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Uso da taxa Selic como índice de correção monetária é um equívoco a ser reparado

Autor

  • Edilton Meireles

    é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboadoutor pela PUC/SP desembargador do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região professor adjunto da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBa).

6 de janeiro de 2021, 16h33

O STJ, há quase três décadas, definiu que a taxa Selic é composta pela soma do índice que reflete a correção monetária mais os juros moratórios.

Nas últimas decisões do STJ, em geral, cita-se como fundamento da decisão o "precedente Fux". Esse precedente seria o decidido no REsp nº 411.164, em 14/5/2002.

Naquela oportunidade, o então ministro do STJ concluiu, sem apontar qualquer fundamento fático-jurídico, que "a taxa Selic representa a taxa de juros reais e a taxa de inflação no período considerado e não pode ser aplicada, cumulativamente, com outros índices de reajustamento".

No voto, o ministro Fux apontou que "a taxa Selic é o valor apurado no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, mediante cálculo da taxa média ponderada e ajustada das operações de financiamento por um dia. A referida taxa reflete, basicamente, as condições instantâneas de liquidez no mercado monetário e se decompõe em taxa de juros reais e taxa de inflação no período considerado, razão pela qual não pode ser aplicada cumulativamente. com outros índices de reajustamento, como por exemplo, com a Ufir, o IPC e o INPC".

Da análise do voto se constata que, na realidade, o ministro Fux respaldou sua decisão em precedente que citou e transcreveu. Este foi o REsp nº 396.918, de 27/2/2002, além de outros julgados no mesmo sentido.

Analisando esses precedentes citados, verifica-se que eles também não apontam o fundamento fático-jurídico para conclusão de que a taxa Selic reflete o índice inflacionário. Em todos eles, na realidade, o que se verifica é a indicação da existência de precedentes a justificar a decisão. E de precedentes em precedentes citados chegamos ao primeiro deles (salvo engano de pesquisa), que seria o REsp nº 187.401, julgado em 3/11/1998.

Nesse julgamento, também sem indicar o fundamento fático-jurídico, o então ministro José Delgado concluiu que "há de se considerar que a aplicação de juros com base na taxa Selic compreende, também, a inclusão da correção monetária".

Na realidade, o relator, para assim concluir, baseou-se no decidido na sentença proferida naqueles autos, transcrevendo-a no trecho no qual o juiz de primeiro grau afirma que "no que se refere à rentabilidade, os papéis negociados (atrelados à taxa Selic) possuem uma expectativa de correção monetária e juros". "Infere-se, assim, que a correção monetária é considerada na apuração da taxa Selic". Nem mais, nem menos!

E a partir daí o STJ repete essa decisão, citando sempre o precedente, ainda que, nas decisões posteriores, apenas se preocupe em mencionar os julgados mais recentes ao julgamento a ser realizado, de modo que atualmente ninguém mais cita aquela primeira decisão.

Da leitura de todos os acórdãos pesquisados no STJ não encontramos nenhum que apresente uma razão fático-jurídico para demonstrar que a taxa Selic, de fato, insere em sua composição um índice de correção monetária. Aliás, do próprio precedente originário já se destaca o equívoco do STJ, o qual iremos ressaltar adiante.

Nossa pesquisa, junto às decisões do STJ, demonstra que, na realidade, há um substancioso voto vencido em sentido contrário. Ele foi proferido pelo então ministro Franciulli Netto, no julgamento dos EREsp nº 193.453. Na oportunidade, em robusta fundamentação, o ministro vencido procurou demonstrar que a taxa Selic não é composta pelo índice de correção monetária.

No voto vencido, o ministro Franciulli Netto deixa claro o que é óbvio: a correção monetária, "sabem-nos todos, é o fato de readaptação do valor monetário corroído pelos efeitos da inflação, que apenas pode ser aferida a posteriori, por metodologia própria centrada notadamente na variação de preços dos produtos e serviços escolhidos para esse fim". E, ainda aponta que a taxa Selic sequer pode ser considerada como índice de juros moratórios.

Mas vencido, não fez escola. E pior: eis que, no último dia forense do ano pandemônico de 2020, o STF, no julgamento das ADCs 58 e 59 e das ADIs 5.867 e 6.021, resolveu concluir que a taxa Selic, na esteira das decisões do STJ, é índice de correção monetária e juros.

No voto vencedor, o ministro Gilmar Mendes, para assim concluir, valeu-se das decisões do STJ, citando diversos julgados dessa última corte. Em nenhum desses julgados, porém, o STJ aponta qual o fundamento para concluir que a taxa Selic é composta pelo índice de correção monetária. Sempre faz referência a um precedente.

Todas essas decisões, porém, estão equivocadas, salvo melhor juízo. E a essa conclusão se chega a partir das razões postas pelo próprio Comitê de Política Monetária (Copom), enquanto órgão do Banco Central responsável pela fixação da taxa Selic.

Antes de citar as referidas razões, é preciso relembrar que com a correção monetária se busca recompor a perda do poder aquisitivo da moeda. Parte-se um fato já ocorrido (variação do poder aquisitivo da moeda — inflação) para, a posteriori, fazer com que a moeda seja recomposta em seu poder de compra.

A correção monetária, nesse ponto, acaba por refletir um dado econômico, qual seja: a variação do preço das mercadorias ocorridas em determinado período passado. Parte-se do que já ocorreu para recompor a perda. Logo, o índice de correção monetária não pode ser fixado a partir do que estar por vir, isto é, pelo que se espera ou projeta-se para o futuro. Ele, na realidade, reflete o já ocorrido.

Pois bem. O Copom, por exemplo, ao resolver manter a taxa Selic à razão de 2% anualmente, quando da realização de sua 235ª reunião, em 8 e 9 de dezembro de 2020 (veja aqui), apontou, entre outras razões para indicar esse percentual, que, verbis:

"6. No cenário básico, com trajetória para a taxa de juros extraída da pesquisa Focus e taxa de câmbio partindo de R$ 5,25/US$ 2, e evoluindo segundo a paridade do poder de compra (PPC), as projeções de inflação do Copom situam-se em torno de 4,3% para 2020, 3,4% para 2021 e 3,4% para 2022. Esse cenário supõe trajetória de juros que encerra 2020 em 20% a.a. e se eleva até 30% a.a. em 2021 e 4,5% a.a. em 2022. Nesse cenário, as projeções para a inflação de preços administrados são de 2,3% para 2020, 5,7% para 2021 e 3,6% para 2022.
7. No cenário com taxa de juros constante a 20% a.a. e taxa de câmbio partindo de R$5,25/US$, e evoluindo segundo a PPC, as projeções de inflação situam-se em torno de 4,3% para 2020, 3,5% para 2021 e 4% para 2022. Nesse cenário, as projeções para a inflação de preços administrados são de 2,3% para 2020, 5,7% para 2021 e 3,7% para 2022".

Observe-se que o próprio Copom se refere à taxa Selic de 2% como taxa de juros. E para manter essa taxa neste patamar, leva em consideração a projeção da inflação "em torno de 4,3% para 2020, 3,4% para 2021 e 3,4% para 2022".

Vejam: projeção e não fato passado já ocorrido.

O Copom, portanto, não considera para a fixação da taxa Selic o fato já ocorrido, isto é, a inflação do período passado, de fato medida, mas, sim, sua projeção para o futuro. E tanto é assim que o Copom, naquela mesma oportunidade, entre outras razões, inclusive por opção meramente política (assim desejo que seja para atingir uma meta perseguida),

"(…) Avalia que, desde a adoção do forward guidance, observou-se uma reversão da tendência de queda das expectativas de inflação em relação às metas para o horizonte relevante. Além disso, ao longo dos próximos meses, o ano-calendário de 2021 perderá relevância em detrimento ao de 2022, que está com projeções e expectativas de inflação em torno da meta. A manutenção desse cenário de convergência da inflação sugere que, em breve, as condições para a manutenção do forward guidance podem não mais ser satisfeitas, o que não implica mecanicamente uma elevação da taxa de juros pois a conjuntura econômica continua a prescrever estímulo extraordinariamente elevado frente às incertezas quanto à evolução da atividade. No cenário de retirada do forward guidance, a condução da política monetária seguirá o receituário do regime de metas para a inflação, baseado na análise da inflação prospectiva e de seu balanço de riscos".

Vejam que o Copom parte da projeção, expectativas da inflação, "em relação às metas para o horizonte relevante", para fixar a taxa Selic. E isso fica escancarado quando faz uso do conceito econômico de forward guidance (orientações futuras) para definir a taxa Selic. E o próprio Copom, na sua 232ª reunião cuidou de apontar o uso desse fator econômico:

"De forma a prover o estímulo monetário considerado adequado para o cumprimento da meta para a inflação, mas mantendo a cautela necessária por razões prudenciais, o Copom considerou a utilização de uma 'prescrição futura' (isto é, um forward guidance) como um instrumento de política monetária adicional. O Copom discutiu as limitações no uso deste instrumento em países emergentes. Em relação aos pares desenvolvidos, países emergentes são mais suscetíveis a contágio de crises externas e possuem maiores vulnerabilidades nos fundamentos econômicos. Consequentemente, devido à maior imprevisibilidade e volatilidade, o uso de tal instrumento torna-se mais desafiador. O comitê concluiu que, apesar dessas limitações, a prescrição futura seria a estratégia de implementação de política que atualmente apresenta a melhor relação custo benefício. A prescrição futura cumpre o papel de transmitir a visão do comitê sobre suas ações futuras e tende a ajustar as expectativas expressadas na parte intermediária da curva de juros".

Ou seja, o Copom, para fixar a taxa Selic, nunca se valeu da verdadeira e ocorrida inflação ou eventual deflação ocorrida (fato passado). Pode se valer, porém (se assim achar importante), da perspectiva (projeção) de inflação para um período futuro.

E esse dado, aliás, não passou despercebido pelo juiz que proferiu a sentença que redundou no primeiro precedente do STJ (REsp nº 187.401), que criou toda essa confusão. Ali ficou mencionado que o juiz considerou que a taxa Selic possui "uma expectativa de correção monetária e juros".

Observem: expectativa. Ou seja, do que se projeta para o futuro. O juiz e o STJ, e agora o STF, porém, incorrem(ram) no erro de considerar a taxa inflacionaria projetada para que ela seja utilizada como fator de correção monetária (que é um dado passado).

Como já mencionado acima, a correção monetária, "sabem-nos todos, é o fato de readaptação do valor monetário corroído pelos efeitos da inflação, que apenas pode ser aferida a posteriori, por metodologia própria centrada notadamente na variação de preços dos produtos e serviços escolhidos para esse fim". Parte do ocorrido (variação de preço) para, uma vez verifica a perda (passado), determinar a recomposição. Perspectiva de inflação (o que se projeta para o futuro), portanto, não serve como índice de recomposição (do que já se passou). 

Vê-se, pois, que o STJ e STF incorrem em grave erro ao definir que a taxa Selic é composta de índice de atualização monetária, já que ela não considera a variação do poder da moeda já ocorrida, mas, sim, sua projeção futura.

STF e STJ, porém, ainda podem se redimir de seus equívocos. Uma boa oportunidade para o STJ está sendo no julgamento do REsp nº 1.081.149. Já o STF poderá se corrigir nos embargos de declaração que serão provavelmente opostos em face das decisões proferidas nas ADCs 58 e 59 e ADIs  5.867 e 6.021.

É o que se espera.

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