Nova velha controvérsia

Criminalistas defendem soberania absoluta dos veredictos do Tribunal do Júri

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9 de janeiro de 2021, 9h19

Em 1980, quando o Tribunal do Júri da cidade de Cabo Frio (RJ) absolveu Raul Fernando do Amaral (Doca) Street da acusação de ter assassinado sua namorada, Ângela Maria Fernandes Diniz, em 1976, o Brasil entrou em polvorosa. O motivo: não faltaram provas de que o empresário cometera o crime, mas os jurados se sensibilizaram com o argumento da defesa de que a socialite havia dado motivo ao homicídio com seu comportamento "escandaloso".

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Doca Street e Ângela Diniz, respectivamente réu e vítima do assassinado ocorrido em 76Reprodução

A absolvição por "legítima defesa da honra" causou revolta em todo o país, o que levou à anulação do júri e, consequentemente, a um novo julgamento, em que o assassino foi condenado a 15 anos de prisão. Parecia, pois, que a tal tese, obviamente machista, estava morta e enterrada. Mas só parecia.

Em 2020, quando a palavra feminicídio já havia sido inventada para definir crimes como o que vitimou Ângela Diniz, um homem foi absolvido em Minas Gerais pelo Tribunal do Júri mesmo tendo confessado que tentou matar sua mulher por acreditar que estava sendo traído. Ou seja, a tese de "legítima defesa da honra" não só respira como recebeu uma legitimação, mesmo que involuntária, da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que manteve a decisão mineira baseando-se no artigo 5º, XXXVIII, alínea "c", da Constituição da República, que assegura a soberania dos veredictos dos jurados.

Agora, provocado por outro caso ocorrido em Minas Gerais, desta vez de um homem que foi absolvido pelo Tribunal do Júri por um crime cometido por vingança, o Plenário do STF — ainda sem data certa — vai se reunir para tomar uma decisão, em sede de repercussão geral, sobre um dos temas mais controversos do Direito brasileiro: afinal de contas, a soberania do veredicto do Conselho de Sentença (formado pelos jurados) é absoluta ou dele cabe recurso?

Marcelo Camargo/Agência Brasil
O Tribunal do Júri está previsto no
artigo 5º da Constituição da República
Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Código de Processo Penal, em seu artigo 483, determina que os jurados devem responder com "sim" ou "não" a três perguntas: a primeira é sobre a materialidade do fato; a segunda, sobre a autoria ou participação no crime; e a terceira é se o acusado deve ser absolvido. Os votos não precisam ser fundamentados, o que significa que cada jurado pode votar de acordo com sua convicção pessoal, sem necessidade de se ater às provas dos autos.

O que está em discussão agora é se a promotoria pode recorrer de uma absolvição que contrarie o conteúdo probatório. A 1ª Turma do STF decidiu que não, mas a palavra final será dada pelo Plenário.

Garantia do acusado
Advogados criminalistas ouvidos pela ConJur para esta reportagem defenderam a visão da 1ª Turma do Supremo. Para eles, a soberania dos veredictos do Conselho de Sentença é uma garantia oferecida pela Constituição ao acusado. Dar ao Ministério Público a possibilidade de recorrer da absolvição seria uma violação a esse instituto. Para Eleonora Nacif, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), não há dúvidas de que a soberania é absoluta.

"Isso desde que (a decisão) seja em favor do réu e enquanto durar o processo", afirmou a advogada. "Qualquer questão controversa deve ser interpretada em prol do acusado, jamais contra ele".

Mário de Oliveira Filho, presidente da Comissão Nacional de Direitos e Prerrogativas da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), entende que o fato de os jurados não precisarem fundamentar seus votos impede que haja recurso na absolvição, ainda que a sentença contrarie as provas, uma vez que não é possível saber quais motivos levaram cada componente do júri a tomar sua decisão.

"O novo quesito dá ao leigo a garantia de votar de acordo com seu entendimento pessoal", alega ele, referindo-se à alteração feita no CPP em 2008 que introduziu a possibilidade de os jurados decidirem de maneira genérica pela absolvição do réu. "Não cabe recurso, até porque se a defesa alegou a existência de legítima defesa, por exemplo, isso não vai ser questionado aos jurados, que só têm de responder se absolvem ou não".

"Eu entendo que a decisão absolutória do Tribunal do Júri não pode ser passível de recurso da acusação sob alegação de manifesta contrariedade à prova dos autos, sob risco de ofensa à plenitude da defesa do acusado, à soberania dos veredictos e à convicção pessoal dos jurados, que podem absolver por clemência, ainda que presentes os elementos de materialidade e autoria", reforçou Izabella Borges, colunista da ConJur.

Não se questiona, contudo, a possibilidade de apelação contra condenação arbitrária, por ser o júri uma garantia individual: "Tudo que está no artigo 5º da Constituição é uma defesa do cidadão contra o Estado, não funciona de mão dupla", afirma Patrícia Vanzolini.

O fantasma da 'honra'
Por outro lado, os advogados reconhecem que não é possível impedir que um réu seja absolvido por um crime cometido por "legítima defesa da honra". Eles são unânimes e enfáticos ao condenar essa tese (nas palavras de Eleonora, "falar em honra conjugal é reduzir a mulher a mero objeto de propriedade do homem, isso é intolerável e injustificável"), mas afirmam que a responsabilidade de evitar que ela prospere é da promotoria, da defesa e dos próprios jurados.

"A defesa jamais deve alegar legítima defesa da honra. Além de inconstitucional, pega mal, causa antipatia, ojeriza", defende Eleonora. "Essa ideia só pode prosperar em caso de inépcia do promotor, que tem a obrigação de perceber quando o advogado está levando a argumentação para a legítima defesa da honra, que é uma coisa absurda. O promotor não pode empurrar para as cortes superiores seu erro", defende Mário.

Na opinião de Patrícia Vanzolini, cabe à sociedade, por meio dos jurados, refutar a tese machista, caso a defesa decida lançar mão dela em um julgamento.

"No dia em que a sociedade rechaçar o argumento de legítima defesa da honra, o advogado não vai mais alegá-lo porque não vai mais funcionar. Enquanto a sociedade o acolher, porém, o advogado não pode ser limitado. Se o jurado resolver absolver mesmo com esse argumento tosco, paciência, a decisão dele tem de ser respeitada", argumenta ela.

Críticas ao júri
Nem todos os advogados criminalistas do Brasil, porém, concordam que a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri é absoluta. Segundo Gustavo Badaró, isso não está nem na Constituição, nem no Código de Processo Penal. Logo, não pode ser colocado em prática.

"Em momento nenhum se tocou no assunto de acabar com a possibilidade de recurso. Se a intenção da alteração de 2008 fosse acabar com a possibilidade de recurso da decisão do júri, a própria lei já teria alterado o trecho que prevê isso em caso de manifestação contrária à prova dos autos", afirma ele, fazendo referência ao conteúdo do artigo 593 do CPP.

É no Ministério Público, no entanto, que estão as vozes mais contundentes contra a ideia de soberania absoluta dos veredictos. E contra o próprio Tribunal do Júri, em muitos casos. De acordo com a promotora de Justiça Fabiola Sucasas, titular da Promotoria de Enfrentamento à Violência Doméstica do MP de São Paulo e diretora do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD), tem de prevalecer a regra do CPP que possibilita a apelação contra decisão manifestamente contrária às provas dos autos. Do contrário, haverá grande prejuízo para a sociedade — em especial para as mulheres e os demais segmentos que se encontram em posição de fragilidade.

"Se a moda pegar, com certeza estará aberta a porta para a volta da tese da legítima defesa da honra, e de muitas outras. A soberania é relativa, como outras garantias constitucionais, e não pode se sobrepor à verdade. Temos, sim, o risco de que surjam diversos tipos de argumentos que justifiquem casos de feminicídios, transfeminicídios, homicídios pautados na discriminação racial etc., havendo inclusive o risco de poder ser legitimada a arbitrariedade na atuação de policiais", argumentou a promotora, que defende o fim do instituto do Tribunal do Júri.

"Numa sociedade como a nossa, machista, racista, LGBTQIfóbica, não há como dissociar a formação cultural dos jurados do pensamento que pode comprometer uma decisão, e isso viola os direitos humanos. E eu questiono: qual o sentido do instituto do júri numa sociedade machista, homofóbica, transfóbica e racista, dentro de um processo em que a finalidade é obter justiça?".

O procurador de Justiça Mário Limongi, que atuou como promotor por cerca de 12 anos, não chega a defender a extinção do Tribunal do Júri. Mas, assim como Fabiola, acredita que não faz o menor sentido impedir a possibilidade de recurso contra uma decisão de absolvição dos jurados se ela não fizer justiça:

"Eu sempre respeitei a soberania do júri, que por sua vez sempre implicou na possibilidade de apelação única. Não admitir isso seria ignorar a paridade entre as partes", disse ele.

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