opinião

O Brexit e o fim da jurisdição da Corte de Justiça da União Europeia no Reino Unido

Autor

  • Thiago Almeida

    é advogado e pesquisador convidado de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Genebra (Unige) doutorando em Direito Internacional do Investimento na Faculdade de Direito da UFMG e professor de MBA sobre Infraestrutura Concessões e Parcerias Público-Privadas na PUC Minas e na Fundação João Pinheiro.

6 de janeiro de 2021, 17h41

Momentos antes do Natal de 2020, a União Europeia e o Reino Unido acordaram em um tratado comercial e de cooperação, cumprindo o prazo para a celebração de um instrumento internacional específico após o período de transição que perdurou até 31 de dezembro. A partir da celebração do acordo comercial, o Reino Unido efetivamente se desvencilhou da União Europeia [1].

A afirmação de que houve a completa separação é pouco atenta aos detalhes de que o acordo trata, ou mesmo sobre temas que demandarão novos compromissos específicos. Por exemplo, a União Europeia concordou em pagar ao governo britânico o valor de 25% sobre todos os produtos pesqueiros de embarcações comerciais europeias em águas britânicas. Contudo, essa definição perdurará até 2026, quando deverão estabelecer novas regras ou prorrogar tais disposições. Além disso, a Irlanda do Norte permanece submetida às regras da União Europeia e houve um compromisso para resolução posterior sobre a situação de Gibraltar, território britânico ao sul da Península Ibérica.

Quanto ao sistema de solução de controvérsias da União Europeia, aplica-se a competência de um tribunal específico, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ-UE), órgão jurisdicional permanente a interpretar e aplicar as regras europeias.

Em específico, a supremacia e a primazia das normas europeias sobre as de direito interno dos seus Estados-membros possui fundamentação jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia. Quatro casos emblemáticos do TJ-UE trataram da questão. O "caso Van Gend & Loos/Administração Fiscal", julgado pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJ-CE) em 1962 (acórdão 5/2/1963), tornou-se um dos julgados mais importantes para a consolidação do Direito comunitário europeu ao longo de mais de 50 anos de existência. Sua relevância demonstra-se pelo estabelecimento, em 1963, do princípio do efeito direto das disposições dos tratados fundamentais e daqueles posteriormente pactuados e concede a eles a possibilidade de recorrer em juízo nacional o seu cumprimento ou a sua abstenção. No "caso Costa & Enel — acórdão 15/7/1964", revela-se o posicionamento do TJ-CE em reconhecer o primado da norma comunitária sobre a norma nacional, mesmo posterior, que se oponha ao Direito comunitário. É a garantia da eficácia única do Direito comunitário, que não poderia variar de um Estado-membro para outro, conforme as previsões legislativas nacionais vigentes e posteriores. O "caso Administração das Finanças do Estado/Simmenthal — acórdão 9/3/1978" estabeleceu que o juiz nacional é responsável, no âmbito das suas competências, pela aplicação das disposições de Direito comunitário, cabendo-lhe a obrigação de garantir o pleno efeito de tais normas e decidir pela não aplicação de qualquer norma de Direito interno que as contrarie, ainda que tal norma seja posterior, sem que tenha de requerer ou mesmo aguardar a prévia eliminação da referida norma pela via legislativa ou por quaisquer outros procedimentos constitucionais de derrogação normativa do Direito interno. Por fim, no "caso Internationale Handelsgesellschaft — acórdão 17/12/1970", o TJ-CE decidiu que não cabe a invocação de normas nacionais para verificar a validade do Direito comunitário, sob pena de prejuízo do próprio caráter comunitário e da natureza da comunidade europeia.

Observa-se, portanto, que a jurisprudência europeia define a supremacia das normas comunitárias sobre qualquer norma interna, inclusive das normas constitucionais dos seus Estados-membros. O reconhecimento de princípios pela via jurisprudencial do TJ-UE permitiu que o desenvolvimento da União Europeia se desse por via de uma consolidação casuística: Europeanisation through case-law.

As decisões no início da década de 1960 enfrentaram o momento inicial europeu de formação política e econômica, em que diversas perspectivas de integração estavam em debate, angariando espaço para que decisões jurisdicionais assumissem repercussões políticas sobre a atuação da comunidade europeia nos anos posteriores. Tal posicionamento é justificável pela competência do TJ-UE de único intérprete da norma comunitária, bem como a sua atuação de vanguarda em reconhecer princípios basilares para a integração europeia, antecedendo qualquer decisão de tribunais constitucionais dos Estados-membros em decidir sobre o alcance e o primado das normas comunitárias (ALMEIDA, 2014 [2]).

Todavia, essa realidade foi alterada pela saída do Reino Unido. O acordo comercial celebrado em dezembro de 2020 define que no território do governo britânico não se aplicam as disposições da legislação europeia e encerra-se a competência do Tribunal de Justiça da União Europeia. Em caso de disputas entre o país britânico e a comunidade europeia, aplicam-se, a partir de 2021, consultas e solução por tribunal arbitral ad hoc. Dessa forma, as soluções de conflitos serão realizadas exclusivamente pela via arbitral.

A solução arbitral é aplicada em diversos acordos comerciais e de investimentos por diferentes países. Como exemplo o United-States-Mexico-Canada Agreement (USMCA), assinado em 2018, que alterou em parte as disposições do North American Free Trade Agreement (Nafta, ou Acordo de Livre Comércio da América do Norte) [3] de 1994, e estabeleceu a criação de tribunais arbitrais ad hoc sobre controvérsias entre os países em disputa. Outro exemplo são os procedimentos arbitrais definidos por organizações, comissões e instituições internacionais a regular a lista e a escolha dos árbitros, regras procedimentais e a execução dos seus laudos, como ocorre com o Centro Internacional para Solução de Disputas sobre Investimentos (ICSID, International Centre for Settlement of Investment Disputes), a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral, The United Nations Commission on International Trade Law) e a Câmara de Comércio Internacional (ICC, International Chamber of Commerce).

No caso do Mercado Comum do Sul (Mercosul), qual seria o formato de solução de controvérsias adotado por seus países membros?

Com a criação da organização internacional em 1991, pelo Tratado de Assunção, decidiram-se pela criação de uma solução de controvérsias menos institucionalizada. A partir do Protocolo de Brasília de 1991 [4] (com alterações pelo Protocolo de Ouro Preto de 1994 [5]), estabeleceu-se que as controvérsias não solucionadas por negociações diretas ou pela intervenção do Grupo do Mercado Comum (GMC) — procedimentos estes voluntários — deveriam se submeter a um tribunal ad hoc composto por três árbitros. A decisão por uma estrutura pouco institucionalizada levou ao questionamento quanto a necessidade de revisão das decisões por uma instância superior. Outrossim, o Protocolo de Brasília não evitava a ocorrência do forum shopping, que se caracteriza pela escolha de uma jurisdição mais favorável ao demandante, na hipótese de existência de competências jurisdicionais concorrentes. Como exemplo, disputas entre os países membros do Mercosul poderiam ser apresentadas por tribunal ad hoc ou submetidas a um painel na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Apesar dos painéis da OMC se configurarem como tribunais ad hoc, criados exclusivamente para solucionar demandas apresentadas por seus integrantes no caso de violação de regras comerciais e afins adotadas pela OMC, a organização possui o órgão de apelação, que se constitui como um tribunal permanente a revisar os painéis.

Essa estrutura foi, portanto, adotada pelo Mercosul em 2002, com o Protocolo de Olivos [6] (modificações foram aprovadas no Protocolo Modificativo em 2007 [7]). O referido instrumento define as soluções voluntárias de solução de controvérsias, como negociações diretas e a intervenção do Grupo Mercado Comum (GMC). Além disso, mantém o formato de resolução por tribunal arbitral ad hoc composto por três árbitros. A novidade é a instituição de um Tribunal Permanente de Revisão (TPR), com sede em Assunção, Paraguai. Estabeleceu-se que qualquer das partes em controvérsia poderá apresentar um recurso de revisão do laudo do tribunal arbitral ad hoc ao TPR, ficando este limitado a analisar questões de Direito tratadas na controvérsia e às interpretações jurídicas desenvolvidas no laudo submetido ao tribunal. Outra possibilidade, caso as partes em litígio concordem, podem submeter a questão diretamente para análise do TPR. Por fim, o Protocolo de Olivos estabelece que o laudo do TPR será definitivo e prevalecerá sobre o laudo do tribunal arbitral ad hoc.

Dessa forma, observa-se que os países do Mercosul adotaram um modelo de solução de controvérsias semelhante ao da Organização Mundial de Comércio. O modelo da União Europeia, por meio do seu TJ-UE, é um formato positivo por se constituir em um único tribunal permanente a dizer sobre o Direito europeu, garantindo a harmonia das decisões e a criação de uma jurisprudência comunitária robusta.

A saída do Reino Unido da comunidade europeia e a adoção de um modelo de solução arbitral ad hoc permite certa flexibilidade. Contudo, as próximas controvérsias entre a comunidade europeia (ou um país membro) e o Reino Unido poderão gerar laudos arbitrais desconexos ou controversos, cujas decisões não se submeterão a uma instância superior para a devida revisão.

Ressalta-se que é recente a tomada de conclusões ou inferências se o modelo adotado seria o mais adequado para o Reino Unido. Todavia, somente com a observação da execução do acordo internacional é que será possível verificar o quão eficiente ou frágil se configura a estrutura adotada para a solução de controvérsias.

 

Referências bibliográficas
ALMEIDA, Thiago Ferreira. A natureza jurídica dos empréstimos por organizações internacionais de cooperação financeira: as licitações brasileiras realizadas com normas internacionais. Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG. Orientador: Roberto Luiz Silva. Dissertação (mestrado) — Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 19 de maio de 2014.

BRASIL. Decreto nº 922, de 10 de setembro de 1993. Promulga o Protocolo para a Solução de Controvérsias, firmado em Brasília em 17 de dezembro de 1991, no âmbito do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0922.htm. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

BRASIL. Decreto nº 1.901, de 9 de maio de 1996. Promulga o Protocolo Adicional ao Tratado de Assunção sobre a Estrutura Institucional do Mercosul (Protocolo de Ouro Preto), de 17 de dezembro de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0922.htm. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

BRASIL. Decreto nº 4.982, de 9 de fevereiro de 2004. Promulga o Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias no Mercosul. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0922.htm. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

BRASIL. Decreto nº 10.215, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto do Protocolo Modificativo do Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias no Mercosul, de 19 de janeiro de 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10215.htm. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

UNIÃO EUROPEIA. The EU-UK Trade and Cooperation Agreement. Comissão Europeia. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/relations-united-kingdom/eu-uk-trade-and-cooperation-agreement_en#freetradeagreement. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

UNITED STATES OF AMERICA. Agreement between the United States of America, the United Mexican States, and Canada 7/1/20 Text. Office of the United States Trade Representative. Disponível em: https://ustr.gov/trade-agreements/free-trade-agreements/united-states-mexico-canada-agreement/agreement-between. Acessado em 4 de janeiro de 2021.


[1] UNIÃO EUROPEIA. The EU-UK Trade and Cooperation Agreement. Comissão Europeia. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/relations-united-kingdom/eu-uk-trade-and-cooperation-agreement_en#freetradeagreement. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

[2] ALMEIDA, Thiago Ferreira. A natureza jurídica dos empréstimos por organizações internacionais de cooperação financeira: as licitações brasileiras realizadas com normas internacionais. Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG. Orientador: Roberto Luiz Silva. Dissertação (mestrado) — Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 19 de maio de 2014.

[3] UNITED STATES OF AMERICA. Agreement between the United States of America, the United Mexican States, and Canada 7/1/20 Text. Office of the United States Trade Representative. Disponível em: https://ustr.gov/trade-agreements/free-trade-agreements/united-states-mexico-canada-agreement/agreement-between. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

[4] BRASIL. Decreto nº 922, de 10 de setembro de 1993. Promulga o Protocolo para a Solução de Controvérsias, firmado em Brasília em 17 de dezembro de 1991, no âmbito do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0922.htm. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

[5] BRASIL. Decreto nº 1.901, de 9 de maio de 1996. Promulga o Protocolo Adicional ao Tratado de Assunção sobre a Estrutura Institucional do Mercosul (Protocolo de Ouro Preto), de 17 de dezembro de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d1901.htm. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

[6] BRASIL. Decreto nº 4.982, de 9 de fevereiro de 2004. Promulga o Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias no Mercosul. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/D4982.htm. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

[7] BRASIL. Decreto nº 10.215, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto do Protocolo Modificativo do Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias no Mercosul, de 19 de janeiro de 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10215.htm. Acessado em 4 de janeiro de 2021.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Internacional do Investimento e em Parcerias Público-Privadas, professor de MBA de Infraestrutura, Concessões e Parcerias Público-Privadas na PUC Minas, assessor de investimentos internacionais da Vice-Governadoria do Estado de Minas Gerais, doutorando e mestre em Direito Internacional pela UFMG.

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