Opinião

As novas guidelines da OCDE sobre preços de transferência na crise da Covid-19

Autor

  • Maria Angélica Feijó

    é advogada sócia da Área Tributária do Silveiro Advogados doutoranda pela UFPR e Mestre pela UFRGS pesquisadora visitante nas Universidades de Heidelberg e Gênova membro do Projeto Processualistas do IBDP e do WLM-BR além da Comissão Especial de Direito Tributário e de Arbitragem da OAB/RS e professora universitária.

6 de janeiro de 2021, 12h03

No último dia 18 de dezembro, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) publicou novas orientações a respeito dos preços de transferência, incluindo nessa edição as suas implicações no contexto da pandemia causada pela Covid-19 [1]. Dentro do contexto atual da sua relação com a OCDE, assim como da realidade da economia brasileira, o Brasil deveria ver tais orientações como uma oportunidade para dar um quick off na implementação das diretrizes da OCDE sobre preços de transferência, dentro do seu compromisso de harmonização das regras internas com as regras internacionais.

Desde que o Brasil formalizou o seu pedido de ingresso na OCDE, em 2017 [2], para além dos desafios relacionados às questões políticas, um dos principais compromissos do país é a harmonização das suas regras tributárias internas com as guidelines desenvolvidas pela organização, entre elas as regras sobre preços de transferência. Em 2019, demos um passo importante neste desafio: a OCDE e a Receita Federal do Brasil (RFB) publicaram a "Declaração conjunta sobre o projeto de preços de transferência da OCDE-Brasil" [3], além da realização de evento com a divulgação do relatório completo do estudo [4]. Entre as principais divergências existentes, foi apontado o problema da ausência de adesão do Brasil ao ALP (arm’s length principle), assim como o fato de termos uma análise de comparabilidade limitada, que não considera os riscos, ativos e funções das instituições envolvidas em transações.

Em termos econômicos, essa divergência entre as regras internas e internacionais sobre os preços de transferência atrapalham a neutralidade tributária e afetam o investimento estrangeiro no país. A necessária convergência é, portanto, fundamental para garantir igualdade e segurança jurídica nas relações tributárias entre empresas (brasileiras e estrangeiras) e, assim, transformar o Brasil em um país economicamente atraente para receber investimentos de fora.

A chegada da pandemia também trouxe novos desafios para serem endereçados sobre esse tema. A crise econômica instaurada em 2020 levou a OCDE, assim como outras organizações, a publicar diretrizes atualizadas dentro do contexto de pandemia.

É nesse contexto que, no final de dezembro, a OCDE publicou "Guidance on the transfer pricing implications of the Covid-19 pandemic". O documento foi elaborado com base nas respostas apresentadas pelos Estados-membros da OCDE a um questionário que foi usado como base para a criação dessas novas e atuais diretrizes. Essas novas orientações acabaram por endereçar, tanto aos contribuintes quanto às administrações tributárias, alguns problemas vistos como prioritários pela organização no contexto dos preços de transferência, como: 1) análise de comparabilidade; 2) imputação de perdas e custos relacionados especificamente à Covid-19; 3) programas de assistência governamental; e 4) acordos prévios de preços.

A singular condição econômica imposta pela pandemia trouxe novos desafios práticos para os contribuintes, assim como para as administrações tributárias sobre este tema. Um deles, sem dúvida, diz respeito ao crescimento sem precedentes dos programas de assistência governamental, fazendo nascer questões sobre quais fatores que deveriam ser avaliados para determinar se o recebimento de assistência governamental poderia ou não afetar os parâmetros de avaliação dos preços de transferência.

No âmbito interno, é sabido que a RFB não aplica e — tampouco — tem se inspirado em orientações da OCDE sobre preços de transferência. Exemplo disso ocorre quando analisamos recentes soluções de consulta sobre o tema [5], cujo cenário aponta para a exigência de novas regras, como a existência de "benefício mútuo" entre as empresas vinculadas para que um contrato de cost sharing internacional seja considerado válido. Hoje já é possível observar o nascimento de novos litígios entre contribuintes e a RFB no que diz respeito aos preços de transferência no contexto da pandemia. Por isso, é urgente a adoção de uma nova postura pela RFB no assunto.

Tal cenário poderia ser visto como uma oportunidade para a adoção de algumas medidas infralegais pela própria RFB (dentro daquilo que não está reservado à lei complementar ou lei ordinária em matéria tributária), em relação a orientações práticas para análise e avaliação dos preços de envolvendo empresas situadas no Brasil. Se agarrássemos essa oportunidade, certamente ela seria decisiva para o nosso ingresso na OCDE em um curto espaço de tempo, como recentemente sinalizou o diretor do Departamento de Economia da Organização, Álvaro Pereira [6].

Porém, ao que tudo indica, é possível que esse cenário seja visto apenas como mais um desafio — de longo prazo — para o Brasil se adequar ao regramento da OCDE. E aqui precisamos recordar que, quando publicado relatório do estudo entre OCDE e Brasil no evento realizado em dezembro de 2019 [7] (mencionado anteriormente), tivemos a chance de estabelecer um workflow, cronograma ou algumas diretrizes primárias para darmos um pontapé inicial no processo de convergência do nosso regramento ao da OCDE. Contudo, não foi isso que fizemos. No relatório foram trabalhados diversos cenários para o alinhamento das regras internas ao padrão OCDE, porém sem qualquer indicação de quais as opções o Brasil decidiu tomar, e quando seriam implementadas.

Sabemos que muitas empresas foram duramente atingidas pela pandemia e podem estar tendo prejuízos em suas práticas comerciais. Para esses negócios, a forma como estão sendo alocados as perdas e os custos decorrentes da pandemia da Covid-19 dentro dos preços de transferência entre empresas relacionadas é, hoje, sem dúvidas, um dos assuntos mais sensíveis no mercado internacional — que está sendo acertadamente endereçada pela OCDE, como já esperávamos. Porém, até o momento, não houve qualquer endereçamento interno deste tema, o que colabora para a manutenção de um cenário econômico brasileiro não otimista para 2021, com ainda menos segurança e confiabilidade do investidor estrangeiro em nosso país.

 


[5] Nesse sentido, vide Solução de Consulta nº 276/19.

Autores

  • Brave

    é advogada, sócia da Área Tributária do Silveiro Advogados, doutoranda pela UFPR e Mestre pela UFRGS, pesquisadora visitante nas Universidades de Heidelberg e Gênova, membro do Projeto Processualistas, do IBDP e do WLM-BR, e professora universitária.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!