Opinião

A constitucionalidade da lei que aumentou a pena de maus tratos contra cães e gatos

Autor

  • Manoel Franklin Fonseca Carneiro

    é juiz de direito no TJDFT pós-graduado em Direito Animal pela Escola da Magistratura Federal do Paraná (Esmafe) e Universidade Internacional (Uninter) e em Direito Processual Civil nas Cortes Superiores pela Faculdade Mackenzie professor de Direito Animal na OAB-DF conferencista e palestrante.

7 de janeiro de 2021, 15h18

Este artigo analisa a constitucionalidade da Lei Federal nº 14.064/2020, que aumentou a pena para crime de maus tratos, ferimento, mutilação e morte de cães e gatos, inserindo o parágrafo 1º-A ao artigo 32 da Lei Federal nº 9.605/98 – Lei dos Crimes Ambientais, através do estudo da proporcionalidade da pena estabelecida para essas hipóteses, utilizando a técnica de comparação das formas de execução desses crimes contra animais como se fossem cometidos contra humanos, objetivando provar a proporcionalidade e razoabilidade da nova lei, decorrendo daí sua constitucionalidade, conferindo concreção à proteção que a Constituição Federal garante aos animais contra a crueldade humana, em seu artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, in fine, que de igual forma constitui-se em direitos humanos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Leis de conteúdo não razoável são aquelas veiculadoras de conteúdo arbitrário, que afetam e comprometem o Estado democrático de Direito e impõem aos cidadãos um estado de submissão a leis sem padrões mínimos de razoabilidade a que estão submetidos todos os atos estatais, notadamente aqueles que emanam do Poder Legislativo, na irretocável visão do ex-ministro Celso de Mello, em seu voto na ADI 5468/DF.

"Não se pode desconhecer que as normas legais devem observar, quanto ao seu conteúdo, critérios de razoabilidade, em estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público, inclusive os seus atos legislativos, devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do "substantive due process of law" (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais (RTJ 160/140-145 – ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)."

Nesse contexto, a Suprema Corte já firmou entendimento que transgride o princípio do devido processo legal, insculpido no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, analisado na sua perspectiva material qualquer ato estatal, inclusive no processo legislativo, que cria lei ou norma cujo conteúdo contenha comandos irrazoáveis, e, especificamente quanto ao princípio da proporcionalidade, esse é um dos fatores que podem caracterizar um ato estatal como não razoável, conforme citado na mencionada ADI 5468/DF, colacionando o prolator do voto doutrina abalizada (Celso Antônio Bandeira de Mello, "Curso de Direito Administrativo", p. 56/57, itens nº 18/19, 4ª ed., 1993, Malheiros; Lúcia Valle Figueiredo, "Curso de Direito Administrativo", p. 46, item nº 3.3, 2ª ed., 1995, Malheiros).

Em conclusão, toda lei deve ser analisada sob o prisma dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, como justa ponderação da análise da sua necessidade e da adequação dos meios empregados ao fim almejado, de forma a se alcançar a melhor solução legislativa ao caso que se pretenda regular, e a metodologia utilizada neste ensaio consistente em comparar as penas do novel artigo 32, §1º-A, como se tais condutas tivessem sido cometidas contra humanos comprovou que estas são significativamente maiores, não ferindo destarte os mencionados princípios constitucionais.

O crime de maus tratos a animais, nas formas previstas em seu tipo, de abusar, maltratar, ferir, mutilar, com causa de aumento de pena para resultado morte, é norma de tipo penal aberto, bastando-se em si própria, necessitando apenas de um esforço interpretativo para se concluir pela tipificação da conduta, como ocorre, por exemplo, nos crimes de tortura, previstos na Lei 9.455/97, cujo tipo penal menciona apenas as expressões "sofrimento físico e mental" (artigo 1º, inciso I) e "intenso sofrimento físico e mental" (artigo 1º, inciso II), cabendo aos operadores do Direito verificar a incidência desses tipos penais em cada caso concreto, sem necessidade de nenhuma definição normativa do que seriam referidas elementares do tipo.

Uma das formas mais comuns e cruéis de crime de maus tratos contra animais consiste no abandono daqueles seres vulneráveis em locais ermos, muitas vezes amarrados, amordaçados e às vezes até enterrados vivos, e equivocadamente têm surgido comparações com a pena do crime de abandono de incapaz, e ainda na sua forma simples, esquecendo-se as formas qualificadas de resultado lesão corporal grave e morte, ficando desde já esclarecido que condutas que tais, se praticadas contra humanos, atrairiam a incidência do crime de homicídio pelo menos duplamente qualificado, por emprego de meio insidioso e cruel e recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa da vítima (Código Penal, artigo 121, §2º, incisos III e IV), cuja pena máxima é de 30 anos de reclusão, portanto bem superior à pena máxima do mesmo crime cometido contra animal, que, mesmo com a causa de aumento de pena pelo resultado morte, seria de apenas seis anos e oito meses.

"O abandono é o distanciamento do agente (pai, mãe ou responsável) de maneira que ele perde controle sobre o que pode acontecer com aquele incapaz", relata o advogado criminalista Leonardo Pantaleão, invocando doutrina de Verônica Fraidenraich em seu artigo "Abandono de incapaz: saiba quais são as situações mais comuns em que esse crime acontece". O que a morte do menino Miguel, deixado sozinho no elevador de um prédio no Recife, ensina sobre o delito de "abandono de incapaz" no Brasil (disponível aqui). Por "incapaz" entenda-se toda pessoa que por incapacidade psíquica ou motora não tem condições de se defender sozinha dos riscos aos quais está sujeita durante o abandono, é crime de exposição a perigo, e não de dolo de lesionar ou causar morte, bastando ver sua posição no Código Penal, no Título I Dos Crimes contra a Pessoa, Capítulo III Da Periclitação da Vida e da Saúde, jamais podendo ser considerado um crime contra a vida, estes previstos no Capítulo I do referido título.

Destarte, o crime de abandono de incapaz previsto no artigo 133 do Código Penal não se aplica a essas condutas já vistas de abandono de animais com o fim de matar, mesmo que a título de dolo eventual, aqueles seres vulneráveis, e para dirimir de uma vez essa errônea comparação precisamos estudar esse crime, que está assim tipificado no digesto penal, in verbis: "Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono", depreendendo-se da simples leitura do texto penal que em nenhum momento está previsto o dolo, mesmo que eventual, do agente em matar ou lesionar o incapaz, mas apenas sua exposição a riscos, e nessa hipótese a pena para esse crime é realmente pequena, de detenção de seis meses a três anos, porém, mesmo que se pensasse no crime de abandono de incapaz para comparação com crimes similares cometidos contra animais, não se poderia deixar de se analisar que se do abandono resultasse lesão corporal de natureza leve à vítima a pena já seria de um a cinco anos de reclusão, e se resultasse em morte do incapaz a pena seria de quatro a 12 anos de reclusão, sendo essas penas acrescidas de um terço se o abandono houvesse ocorrido em lugar ermo, ficando a pena máxima cominada em abstrato para abandono com resultado morte em 16 anos de reclusão, quase o triplo da pena para o abandono de animais.

Inexiste, outrossim, também qualquer possibilidade de comparação do crime de maus tratos a animais mediante abandono com o crime de homicídio culposo (Código Penal, artigo 121, §3º), pela simples razão de que os tipos penais previstos no artigo 32 da Lei 9.605/98 exigem todos eles conduta dolosa do agente, não admitindo conduta culposa, tornando portando impossível comparação da regra de maus tratos a animais com qualquer crime culposo que ofenda a integridade física ou psíquica de humanos.

Uma outra forma de execução particularmente perversa de crimes de maus tratos contra animais é a privação contínua e duradoura de água e alimento, havendo também elevado grau de crueldade em casos de confinamento severo do animal por vários anos, como um caso registrado na Delegacia de Proteção Animal de São Paulo, em que uma cadela foi mantida aprisionada em uma jaula por seis anos por seu tutor, ou o espancamento ou mau trato psicológico sistemático e regular do animal, condutas essas que se fossem praticadas contra humanos atrairiam a incidência do crime de tortura, tipificado na Lei 9.455/97, cujo tipo penal contém as expressões "sofrimento físico e mental" e "intenso sofrimento físico e mental", mediante constrangimento com emprego de violência ou grave ameaça, ou seja, a tortura pode ser física ou psicológica, e essas hipóteses se aplicam também aos animais.

Enfim, o crime de tortura física ou psíquica contra humanos em sua forma simples, sem nenhuma sequela física à vítima, prevê pena de reclusão de dois a oito anos, mas se da tortura resultar lesão corporal grave ou gravíssima a pena já é majorada para de quatro a dez anos, e se resultar na morte da vítima a pena será de oito a 16 anos de reclusão, com cláusulas de aumento de pena que elevam essas penas de um sexto a um terço, alcançando cominação de até 13 anos e quatro meses para o resultado lesão corporal grave ou gravíssima, e de até 21 anos e quatro meses de reclusão para o resultado morte, se o crime de tortura houver sido cometido contra os vulneráveis descritos no artigo 1º, §4º, inciso II, hipótese que pode ser comparada com o caso de maus tratos a animais, que também são seres vulneráveis, portanto, a conduta de tortura em humanos prevê penas cerca de três vezes superiores à pena por crime similar cometido contra animais, demonstrando uma vez mais que não existe desproporcionalidade ou irrazoabilidade na novel lei que majorou a pena para maus tratos contra cães e gatos, mas, sim, mais um degrau de nível civilizatório alcançado pela sociedade brasileira, em exemplo para o mundo.

Nas hipóteses de ferir ou mutilar animais, o crime contra humanos correspondente seria o crime de lesões corporais graves, gravíssimas ou com resultado morte, tipificado no artigo 129, do Código Penal e seus parágrafos, e nesse ponto graves erros doutrinários têm sido cometidos ao se comparar esse crime em sua forma simples, conhecido como lesões leves, com os crimes similares cometidos contra animais. Veja-se o caso de um pequeno corte ou um hematoma, lesões corporais simples, que dificilmente se aplicaria aos animais, pela sua insignificância, porque nesses casos as penas são brandas, de três meses a um ano de detenção, agravada para três meses a três anos se cometido o crime em situação de violência doméstica, induzindo a conclusões equivocadas e dissociadas da realidade.

Em uma análise científica, o crime de maus tratos consistente em ferir ou mutilar animais deve ser comparado ao crime de lesão corporal de natureza grave, como nos casos de perigo de vida ou debilidade permanente de membro, sentido ou função, em que a pena é de um a cinco anos de reclusão; ou ao crime de lesão corporal de natureza gravíssima, entendido como aquele, por exemplo, que resulta em incapacidade da pessoa para o trabalho, perda ou inutilização de membro, sentido ou função, deformidade permanente ou enfermidade incurável, em que a pena é estabelecida em dois a oito anos de reclusão; e, finalmente, se o crime de maus tratos resultar na morte do animal deve ser comparado com o crime de lesão corporal com resultado morte, em que a pena cominada é de quatro a 12 anos de reclusão, quase o dobro da pena aplicada em crime com mesma forma de execução contra animal.

Observe-se que o crime de lesão corporal em situação de violência doméstica, cuja pena máxima cominada é de três anos de detenção, somente se aplica ao crime de lesões corporais simples, que consta no caput do artigo 129, que, como já visto, não se enquadraria nos casos de maus tratos a animais, essa pena de até três anos de detenção quando a vítima for mulher não se aplica às formas qualificadas de resultado lesão grave, gravíssima ou morte da vítima, em que as penas são bem mais altas e nelas seria enquadrada a conduta do agente que houvesse praticado a violência doméstica, e para se chegar a essa conclusão basta a simples leitura do texto legal, mais especificamente do seu parágrafo décimo, que expressamente estatui que "nos casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9º, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço)", ou seja, está claro que a pena relativamente pequena de lesão corporal contra mulher e outras pessoas em relação doméstica com o agente só se aplica às lesões simples, se as lesões forem de natureza grave, gravíssima ou se resultarem a morte da mulher e das demais conviventes em relação doméstica as penas serão aquelas correspondentes, previstas nos §§1º, 2º e 3º, do artigo 129, bem mais elevadas, e ainda com o pesado acréscimo de um terço em razão da violência doméstica.

Em conclusão, a ocorrência de crimes de maus tratos a animais com formas de execução caracterizadas por extrema violência e crueldade, causando intenso sofrimento e sequelas irreversíveis aos animais vitimados, e muitas vezes sua própria morte nessas mesmas condições, originou um clamor popular na sociedade brasileira por mais um avanço civilizatório para garantia dos direitos humanos de última geração, também doutrinariamente conhecidos como pós-humanistas, em que toda forma de vida que coabita nosso pequeno planeta deve ser respeitada, estabelecendo nossa Carta Magna que direitos dos animais são igualmente direitos humanos, posto que ambos visam a garantir as necessidades primárias de seres que se importam originariamente com o que lhes ocorre, que são fins em si mesmos, que são sobre o mínimo devido a seres vivos que são sujeitos, e não objetos.

Os interesses a ser ponderados são o sofrimento, e não a qualidade do ser que sofre, e a integridade moral do agente, não a condição do paciente, estando provado pela psiquiatria forense que pessoas que cometem crimes contra animais apresentam grande probabilidade de também cometerem crimes similares contra seus próprios semelhantes, inclusive em situação de violência doméstica, sendo interesse de todos o aprimoramento dos valores sociais mais caros de fraternidade, compaixão e respeito à vida para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.

Autores

  • Brave

    é juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, especializado em Direito Animal pela Escola da Magistratura Federal do Paraná / Universidade Internacional - PR, co-fundador do Curso Direito Animal - Aspectos Teóricos e Práticos, ministrado na Escola Superior da Advocacia do Distrito Federal e exerceu as funções de promotor de Justiça no Ministério Público do Estado de Goiás.

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