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O IAC como mecanismo de formação de precedentes e a diferenciação com o IRDR

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6 de janeiro de 2021, 20h18

O sistema nacional de precedentes e os seus mecanismos são importantes focos de estudo para a resolução de litígios e uniformização de pronunciamentos judiciais, de maneira a ampliar a racionalidade jurídica e preservar, na melhor medida possível, a efetividade e a segurança jurídica para o alcance da tutela jurisdicional.

A doutrina dos precedentes ou stare decisis é de extrema relevância para lidar com o excesso [1] de processos em trâmite perante o Poder Judiciário, pois pode conferir previsibilidade, reduzir a assoberbada carga de trabalho forense e contribuir para a redução do número de demandas judicializadas. Isso porque, como a experiência prática escancara, significativa parcela dessas demandas tem natureza repetitiva e se notabiliza pela homogeneidade de questões. E, para tais questões, mesmo que exista real diferenciação entre os casos, a questão de Direito que define a sua solução é, no mais das vezes, idêntica.

Nesse contexto, surge a necessidade e a aplicação de mecanismos processuais de resolução de litigiosidade repetitiva previstos no CPC/2015 (incidente de assunção de competência (IAC), incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e recursos especiais e extraordinários repetitivos [2]). Os institutos previstos no CPC/2015, nas palavras de Lucas Buril de Macêdo [3], compõem o microssistema de julgamento de casos repetitivos em resposta a essas demandas, permitindo um coerente diálogo normativo entre as suas regras de regência e possibilitando a desobstrução à distribuição da Justiça, de maneira a, principalmente, enaltecer os princípios constitucionais: 1) da razoável duração do processo; 2) da segurança jurídica (a evitar decisões distintas ou conflitantes para idênticas questões de Direito); e 3) do acesso à Justiça.

Nesse contexto, ainda que guarde certa semelhança com a antiga sistemática do incidente de uniformização de jurisprudência (IUJ), o IAC é um instituto inovador trazido pelo CPC/2015 que integra o microssistema de julgamento de casos repetitivos com o objetivo de gerar precedentes obrigatórios [4].

O IAC é mecanismo do Direito Processual Civil que tem o objetivo de, nas palavras de Antônio Pereira Gaio Júnior [5], estabelecer padrões de decisões necessários a fim de se evitar uma discrepância de entendimentos dos tribunais. Como pondera Cesar Zucatti Pritsch [6], o IAC é um dos institutos do atual CPC que mais se aproxima do sistema de precedentes vinculantes dos países de common law, enaltecendo a aplicação do stare decisis.

Agora, diferentemente do previsto no CPC/1973, inexiste qualquer limitação quanto a recurso específico para a incidência hipotética de utilização do IAC. Pelos termos do CPC/2015, compreende-se que o IAC seja manejável a partir do julgamento de qualquer recurso, remessa necessária ou mesmo causa de competência originária do tribunal, ensejando o envolvimento de questão de Direito com relevante repercussão social.

Nessa toada, é salutar, para fins de conceituação e aplicabilidade prática, que se diferenciem os exatos contornos do IAC e do incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR).

O IAC é o mecanismo utilizado quando ocorre questão de Direito a respeito de qual seria conveniente: a prevenção ou a composição de divergência entre câmara ou turmas do tribunal. Nos termos do caput do artigo 947 do CPC/2015, são requisitos que ensejam a admissibilidade do IAC: 1) existência de questão de Direito com relevante repercussão social; 2) não ocorrência de questão repetida em múltiplos processos; e 3) a questão ser decorrente de recurso, de remessa necessária ou de causa de competência originária.

É preciso ter em mente, contudo, que o caput do artigo 947 do CPC/2015 não esgota, em absoluto, os requisitos para o manejo do IAC. Outras importantes peculiaridades do instituto dizem respeito: 1) ao seu caráter preventivo, haja vista que é justamente dispensada a existência de multiplicidade processual, possibilitando o manejo do IAC antes de configurado o indesejado dissídio jurisprudencial; 2) à possibilidade de admissão perante o Superior Tribunal de Justiça [7] (STJ); e 3) ao fato de que o acórdão proferido em assunção de competência vinculará indistintamente todos os juízes e órgãos fracionários [8].

O caráter preventivo atribuído ao IAC é característica significativa do instituto, visto que, ao evitar a formação de dissídio jurisprudencial, atua a favor da previsibilidade e da manutenção da segurança jurídica. Isso denota que a pretensão no novel instituto é precisamente prevenir (ou dirimir) controvérsia de Direito com grande repercussão social, vinculando os membros do tribunal e os juízes a eles submetidos.

Deve-se mencionar ainda que, assim como os recursos especiais repetitivos e os enunciados de Súmula do STJ, os acórdãos proferidos em julgamento de IAC são considerados, nos termos do artigo 121-A do Regimento Interno do STJ, precedentes qualificados.

A título exemplificativo, acerca da aplicabilidade do IAC, vale mencionar alguns dos temas admitidos: 1) o Tema 1, cuja admissão ocorreu em 8/2/2017 na 2ª Seção no âmbito do REsp 1.604.412/SC e que versou sobre o cabimento de prescrição intercorrente e eventual imprescindibilidade de intimação prévia do credor e a necessidade de oportunidade para o autor dar andamento ao processo paralisado por prazo superior àquele previsto para a prescrição veiculada na lide; 2) o Tema 2, admitido em 14/6/2016 igualmente na 2ª Seção, que se deu no âmbito do REsp 1.303.374/ES e versou sobre o prazo anual de prescrição em todas as pretensões envolvendo interesses de segurados e segurador em contrato de seguro; e 3) o Tema 3, admitido em 11/10/2017 na 1ª Seção, que se originou a partir de dois processos (RMS 54.712/SP e RMS 53.720/SP) e versa sobre a adequação do manejo do mandado de segurança para atacar decisão judicial que extingue execução fiscal com base no artigo 34 da Lei nº 6.830/80.

Ao seu turno, na seara trabalhista, em caráter ilustrativo, menciona-se que o ministro relator Douglas Alencar Rodrigues, nos autos do IAC-5639-31.2013.5.12.0051, fixou [9], a partir do Tema 2 TST, a seguinte tese [10]: "É aplicável ao regime de trabalho temporário, disciplinado pela Lei nº 6.019/74, a garantia de estabilidade provisória à empregada gestante, prevista no artigo 10, II, b, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias", afastando controvérsia doutrinária e jurisprudencial.

Por sua vez, no âmbito do IRDR, previsto nos artigos 976 e seguintes do CPC/2015, os requisitos são outros: 1) efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de Direito (reparem que há no IRDR exigência de multiplicidade processual, o que não ocorre ao se falar em IAC); e 2) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

Ademais, o IRDR não é cabível perante tribunais de superposição (o IRDR pode ser suscitado perante Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal). Ainda, o julgamento do IRDR aplicar-se-á a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre matéria decidida e que tramitem perante o território de competência do tribunal. 

Por fim, é importante mencionar que existe relevante discussão sobre a possibilidade de instauração de IRDR a partir de um processo que ainda está em primeiro grau. Como indicam os dados práticos [11] e também a doutrina, o tema é bastante controverso, havendo prevalência do entendimento de que deveria haver a vinculação entre o IRDR e uma causa subjacente em segunda instância [12].

Fredie Didier Júnior [13] defende a tese de que se o IRDR é um incidente a ser julgado pelo tribunal, seria preciso que houvesse um processo no tribunal. Ademais, o doutrinador aduz que, se não existisse caso em trâmite no tribunal, haveria um processo originário e não um incidente, o que não seria possível, dado que caberia ao legislador criar competências originárias. Em mesma linha, Eduardo Talamini [14] sustenta que existiriam limites temporais, ou seja, a multiplicidade de processos sobre a mesma questão ainda pendentes de julgamento em primeiro grau seria insuficiente e prematura para a instauração de IRDR.

De outro lado, justificar-se-ia, em entendimento minoritário, a admissão de IRDR em primeira instância, tendo em vista que a finalidade do IRDR é produzir eficácia pacificadora de múltiplos litígios mediante estabelecimento de tese aplicável a todas as causas em que se debata a mesma questão de Direito [15], à luz dos princípios da razoável duração do processo e do objetivo de promover o "desafogamento" do Poder Judiciário, bem como garantir segurança jurídica aos jurisdicionados, demonstrada a efetiva repetição das demandas e demais requisitos.

Sem descurar das relevantes diferenças entre os institutos, é salutar mencionar que há igualmente cruciais pontos de convergência, quais sejam: 1) conferir maior estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica; 2) evitar a divergência interpretativa entre juízes vinculados ao mesmo tribunal, a partir da uniformização das teses decididas; 3) atuar em prol da celeridade processual; 4) responder a massificação processual percebida atualmente e, cada vez mais, em nosso ordenamento jurídico; e 5) atribuir a força obrigatória do entendimento do tribunal local aos órgãos a ele vinculados, ou seja, a formação de precedentes obrigatórios.

Em outras palavras, tanto o IAC como o IRDR, imbuídos em um contexto de premente necessidade de uniformização, estabilidade, integridade e coerência no âmbito no CPC/2015, passam a integrar o sistema de precedentes em nosso ordenamento jurídico em resposta ao crescente [16] padrão brasileiro de litigiosidade repetitiva.

Dessa forma e também a considerar que: 1) o Poder Judiciário brasileiro não se mostra plenamente aparelhado à massificação dos conflitos; 2) a possibilidade do alcance de soluções jurídicas distintas para caso semelhantes, gerando enorme insegurança jurídica; e 3) as repercussões sociais, políticas e econômicas oriundas dos litígios contemporâneos, tornou-se imprescindível identificar um tratamento jurídico diferenciado para tais questões, de maneira a privilegiar a racionalização e o desenvolvimento do Direito, por meio do alcance da integridade e coerência do ordenamento jurídico através de um sistema de pronunciamentos judiciais vinculantes.

Isso pois a segurança jurídica, nas palavras de Gustavo Silveira Vieira [17], só poderá ser alcançada quando tornar-se evidente que em um sistema coerente e seguro seja absolutamente inconcebível que o Judiciário confira distintas soluções jurídicas para casos iguais.

Como pondera Marcelo Veiga Franco [18], a adoção desse sistema, especialmente pela introdução de regras sobre a interpretação dos precedentes judiciais bem como a criação do IRDR e do IAC, é indicativo da promoção do tratamento jurídico diferenciado para tais questões.

Dada a relevância do IAC e do IRDR, sem descuidar das peculiaridades inerentes a cada um dos institutos, é essencial a compreensão conjunta do âmago dos institutos e do sistema de formação de precedentes não somente a viabilizar a sua louvável aplicação, mas também para, em sentido contrário, construir uma argumentação que permita a diferenciação prática de determinado caso concreto.

Sob qualquer perspectiva, portanto, o sistema nacional de precedentes e os mecanismos aludidos tornam-se cada vez mais indispensáveis para a resolução de litígios repetitivos e uniformização de pronunciamentos judiciais, a preservar a efetividade e a segurança jurídica, além de meio apto e eficaz para a desobstrução excessiva do Poder Judiciário.

 

[1] De acordo com a Justiça em Números, em 2017 foram ajuizados 29,1 milhões de processos e foram baixados 31 milhões, resultando com um estoque de 80,1 milhões de processos em tramitação. 

[2] O CPC/15, em seu artigo 928, considera julgamento de casos repetitivos a decisão proferida em: 1) incidente de resolução de demanda repetitivas (IRDR); e 2) recurso especial e extraordinário repetitivos. O julgamento tem por objeto questão de Direito material ou processual.

[3] DE MACEDO, Lucas Buril. Algumas considerações sobre o regime processual das demandas repetitivas. Revisa de Processo. Vol. 296.2019. p. 207- 233. Out. 2019. DTR. 2019. 40191.

[4] DIDIER JR., Fredie e CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual.

[5] GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Os Perfis do incidente de assunção de competência no CPC/2015. Revista dos tribunais. Vol. 297/2019. p. 213/231. Novembro de 2019. DTR/2019/41015.

[6] PRITSCH, Cesar Zucatti. IRDR, IAC e Stare Decisis horizontal: sugestões regimentais para evitar a criação de jurisprudência conflitante. Revista eletrônica do Tribunal Regional da 4ª Região. Ano XIV, Número 214. Junho de 2018.

[7] Em 8/2/2017, no âmbito do REsp 1.604.412, o STJ admitiu e julgou o primeiro IAC, desde a revitalização do instituto pelo CPC/2015.

[8] Exceto se houver revisão de tese.

[9] O IAC foi instaurado em 6/10/2017 e o acórdão foi publicado em 29/7/2020.

[10] A tese jurídica foi fixada em 18/11/2019.

[11] De acordo com o I Relatório de Pesquisa Observatório Brasileiro de IRDRs, dos 316 IRDRs que mencionaram causa pendente no tribunal, 141 não foram admitidos, 158 foram admitidos e outros 17 tiveram resultados diversos. Por sua vez, para os 353 IRDRS em que não houve menção de casos pendentes perante o tribunal, 308 não foram admitidos, 38 foram admitidos e outros sete tiveram resultados diversos. A diferença prática é gritante e permite dizer que em apenas 10.7% dos IRDRs suscitados não houve menção a caso pendente de julgamento no tribunal foram admitidos.

[12] Vide o Enunciado 344 do Fórum Permanente de Processualistas Civis.

[13] DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil cit., v. 3, p. 625.

[14] TALAMINI, Eduardo. Incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR): pressupostos. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/depeso/236580/incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas–irdr—pressupostos.

[15] JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. 48ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2016, vol.III, p. 913.

[16] De acordo com o Relatório Justiça em Números 2018, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, havia no judiciário, em 2017, 80,1 milhões de processos judiciais pendentes de solução definitiva.

[17] VIERIA. Gustavo Silveira. Stare Decisis: o precedente e sua fundamentação no novo CPC. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coluna-machado-meyer-stare-decisis-e-seguranca-juridica-o-precedente-judicial-e-sua-fundamentacao-no-novo-cpc-08042016.

[18] FRANCO, Marcelo Veiga. A importância dos precedentes judiciais no tratamento qualitativo da litigiosidade repetitiva. Revista dos tribunais. Vol. 1014/2020. p. 307-334. Abril 2020. DTR/2020.371.

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