Opinião

O acerto da decisão do ministro Nunes Marques sobre a Lei da Ficha Limpa

Autor

  • Rodrigo Terra Cyrineu

    é advogado escritor professor mestre em Direito Constitucional (IDP) membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e membro da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

8 de janeiro de 2021, 9h02

O presente artigo não tem como propósito fazer uma defesa pormenorizada do mérito da questão levada à apreciação do Supremo Tribunal Federal na ADI 6630, movida pelo PDT subscrita pela advogada Ezikelly Barros e pelos advogados Alonso Freire e Bruno Rangel , em face da alínea "e", inciso I, artigo 1º da LC nº 64/90 (alterada pela Lei da Ficha Limpa), sobretudo porque autores como Volgane Carvalho [1] e Marcelo Peregrino Ferreira [2] já o fizeram e muito bem, por sinal.

O que se pretende demonstrar é o acerto do ministro Nunes Marques, relator da ação, do ponto de vista processual, de forma a refutar a equivocada ideia de que o artigo 16 da Constituição Federal (regra da anualidade) vedaria a evolução jurisprudencial proposta na polêmica decisão liminar.

Para tanto, é forçoso iniciar dizendo o óbvio: a regra da anualidade insculpida no artigo 16 da Constituição Federal, como já tive a oportunidade de defender em livro publicado sobre o tema [3], tem destinatário específico, a saber, o Congresso Nacional, instituição constitucionalmente competente para editar regras e promulgar leis sobre eleições.

O Supremo Tribunal Federal, ao proibir viragens abruptas de jurisprudência em matéria eleitoral quando do julgamento do RE nº 637.485/RJ[4] o leading case dos prefeitos itinerantes não utilizou como fundamento decisório o artigo 16 da Constituição, mas o postulado da segurança jurídica e suas derivações, como a anterioridade normativa e a proteção à confiança legítima, como também concorda, por todos, o ex-corregedor-Geral da Justiça Eleitoral ministro Hermann Benjamin [5].

É dizer: a verdadeira ratio decidendi do precedente estabelecido no RE nº 637.485/RJ de relatoria do ministro Gilmar Mendes é o princípio da segurança jurídica decorrente da ideia matriz de anterioridade eleitoral, e não a regra da anualidade.

Portanto, diferentemente da regra da anualidade [6], o princípio da anterioridade eleitoral é oponível também e precipuamente ao Judiciário, e a sua instrumentalização não se dá necessariamente mediante a aplicação da regra temporal do artigo 16 da Constituição Federal, a qual não admite exceções.

O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o leading case em sede de repercussão geral (RE nº 637.485/RJ) sobre a irretroatividade da jurisprudência eleitoral, não abordou os princípios regentes do próprio Direito Eleitoral. Na oportunidade assentou-se, pura e simplesmente, a impossibilidade de viragem abrupta da jurisprudência.

Não fazem parte da ratio decidendi do referido do RE nº 637.485/RJ, portanto, exceções à regra da impossibilidade de viragem abruta da jurisprudência. Mas também não há qualquer vedação, nem mesmo implícita, no aludido pronunciamento que impeça a problematização.

Logo, é de se indagar: uma interpretação posterior que maximize o exercício dos direitos políticos pode ser aplicada com eficácia retroativa? Dito de outro modo, o garantismo, no que se define como exercício em estado maximizado dos direitos políticos fundamentais, se sobrepõe ao princípio da anterioridade?

A questão tem a ver com as normas irretroativas e as normas retroativas. Tércio Sampaio Ferraz Júnior adverte que, via de regra, as normas são irretroativas. Admite o autor, todavia, exceções. São as normas retroativas. Essas normas têm sua vigência prospectiva (passam a valer a partir da sua promulgação/publicação), mas produzem efeitos para trás: têm eficácia ex tunc [7].

É o caso, por exemplo, da "conhecida retroatividade in bonam partem, usualmente aceita no Direito Penal", isto é, "quando a retroatividade beneficia o agente cujo ato, pela norma antiga, seria punido" [8]. A retroatividade normativa benigna é expressamente prevista, ainda, no artigo 9º da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

No âmbito eleitoral, a jurisprudência recente dos Tribunais Regionais Eleitorais vêm admitindo a retroação in bonam partem da novatio legis in mellius no campo do Direito sancionatório, como é o caso, por exemplo, do valor das multas em representações por doações eleitorais acima do limite legal [9].

Da mesma forma se posicionam as cortes eleitorais no campo das condições de elegibilidade (requisitos para o pleno gozo do sufrágio passivo), a exemplo da sistemática da filiação partidária, tema no qual se reconhece o princípio da máxima efetividade dos direitos políticos [10].

Ademais, decorre da própria racionalidade do discurso jurídico que os posicionamentos firmados sejam provisórios, passíveis, portanto, de alteração sempre que um melhor argumento se imponha na prática comunicativa.

O raciocínio desenvolvido no campo da edição de leis é perfeitamente aplicável aos precedentes. Se um tribunal, num primeiro momento, entende que determinada conduta possui um desvalor e, posteriormente, reconsiderada esse entendimento em prol do cidadão, há de ser aplicado o novel entendimento retroativamente, como defende, por exemplo, Alexandre Freitas Câmara especificamente quanto à eficácia temporal da superação de entendimento jurisprudencial [11].

Nesse mesmo sentido, no âmbito do Direito Tributário, posiciona-se Misael Abreu Machado Derzi, para quem "tal como ocorre com o princípio da irretroatividade das leis, a retroação benigna, para favorecimento do cidadão contribuinte, nas relações de Direito Público, de modo algum é coibida pelo ordenamento" [12].

Já o contrário não é permitido, na medida em que o princípio da anterioridade, irmão siamês do princípio da proteção à confiança legítima, por se tratar de uma garantia, opera em favor do cidadão e se dirige contra o Estado, e não vice-versa[13].

Disso resulta que sempre quando a viragem abrupta da jurisprudência do TSE ou do STF ampliar o âmbito de proteção de um direito político fundamental [14], há de ser permitida a sua aplicação imediata aos casos concretos da eleição corrente, sem que isso implique violação ao princípio da anterioridade eleitoral.

Disso tudo resulta, portanto, a tranquila conclusão de que não há qualquer óbice constitucional, legal ou mesmo jurisprudencial à incidência imediata da evolução do entendimento do Pretório Excelso no tocante à controvertida questão da "detração eleitoral", mormente porque a coisa julgada que se formou em 2012, quando da análise das ADCs 29 e 30, investiu-se de uma cláusula rebus sic stantibus explícita: deixou em aberto a análise de eventual desproporcionalidade.

Isso porque, ao se resgatar os debates travados naquele julgamento em 2012, a corrente vencedora no tocante à questão da detração a qual havia sido reconhecida como necessária pelo ministro relator Luiz Fux como forma de proibir excessos e com fundamento no princípio da proporcionalidade não excluiu a possibilidade de reconhecimento de teratologias ou violação ao princípio da proporcionalidade, a exemplo das ressalvas contidas nos votos dos ministros Ricardo Lewandowski, Rosa Weber [15] e Gilmar Mendes [16].

De lá para cá se passaram quatro ciclos eleitorais, de modo que a aplicação da lei da Ficha Limpa ao longo desse tempo não só evidenciou que a ressalva de alguns ministros estava correta como também induz à conclusão de que a decisão tomada naquela assentada não goza daquele status qualificado de segurança e certeza do bom Direito, a se assemelhar com o instituto do desgaste próprio da common law.

Por fim, é preciso ter em mente que nas ADCs 29 e 30 a Suprema Corte controlou em abstrato e preventivamente a constitucionalidade de uma lei recém promulgada, quando sequer havia controvérsia jurídica relevante a ponto de permitir o próprio conhecimento da ação objetiva, como bem pontua publicamente o ministro Gilmar Mendes que todos sabem ser o autor intelectual da Lei 9.868/1999. Portanto, é chegada a hora de o STF fazer o seu mea culpa referendando in totum a corajosa decisão liminar, da lavra do ministro Nunes Marques, para que sejam deferidos os registros dos candidatos eleitos sub judice no pleito de 2020.

 


[3] CYRINEU, Rodrigo Terra. Precedentes eleitorais: segurança jurídica e processo eleitoral. São Paulo: Almedina, 2020.

[4] “(…) as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência, não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior”. (RE 637.485/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes)

[5] “(…) a despeito de o artigo 16 da Constituição referir-se à “lei que alterar o processo eleitoral”, o Tribunal Superior vem lançando mão da regra da anterioridade – e da segurança jurídica, implicitamente prevista – também em sua jurisprudência, com amplitude ainda maior, reforçando o papel institucional de preservar a democracia e assegurar a legitimidade das eleições. Com efeito, é indene de dúvidas que modificação de entendimento jurisprudencial já firmado para certo pleito também pode vir a gerar casuísimos – ou ao menos gerar ao eleitorado essa indesejável percepção”. (BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos e. O Tribunal Superior Eleitoral e sua relevância institucional. In: NORONHA, João Otávio de; KIM, Richard Pae (coord.). Sistema político e direito eleitoral brasileiros: estudos em homenagem ao Ministro Dias Toffoli. São Paulo: Atlas, 2016. p. 390)

[6] O Ministro Luiz Fux defendeu exatamente isso em seu voto-concorrente no RE nº. 633.703/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, ocasião em que registrou: “(…) o enunciado normativo do artigo 16 da Constituição Federal, como decorre da moderna teoria geral do direito e, mais particularmente, da novel teoria da interpretação constitucional, consubstancia uma regra jurídica. (…) Em síntese, o fato de o legislador optar por instituir uma regra – e não um princípio –, como no caso do artigo 16 da CF, é motivo suficiente para que não sejam desconsiderados seus enunciados lingüísticos, que representam, na realidade, a decisão já tomada no domínio da democracia quanto às diversas razões que poderiam conduzir a soluções opostas, ou simplesmente diferentes, a respeito da segurança jurídica no processo eleitoral”.

[7] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. O direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, p. 9.

[8] Idem.

[9]Recurso eleitoral. Representação. Eleições de 2016. Doação, por pessoa física, acima do limite legal. Sentença de parcial procedência do pedido. (…). Aplicabilidade dos novos parâmetros ditados pela Lei nº 13.488/2017, modificando o artigo 23, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, para estabelecer a multa por excesso de doação para até 100% da quantia em excesso. Efeito retroativo de norma mais benéfica. Condenação à multa de 100% da quantia doada em excesso. Reforma da sentença. Recurso a que se dá parcial provimento”. (TRE/MG. RE nº 99-20.2017.6.13.0190. Relator: Desembargador Rogério Medeiros, acórdão de 1 de agosto de 2018).

[10]RECURSO ELEITORAL. OCORRÊNCIA. DUPLICIDADE DE FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. ART. 22 DA LEI N. 9.096/95. ALTERAÇÃO DA SISTEMÁTICA DA DUPLICIDADE DE FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. LEI 12.891/2013. RETROATIVIDADE DA LEI PARA GARANTIR DIREITO FUNDAMENTAL REFLEXO. MANUTENÇÃO DA FILIAÇÃO MAIS RECENTE. RECURSO PROVIDO.  1. Julgamento de recurso por duplicidade de filiação partidária com fundamento em lei parcialmente derrogada. 2. A filiação partidária constitui direito fundamental reflexo do cidadão, posto que se consubstancia em condição para o exercício da capacidade eleitoral passiva.  3. Retroatividade da lei em favor da manutenção de direitos fundamentais reflexos. Aplicação do princípio constitucional da máxima efetividade. 4. Recurso eleitoral conhecido e provido”. (TRE/GO. RE n° 30-33.2013.6.09.0127 – Goiânia/GO. Relatora: Des. Doraci Lamar Rosa da Silva Andrade, acórdão de 06 de fevereiro de 2014.

[11] CÂMARA, Alexandre Freitas. Súmula da jurisprudência dominante, superação e modulação de efeitos no Novo Código de Processo Civil. Revista de Processo: RePro, São Paulo, v. 42, n. 264, p. 281-320, fev. 2017. p. 16: “(…) há casos em que a nova norma retroage. É o que acontece, por exemplo, no caso de nova norma penal mais benéfica para o réu. O mesmo se pode dizer das normas que versam sobre infrações tributárias e são mais benéficas ao infrator. Pois em casos assim, nos quais é admissível a retroação da nova norma, será perfeitamente possível que a alteração da tese jurídica consolidada em enunciado de súmula de jurisprudência dominante tenha eficácia retroativa”.

[12] DERZI, Misabel Teixeira Machado. Modificações da jurisprudência no Direito Tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao Poder Judiciário de Tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 552.

[13] É o que conclui Misabel T. M. Derzi (op. cit., p. 552): “Seja o Estado legislador, administrador ou juiz, a irretroatividade somente pode ser invocada em favor do contribuinte”.

[14] Os professores alemães Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, a propósito do assunto, trabalham com a ideia de interpretação conforme aos direitos fundamentais: “Com o imperativo da interpretação conforme aos direitos fundamentais, estes direitos influenciam a interpretação e a aplicação da lei ordinária pelos tribunais e pela Administração. O esforço metodologicamente correto da interpretação de uma disposição do direito ordinário permite a cada passo diversas interpretações; e quando estão em causa cláusula gerais e conceitos jurídicos indeterminados, a jurisprudência e a Administração têm uma margem de interpretação especialmente ampla. Neste caso, a vinculação aos direitos fundamentais (artigo 1º, n. 3) exige que a decisão a favor de uma ou de outra interpretação se oriente pelos direitos fundamentais. Essa decisão tem de fazer valer os direitos fundamentais e interpretar o direito ordinário de forma a proteger os direitos fundamentais e preservar e a promover a liberdade”. (PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 71-2).

[15]A SENHORA MINISTRA ROSA WEBER – E é muito bom que se diga e que se frise, e muito menos, ou também não, às leis de iniciativa popular. Na minha compreensão, com o maior respeito – talvez quem sabe até um dia evolua -, não consigo compreender como o fato de uma demora do Judiciário, uma demora, um tempo (e o tempo não para – lembrou Cazuza hoje aqui o Ministro Toffoli) decorrido entre o julgamento pelo Colegiado e o trânsito em julgado, possa inferir afronta a texto constitucional, aferição esta em abstrato. Pode ser até que num caso concreto se configure uma situação teratológica. O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE) – Ministra, Vossa Excelência me permite só uma ponderação: nós temos um caso, esse é típico, de uma restrição de pena não prefixada; flexível. Não se sabe quando termina. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Porque dependerá do trânsito em julgado. O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI – Nós cogitávamos, nessa linha que a Ministra Rosa Weber estava falando, quando estudamos o assunto, exatamente de examinar caso por caso. Essa eventual inconstitucionalidade será apurada no exame do caso concreto, não em abstrato”. (ADC’s 29 e 30, p. 181 do acórdão).

[16]O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Não pode um legislador ter escrito oito anos, que podem se converter em dezesseis pela duração do processo!”. (ADC’s 29 e 30, p. 182 do acórdão).

Autores

  • é advogado e membro-fundador da Abradep. Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto de Direito Público) do Distrito Federal. Especialista em Direito Administrativo pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso; especialista Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do MP-MT e especialista Direito Eleitoral pela Fundação Escola Superior do MP-MT; especialista em Agronegócio pela Esalq-USP.

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