Disciplina Funcional

Dever de imparcialidade limita liberdade de expressão de membros do Judiciário

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6 de janeiro de 2021, 8h32

Em um julgado de 1919, o juiz Oliver Wendell Homes Jr. proferiu um histórico voto sobre o caráter relativo da liberdade de expressão. Na ocasião, disse que "a mais rígida proteção da liberdade de palavra não protegeria um homem que falsamente gritasse 'fogo' num teatro e, assim, causasse pânico".

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Caso de juíza que defendeu aglomerações levantou discussão sobre limites da liberdade de expressão nas redes sociais
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Episódio envolvendo uma magistrada de Minas Gerais trouxe novamente o assunto à baila. Trata-se de caso da juíza Ludimila Lins Grilo, que defendeu em uma rede social a aglomeração de pessoas, em desacordo com as recomendações de distanciamento social que buscam mitigar o avanço do novo coronavírus. 

O caso virou polêmica: de um lado, ela foi duramente criticada por contrariar e ironizar as recomendações de autoridades sanitárias de todo o mundo; de outro, pessoas defenderam a magistrada, afirmando que ela tem o direito de se posicionar. Ocorre que, se a liberdade de expressão não é um direito absoluto, o buraco é ainda mais embaixo para membros do Judiciário, mesmo no que diz respeito às manifestações que são feitas fora dos autos. 

Restrições
Sem comentar o caso concreto da juíza de Minas, o desembargador Paulo Gustavo Guedes Fontes, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, lembrou que o Conselho Nacional de Justiça chegou a editar em 2019 uma resolução estabelecendo os parâmetros que devem ser seguidos por magistrados nas redes sociais. 

A medida foi elaborada levando em conta que a integridade da conduta dos juízes fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional contribuiu para a confiança dos cidadãos na judicatura. 

"Não é possível impedir o magistrado de se manifestar sobre assuntos de interesse público, por respeito à liberdade de expressão e porque os juízes podem contribuir efetivamente para o debate. Mas é preciso encontrar o tom, a justa medida, o que é difícil. A meu ver o magistrado não pode sair na defesa desse ou daquele político e manifestar claramente preferências partidárias, até porque pode vir a julgar essas pessoas ou seus adversários, atraindo descrédito sobre sua atuação", disse à ConJur.

Ele também destaca que o juiz deve ser comedido ao tratar de temas polêmicos. "É o chamado 'dever de reserva', que existe em outros países. Suas opiniões devem preferencialmente assumir a forma de posições doutrinárias, sem radicalismos, sobretudo no espaço público."

A resolução do CNJ citada por Fontes é dividida entre recomendações e proibições. O texto diz, em sua primeira parte, que os magistrados devem adotar uma postura seletiva e criteriosa ao ingressar nas redes sociais; observar o decoro e a conduta respeitosa ao utilizar as plataformas digitais; evitar opiniões ou o compartilhamento de informações que possam prejudicar a independência, a imparcialidade, a integridade e a idoneidade do magistrado ou que possam afetar a confiança do público no Judiciário; e evitar manifestações que busquem autopromoção ou superexposição. 

A norma também diz que os juízes devem "abster-se de compartilhar conteúdo ou a ele manifestar apoio sem convicção pessoal sobre a veracidade da informação, evitando a propagação de notícias falsas". 

Proibições
Na segunda parte da resolução, que é referente às proibições, fica vedado ao magistrado emitir opinião que demonstre atuação em atividade político-partidária, assim como a crítica ou apoio público a candidatos, lideranças ou partidos políticos. 

Tais previsões não são exclusivas da resolução: a Constituição Federal, em seu artigo 95, parágrafo único, inciso III, diz o mesmo que o CNJ. O Código de Ética da Magistratura também, no artigo 7º. 

Para o desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas, que foi secretário de Justiça e assessor para assuntos legislativos durante a gestão de Sergio Moro no Ministério da Justiça, o assunto é espinhoso. 

"O tema merece uma discussão isenta de radicalismo e de política. Todas as profissões têm as suas restrições e o que é normal em uma pode ser um absurdo em outra. Os juízes, seja qual for o ramo do Judiciário ou a instância, pela imparcialidade que deles se exige, estão entre os mais visados, são patrulhados até no interior de suas famílias. Por isso mesmo não lhes cabe dar opinião sobre assuntos políticos, decisões de outros colegas, casos não julgados e outras situações fora de seus limites de atuação", diz, em referência ao artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que também impõe restrições aos juízes. 

Ainda segundo ele, cabe ao representante da classe, não aos magistrados individualmente, defender posições. "O tema é complexo, mas precisa ser enfrentado, até para a segurança dos próprios juízes, para que saibam os limites de sua manifestação", conclui. 

Passos lembra que os artigos 15 e 16 do Código de Ética da Magistratura também tratam das restrições aos magistrados em um capítulo dedicado à integridade pessoal e profissional dos juízes. 

Segundo o artigo 15, a integridade da conduta dos magistrados fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura. Sendo assim, prossegue o artigo 16, "o magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos gerais". 

Ministério Público
Restrições parecidas também são impostas aos integrantes do Ministério Público. A Lei Orgânica Nacional do MP (Lei 8.625/93), por exemplo, estabelece nos artigos 43 e 44 uma série de deveres.

Aos membros do parquet, dizem os dispositivos, cabe manter ilibada conduta pública e particular, zelar pelo prestígio da Justiça, sendo proibido o exercício da atividade político-partidária, ressalvada a filiação. 

Além disso, foi editada em 2016, pelo Conselho Nacional do Ministério Público, a Recomendação de Caráter Geral 1, que dispõe sobre a liberdade de expressão, vedação da atividade político-partidária, uso das redes sociais, entre outras coisas. 

Segundo a medida, não configura atividade político-partidária a crítica pública a ideias, ideologias, projetos legislativos e programas do governo. No entanto, é vedado ao integrante do MP "ataques de cunho pessoal, direcionados a candidato, a liderança política ou a partido político, com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública em razão de ideias ou ideologias de que discorde o membro do MP". 

A recomendação também diz que os integrantes do Ministério Público devem tomar "os cuidados necessários ao realizar publicações em seus perfis pessoais nas redes sociais, agindo com reserva, cautela e discrição, evitando-se a violação de deveres funcionais".

Ou seja: garante-se o pleno direito no campo do debate de ideias. Desde que a opinião ou manifestação não trombe com os direitos fundamentais e garantias individuais do próximo. Afinal, o bem jurídico a proteger quando alguém grita "fogo" em um teatro lotado não é do criminoso, mas de suas vítimas.

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