mostrar que, em direito, há padrões, jurídicos, que estão para além das regras (os princípios). Isso já havia sido desenvolvido em “The Model of Rules. Agora, Dworkin diz o seguinte: quando se discutiu, no caso do neto que assassinou o avô visando à herança, se o assassino tinha ou não o direito pleiteado, não se estava a discutir se os juízes deviam seguir a lei ou deixar o direito de lado em nome da justiça ou alguma reivindicação de direito natural ou moralidade substantiva; baseado nos fundamentos utilizados pelos próprios juízes em seus votos, Dworkin diz que o desacordo em questão “[e]ra uma disputa sobre o que o direto era, sobre o que o estatuto real, que os legisladores promulgaram, realmente dizia”.[3] Repito: para o positivismo, direito/não direito é uma questão de critérios; para Dworkin, há desacordos sobre os próprios critérios.

O direito, então, é um conceito interpretativo: um conceito sobre o qual diferentes concepções interpretativas oferecerão explicações distintas a partir dos fundamentos assumidos para tal. Mas daí não se segue que vale qualquer coisa; pelo contrário. A melhor interpretação será aquela que oferecer, de fato, a melhor explicação para o significado do direito, seu conteúdo e seus fundamentos. É isso que Dworkin pretende oferecer ao elaborar sua proposta de direito como integridade. Em sua concepção, “o raciocínio jurídico [legal reasoning] é um exercício de interpretação construtiva”, de modo que o direito de uma comunidade “consiste na melhor justificativa que sustenta as práticas jurídicas como um todo”; consiste, pois, “na história narrativa que faz dessas práticas o melhor que elas podem ser”.[4]

Essa é a proposta que marca Law’s Empire, e é a proposta que Dworkin contrapõe a duas outras concepções interpretativas dominantes: de um lado, o convencionalismo — nada mais que a decorrência lógica do positivismo, que parte da ideia de que o direito é meramente uma questão de convenções (muito parecido com o que já era indicado em “The Model of Rules). De outro lado, o pragmatismo — uma concepção que, como o nome sugere, diz que o direito é simplesmente uma questão de escolha prospectiva de viés utilitário/pragmático, pouco importando questões de história e tradição institucional. Para Dworkin, ambas falham tanto como explicações do que realmente acontece na prática quanto como propostas normativas. Nem as convenções passadas do positivismo, nem o utilitarismo prospectivo do pragmatismo: para o direito como integridade, o direito deve ser aquilo que ele já é interpretado sob sua melhor luz.[5]

Há, ainda hoje, aqueles que se contrapõem à obra e aos argumentos de Dworkin. De diferentes maneiras, autores positivistas oferecem respostas ao argumento dos desacordos.[6] Seja como for, isso é assunto para outra coluna; seja como for, o leitor que se debruçar sobre Law’s Empire, concordando ou discordando, vai encontrar os argumentos de um gênio que mudou a história da teoria do direito.

P.S. Gostaria ainda de, neste espaço, em mais uma nota pessoal, agradecer ao Prof. Lenio Luiz Streck por me ter apresentado a obra de Dworkin. Assim — e embora o leitor tenha suas razões para me considerar suspeito —, faço questão de destacar a Crítica Hermenêutica do Direito, matriz teórica fundada pelo professor Streck, como uma teoria brasileira genuinamente teórica (e isso não é uma redundância), filosófica, com repercussões práticas e, para o que mais importa neste texto, como uma teoria que soube recepcionar os elementos constitutivos do direito como integridade e adaptá-los tanto às premissas filosóficas de seu fundador quanto às circunstâncias do contexto em que inserida: o direito brasileiro, tão sui generis em vários sentidos. Para um belo tratamento de elementos centrais na obra de Dworkin, recomendo a leitura do Dicionário de Hermenêutica (discutindo aspectos como a questão da coerência e integridade em Dworkin, a noção de princípio jurídico, a ideia de uma resposta correta, enfim). Para uma boa introdução a Dworkin, destaco também o trabalho desenvolvido por outro que foi (ora, ainda é, afinal) membro do Dasein, Francisco José Borges Motta, em seu Ronald Dworkin e a Decisão Jurídica (Editora Juspodivm).


[1] O argumento do aguilhão semântico e o argumento dos desacordos teóricos, embora exista aí uma relação, não são a mesma coisa. O argumento dos desacordos, porque mais amplo, é mais poderoso — o positivismo não será vítima do aguilhão semântico se demonstrar não estar comprometido com a semântica criterial. Vale conferir, nesse sentido, a boa explicação de Scott Shapiro em seu ensaio paradigmático sobre o debate Hart–Dworkin. Cf. SHAPIRO, Scott J. The “Hart–Dworkin” Debate: A Short Guide for the Perplexed. In: RIPSTEIN, Arthur (ed.) Ronald Dworkin. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, pp. 22-55 (p. 54, n. 57).

[2] Em Riggs . . ., a Corte de Apelações de Nova York decidiu que Elmer Palmer, assassino do próprio avô, não tinha direito à herança. A razão de decidir não estava presente em algum estatuto ou precedente — ou seja, não estava em uma regra; pelo contrário. Fosse o direito um sistema composto apenas por regras, a herança seria de Elmer, dado que não havia qualquer regra a proibir que um assassino herdasse de sua vítima caso figurasse em testamento. Mesmo assim, Elmer não pôde herdar. Porque, afinal, havia um princípio, jurídico, que assim determinava: o princípio segundo o qual a ninguém é dado beneficiar-se dos próprios crimes ou atos ilícitos.

[3] Tradução livre, grifos meus. “[T]he dispute about Elmer [o neto assassino] was not about whether judges should follow the law or adjust it in the interests of justice. At least it was not if we take the opinions I described at face value and . . . we have no justification for taking them in any other way. It was a dispute about what the law was, about what the real statute the legislators enacted really said”. Dworkin, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: The Belknap Press, 1986, p. 20.

[4] Tradução livre, grifos meus. “[L]egal reasoning is an exercise in constructive interpretation . . . [O]ur law consists in the best justification of our legal practices as a whole, […] it consists in the narrative story that makes of these practices the best they can be”. Dworkin, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: The Belknap Press, 1986, p. vii.

[5] Devo essa excelente definição ao Prof. André Coelho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[6] Por todos, cito os argumentos de Matthew Kramer em In Defense of Legal Positivism e, aqui, sobretudo, o já citado artigo de Shapiro. O de Kramer, por enfrentar diretamente o argumento; o de Shapiro, por explicar a questão de forma espetacular, não apenas pela excelente síntese como também pelo esclarecimento do argumento e pela honestidade intelectual em reconhecer os méritos filosóficos  de uma tese que não é a sua e da qual discorda.

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