Garantias do Consumo

A interpretação teleológica do Direito Consumerista e os limites do mercado

Autores

  • Plínio Lacerda Martins

    é doutor em Direito pela UFF diretor do Brasilcon da Região Sudeste professor adjunto da UFF presidente da MPCON (2014-2016) coordenador da Codecon-Alerj e promotor de Justiça aposentado.

  • Sergio Gustavo Pauseiro

    é mestre e doutor em Direito pela UFF professor adjunto da Faculdade de Direito da UFF professor do programa de doutorado da UFF e coordenador da pós-graduação em Direito e Tecnologia da UFF.

  • Paula Ramada

    é mestre pela Unipac e doutora em Direito pela UFF advogada associada ao Brasilcon professora de Direito do Consumdor da Universo-JF e da Faculdade Lusofona-RJ e pesquisadora CNPQ.

6 de janeiro de 2021, 8h02

O ano de 2021 traz inúmeros desafios, entre eles a correta interpretação do CDC em relação as inúmeras leis editadas e julgamentos de demandas consumeristas no nosso país. Sustentamos o entendimento que o CDC é um código que possui como eixo a persona do consumidor, a "proteção do consumidor" no mercado de consumo, presumindo o mesmo como parte vulnerável, ao contrário das outras leis de defesa do consumidor de outros países da Europa, que buscam a proteção da relação jurídica ou mesmo o foco no mercado de consumo. Carlos Maximiliano leciona que "interpretar é explicar, dar o significado do vocábulo, mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão" [1], significando afirmar que o intérprete deve extrair da norma tudo o que a mesma contém. A interpretação opera sobre ato de vontade representado na lei, podendo o intérprete utilizar de vários métodos de interpretação como gramatical, lógico, sistemático, finalístico. Em relação ao Direito do Consumidor, o legislador consignou no texto constitucional [2] a vontade do Estado de reconhecer como direito fundamental a defesa do consumidor, na expressão de Cláudia Lima Marques, como agente constitucionalmente identificado [3]. Destarte a interpretação finalística do CDC tem amparo na defesa do consumidor, e não do mercado, daí a razão do nome juris CDC, ao contrário de outros ordenamentos jurídicos alienígenas que preferiram a terminologia "código do consumo", em atenção à proteção da relação jurídica.

Este ensaio, sem a pretensão de esgotar o assunto, busca refletir a respeito da interpretação que os nossos tribunais posicionam a respeito das demandas consumeristas, considerando a disputa entre o risco da atividade do fornecedor e as imposições a que o mercado submete o consumidor, principal protagonista da sociedade de consumo. No tocante à interpretação feita pelos tribunais no Brasil, atualmente o sistema jurídico possui elementos extraídos da civil law e da common law. Podemos dizer que ambos os sistemas adotam, hoje, a teoria dos precedentes. No estudo da hermenêutica jurídica, nos deparamos com diversos doutrinadores que buscam dar o destaque para a correta interpretação da lei. John Rawls explica que, embora a sociedade seja um empreendimento cooperativo visando a vantagens mútuas, é tipicamente marcada por conflito, bem como identidade e interesses [4]. Em Kant, duas questões são essenciais para se entender a metodologia para interpretação da norma hoje. Podem ser percebidas por intermédio das expressões de mundus sensibilis e mundus intelligibilis. Aqui reside a diferença entre o gegenstand e objekt. O gegenstand refere-se ao mundo sensível ao conjunto dos fenômenos, tudo que já está criado, e o objekt ao consenso de ideias no mundo inteligível ou entendimento [5]. Hans Kelsen afirma que pode haver discrepância, total ou parcial, entre o sentido verbal da norma e a vontade do legislador [6]. Perter Häberle explica que na interpretação teleológica, o julgador busca analisar a vontade do legislador contida na próprio lei, verificando qual o objetivo ele pretendia atingir [7]. Não é objeto deste ensaio a escolha entre os diversos doutrinadores da hermenêutica jurídica, aquele que possa interpretar o Direito do Consumidor de forma autêntica, mas um fato é certo: nas demandas envolvendo relação jurídica de consumo, a interpretação teleológica do CDC deve ser feita em conformidade com a finalidade da edição da lei, sendo um código de "proteção" e "defesa" do consumidor, e não do mercado de consumo.

Fernando Martins defende que as "fontes estão pulverizadas na teoria geral do direito do consumidor", concluindo que "as fontes fazem parte da construção, interpretação e aplicação do direito do consumidor, permitindo sua renovação e a franca multidisciplinaridade com as demais instâncias dogmático-axiológicas, também fundamentadas por suas próprias fontes" [8].

Interpretações equivocadas, julgadas contrárias ao entendimento do Direito do Consumidor, ainda hoje são comuns nos nossos tribunais. Tomemos, por exemplo, a Súmula 381 do STJ, que, apesar das críticas dos doutrinadores consumeristas, mantém o entendimento da impossibilidade de o juiz apreciar ex officio cláusulas contratuais abusivas nos contratos bancários, sendo certo que o CDC possui normas de ordem pública e o artigo 51 expressa a nulidade absoluta [9]. Entretanto, destacamos interpretações dos tribunais que merecem aplausos do Direito Consumerista, como no caso da demanda envolvendo a repetição do indébito. O direito do consumidor era interpretado no sentido de que o consumidor somente teria direito a devolução em dobro em razão da má- do fornecedor ou mesmo culpa, em decorrência da interpretação da expressão "salvo hipótese de engano justificável" (artigo 42, parágrafo único in fine[10]Nesse sentido, duas concepções interpretavam a expressão. A concepção subjetiva, liderada por Arruda Alvim, afirma que a repetição em dobro somente é possível se demonstrada a má-fé ou ao menos a culpa (receio de chancelar o enriquecimento sem causa do consumidor). Assim, se a cobrança indevida decorrer de um equívoco, não atribuível a má-fé ou culpa do fornecedor, não se permite a restituição em dobro, sustentando que para a imposição da sanção civil, faz-se mister a caracterização do dolo ou culpa no agir (Súmula 159 do STF, artigo 1.531 do CC/1916, artigo 940 CC/02). Assim, se ocorrer o erro escusável não será devido em dobro. Para Claudia Lima Marques, defensora da concepção objetiva, a expressão traduz o fortuito externo, considerando que os equívocos na oferta envolvem falha gerencial, o fortuito interno que deve ser suportado pelo fornecedor, sustentando que, ainda que ausente a má-fé, a repetição em dobro é devida, em atenção à teoria do risco e à responsabilidade objetiva, pois a cobrança indevida é uma violação ao dever de atendimento a teoria da qualidade, que envolve os deveres anexos (informação, cooperação e cuidado). Há ainda a interpretação da repetição do indébito, fazendo a distinção entre a cobrança judicial e a extrajudicial na relação de consumo, sendo que na cobrança judicial aplica-se o artigo 940 do CC e, na cobrança extrajudicial, o artigo 42 do CDC [11]. Os tribunais sustentavam a concepção subjetiva, demonstrando a necessidade de devolução em dobro por patente a má-fé [12]. Guilherme Martins já comentava a respeito da correta interpretação do CDC, relatando que, constatado o pagamento em duplicidade, impõe-se o dever de devolução em dobro [13]. Recentemente, o STJ mudou o entendimento, ao nosso aviso, dentro da interpretação teleológica do CDC, aprovando tese que visa a pacificar a interpretação do parágrafo único do artigo 42 do CDC ao afirmar que a restituição em dobro do indébito independe da natureza do elemento volitivo do fornecedor que cobrou valor indevido, revelando-se cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva [14]Citamos ainda a prática abusiva da perda da propriedade do produto deixado na assistência técnica para conserto, configurando como abandono (res derelicta?). A correta interpretação, ao nosso juízo, incide que o abandono exige a vontade, o animus do proprietário em abandonar a coisa, não podendo ser aplicado o dispositivo do CC como justificativa para o fato de o consumidor deixar um produto para conserto na assistência e esquecê-lo, considerado como abandono. Nesse seguimento, sugerimos a leitura de artigo "perda da posse/propriedade do produto pelo abandono, prática comercial abusiva", que permite a interpretação favorável ao consumidor, inobstante o CC estabelecer em sentido diverso para as questões entre os iguais [115]. Também, data maxima venia do entendimento de diversos juristas, o CDC vinha sendo aplicado aos serviços públicos da saúde, como no caso do SUS, ao entendimento da remuneração indireta feita aos profissionais da saúde. Contudo, o entendimento da aplicação do CDC aos serviços públicos na forma do artigo 6, X, e artigo 22 é que são aqueles serviços remunerados por tarifa, e não por tributos. O STJ afirma que os serviços uti singuli são prestados de forma divisível e singular, remunerados diretamente por quem deles se utiliza, em geral por meio de tarifa. Já os serviços uti universi são prestados de forma indivisível e universal, custeados por meio de impostos. "Diante desse cenário, caracterizando-se a participação complementar da iniciativa privada seja das pessoas jurídicas, seja dos respectivos profissionais na execução de atividades de saúde como serviço público indivisível e universal, há de ser, por conseguinte, afastada a incidência das regras do CDC" [16]. Dessa forma, o STJ resolveu alinhar o entendimento, que a nosso juízo é o mais correto, diferenciando dos serviços públicos regulados pelo CDC e pela lei do usuário do serviço público.

Entre as diversas interpretações que diariamente são feitas do CDC na aplicação do direito ao caso concreto, destaca-se a questão do erro na oferta dos produtos, que, ao nosso aviso, são consequências do risco do negócio jurídico [17]. O fornecedor que expõe o seu produto no mercado, sem a devida revisão do texto que irá circular no mercado, deve arcar com ônus da sua falta de diligência, em razão de sua desídia. A teoria do erro (escusável/inescusável), aplicável no CC, deve ser interpretada com reservas no Direito do Consumidor, devendo dar destaque para o princípio da vinculação da oferta e a boa-fé objetiva com previsão no CDC em face de inúmeras demandas ocorridas no mercado. A errata deve ser a exceção, e não a regra [18]!

Hodiernamente, a interpretação do Direito do Consumidor tem como desafio novas barreiras que estão sendo criadas para o exercício do direito do vulnerável, por exemplo, no aspecto processual, a exigência de somente ser possível propor uma ação após reclamação formulada perante o fornecedor, em atenção ao princípio da demanda resistida, em flagrante desrespeito ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisidição e o direito básico do consumidor que determina a facilitação da defesa do consumidor. Conforme apontado, a forma como os valores são ponderados pelos magistrados, comparado a interpretação feita pelos tribunais, é que recai a maior parte das preocupações, em especial em relação ao Direito do Consumidor, parecendo indicar que o método interpretativo está a cargo de cada julgador. Verificamos a necessidade de observar, na interpretação das demandas deduzidas em juízo, a teoria do risco do negócio em confronto com a teoria da defesa do consumidor. Preferimos a doutrina daqueles que alicerçam a interpretação do Direito do Consumidor, reconhecendo o desequilíbrio entre o fornecedor e consumidor e a necessidade de defender o consumidor frágil em face ilicitude lucrativa do fornecedor, consoante doutrina de Pedro Rubim [19].

 


[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 6 ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1957.p.23.

[2] Vide CF, artigo 5 XXXII e artigo 170, V.

[3] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no CDC: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 776.

[4] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad.: Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 4-7.

[5] Idem, p. 298.

[6] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ed. Trad.: João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 246-247.

[7] HÄBERLE, Peter, Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Interpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997. p. 131.

[8] MARTINS, Fernando Rodrigues e FERREIRA, Keila Pacheco. A contingente atualização do código de defesa do consumidor: novas fontes, metodologia e devolução de conceitos. Revista de Direito do Consumidor. vol. 83/2012. p. 11 – 53. Jul – Set / 2012.

[9] Súmula 318 do STJ: Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas.

[10] ALMEIDA, Luiz Claudio Carvalho de. A Repetição do Indébito em Dobro no Caso de Cobrança Indevida de Dívida Oriunda de Relação de Consumo como Hipótese de Aplicação dos Punitive Damages no Direito Brasileiro. Revista de Direito do Consumidor. vol. 54/2005 p. 161 -172. Abr – Jun. 2015.

[11] STJ – RESP 1.645.589 – MS (2016/0186599-2).

[12] TJ-RJ – 2001.001.23333 – AC- 15 CC. Des. Sérgio Lúcio Cruz – 06/02/2002.

[13] MARTINS, Guilherme Magalhaes e MODENESI, Pedro. A proteção do adimplente diante da abusiva cobrança da instituições financeiras e a jurisprudência do STJ. Revista de Direito do Consumidor. vol. 130. p. 479-487. Ago/2020.

[14] O STJ tratou no dia 21.10.2020 sobre o tema da repetição em dobro prevista no artigo 42 do CDC. ConJur – Devolução em dobro por cobrança indevida não exige má-fé, diz STJ, por Danilo Vital. 21.out.2020.

[15] MARTINS, Plinio Lacerda. Conserto de produtos: perda da posse/propriedade do produto pelo abandono. Prática comercial abusiva. Publicado na Revista MPMG Jurídico. Ano III–out/nov/dez de 2007.Belo Horizonte:CEAF.2007, p.29-30. Publicado no Migalhas em 2018 disponível em: https://migalhas.uol.com.br/depeso/273045/prazo-para-o-consumidor-retirar-o-produto-para-conserto–res-derelicta. Acesso em 01 dez. 2021.

[16] STJ Resp nº 1.771.169 – SC (2018/0258615-4).

[17] Leonado Roscoe orienta no sentido que toda oferta publicitária vincula o fornecedor. Vale dizer, o obriga a cumpri-la (artigo 30 do CDC). É completamente inválida a retratação. Até porque, além da possibilidade de alguns consumidores não terem tomado conhecimento dela, defeitos em publicidade constituem riscos que o fornecedor deve assumir. Se houve erro na divulgação, que o assuma quem o praticou.BESSA, Leonardo Roscoe. Coluna Direito do Consumidor. Correio Braziliense, 12.05.2014.

[19] FORTES, Pedro Rubim Borges. O Fenômeno da Ilicitude Lucrativa. Revista Estudos Institucionais, v. 5, n.1, p. 104-132, jan./abr. 2019.

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