Tribuna da Defensoria

Defensoria deve valorizar Direito Tributário e Direito Financeiro

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5 de janeiro de 2021, 8h02

Concursos públicos e cursos de formação se voltam para disciplinas cujo conhecimento seja considerado importante para o desempenho da função. Esse catálogo de informações e competências exigidas dos mais diversos agentes públicos tem natureza dinâmica e acompanha as transformações ocorridas na realidade concreta, no Direito e em cada uma das instituições.

Foi assim, aliás, que o Direito Ambiental se tornou matéria recorrente no processo seletivo para diversas carreiras jurídicas, expressando uma maior preocupação com a preservação dos recursos naturais e com o meio ambiente em geral. Do mesmo modo, a Filosofia e a Sociologia foram incorporadas ao rol de conhecimentos mínimos exigidos ao profissional do Direito, com a pretensão de avaliar a capacidade argumentativa e reflexiva dos candidatos.

Nesse contexto, é pertinente questionar por que a Defensoria Pública, em diversos Estados-membros, não exige conhecimentos de Direito Tributário e de Direito Financeiro em seus concursos. E, para além disso, por que essas disciplinas são constantemente preteridas nos cursos de aperfeiçoamento.

Uma primeira justificativa para problematizar o desprestígio dessas disciplinas diz respeito à atuação da instituição na tutela individual. Como se sabe, defensores públicos são constantemente instados a lidar com direito tributário e com o direito financeiro, especialmente na defesa de hipossuficientes em execuções fiscais e em ações de improbidade administrativa.

Muitas vezes, a proteção de direitos fundamentais da população vulnerável depende da adequada atuação nesses processos. Lembre-se, por exemplo, que a cobrança de impostos, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar constitui exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família (artigo 3º, IV, da Lei Federal nº 8.009/90) e, portanto, uma defesa consistente poderá assegurar a efetividade do direito à moradia [1]. Em certas hipóteses, segundo o Superior Tribunal de Justiça, a mesma consequência pode advir de processos de improbidade administrativa [2].

Uma segunda justificativa diz respeito ao aspecto gerencial da instituição. Por força da Emenda Constitucional nº 45/2004, a Defensoria Pública goza de autonomia orçamentária e administrativa (artigo 134, §2º, da Constituição da República), cabendo-lhe o planejamento e a realização dos recursos disponíveis, sem qualquer subordinação ou intervenção dos órgãos do Poder Executivo.

Se, por um lado, a previsão constitucional permite o desenvolvimento da instituição livre de quaisquer ingerências externas, por outro lado a Defensoria Pública está diretamente submetida ao controle do Tribunal de Contas, com todas as responsabilidades daí decorrentes [3]. Significa dizer que o defensor público, enquanto potencial administrador de recursos, precisa conhecer a atividade orçamentária e financeira do Estado, seja para exercício de funções na administração superior, seja como gestor de unidades administrativas internas como no caso de coordenação de sedes.

Há de se reconhecer que, em cada um dos exemplos anteriores, o domínio de conhecimentos vinculados ao Direito Tributário e ao Direito Financeiro se restringe a áreas muito específicas da atuação do defensor público. Entretanto, existe uma terceira justificativa que opera em sentido transversal, oferecendo razões mais amplas à valorização dessas áreas do saber jurídico.

Como se sabe, é bastante difundida a ideia de que a Defensoria Pública seria responsável, primordialmente, pela tutela de direitos individuais, enquanto o Ministério Público seria responsável, primordialmente, pela tutela de direitos coletivos. Essa percepção durante bastante tempo se refletiu na legislação e na estrutura interna dessas instituições.

Entretanto, as duas últimas décadas revelam progressiva valorização das funções da Defensoria Pública, com especial destaque para promoção de direitos humanos e para a tutela coletiva. Esse movimento foi acompanhado por importantes alterações normativas e também pela remodelagem da arquitetura institucional.

Nessa linha, embora a jurisprudência já reconhecesse a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de demandas coletivas [4], a Lei nº 11.448/2007 inseriu expressamente a instituição no rol do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública. Pouco depois, também a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública foi alterada para adequar a redação dos incisos VI, VII e VIII do artigo 4º, reforçando a proteção de Direitos Humanos e a tutela coletiva como elementos fundamentais de sua missão institucional. Finalmente, a Emenda Constitucional nº 80/2014 consolidou essa transformação de perfil ao atualizar o texto do artigo 134, que agora exibe o seguinte:

"A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do artigo 5º desta Constituição Federal" (grifos do autor).

Concomitantemente a esse processo de reformas normativas, proliferaram-se pelos Estados-membros núcleos especializados de tutela coletiva. E, nesse contexto, parcela importante dos órgãos criados se relaciona diretamente com a execução de políticas públicas.

Eis aqui o ponto central. A promoção de direitos humanos e a propositura de ações coletivas por parte da Defensoria Pública comumente envolverão controle de políticas públicas. Pense-se na discussão sobre vagas em creche, sobre a necessidade de melhoria das instalações físicas de estabelecimentos penais, sobre os investimentos mínimos em saúde e educação, sobre a política pública de acesso à moradia adequada. Em todos esses casos, relativos a áreas de atuação bastante distintas, o que se tem é o acompanhamento das ações do poder público no nível pluri-individual.

Evidentemente, não há como desempenhar essa função, de forma qualificada, sem compreender os meandros da atividade orçamentária e financeira do Estado. Afinal, a execução de políticas públicas demanda recursos, planejamento e tempo, tratando-se de atividade complexa, cujos desafios e dificuldades não podem ser ignorados.

Isso não significa que o defensor público deve assumir postura condescendente com as inúmeras omissões estatais. Mas a intransigência na defesa de direitos, sobretudo quando discutidos no nível da política pública, deve estar aliada ao conhecimento mais abrangente de todos os aspectos envolvidos para que o resultado pretendido na tutela coletiva seja obtido de maneira consistente. Dito de outra forma, quanto melhor o defensor público conhecer o funcionamento da máquina pública, suas fontes de financiamento (efetivas e potenciais) e os procedimentos necessários à realização da despesa, melhores serão suas condições para postular medidas concretamente viáveis, inclusive judicialmente.

Exemplo bastante significativo diz respeito à discussão sobre a implementação do auxílio emergencial. Inicialmente, o Ministério da Economia afirmou que não seria possível a aprovação da renda mensal por ausência de recursos, defendendo a necessidade de aprovação de uma emenda constitucional a chamada PEC do Orçamento de Guerra. Contudo, prontamente especialistas em Direito Financeiro, como Vinícius Amaral, apontaram a possibilidade de utilização imediata de recursos ordinários provenientes do superávit de exercícios financeiros anteriores [5]. Note-se que, no caso mencionado, o auxílio foi implementado independentemente da emenda constitucional, em benefício da população vulnerável.

Ou seja, apesar de respeitar as decisões políticas de alocação de recursos, fiscalizar a efetiva e adequada execução orçamentária, participar de conselhos temáticos e discutir junto ao Legislativo e ao Executivo soluções viáveis para o financiamento das políticas públicas são posturas inerentes ao novo perfil constitucional da Defensoria Pública. Nessa mesma linha, aliás, foram as considerações do colega Fernando Antunes Soubhia:

"Com efeito, o papel da Defensoria Pública na tutela dos direitos dos vulneráveis transcende as margens dos autos processuais e da própria noção de litígio. Para buscar uma ordem jurídica justa, além de educar a população sobre seus direitos, é necessário participar dos debates legislativos e da formulação de políticas públicas (…)" [6].

Urge, então, inserir o Direito Tributário e o Direito Financeiro no cotidiano da instituição, a começar pela cobrança dessas disciplinas nos concursos públicos e pela oferta de cursos de formação e aperfeiçoamento nessas áreas, como foco voltado à efetivação de políticas públicas e mediante exploração de cortes transversais, que permitam o diálogo com outras áreas do Direito. Como afirmou Élida Graziane:

"Em meio ao debate sobre o teto dado pela Emenda 95/2016, nenhuma agenda é mais nuclear para o alcance da pretensão constitucional de máxima eficácia dos direitos fundamentais do que o desafio de como custear adequada e suficientemente tais direitos por dentro do ciclo orçamentário" [7].

É a tarefa do nosso tempo. E, em respeito à Constituição de 1988, dela devemos nos desincumbir.

 


[1] Por exemplo: DPPR conquista anistia do pagamento do IPTU a famílias de Ponta Grossa. Disponível em: http://www.defensoriapublica.pr.def.br/2017/10/765/DPPR-conquista-anistia-do-pagamento-do-IPTU-a-familias-de-Ponta-Grossa.html. Acesso em: 22 dez 2020.

[3] Reflexões a respeito da extensão do controle exercido pelo Tribunal de Contas em relação à Defensoria Pública podem ser encontradas nas sempre oportunas lições dos colegas Franklyn Roger Alves Silva e Diogo Esteves: Autonomia administrativa da Defensoria Pública e controle pelo Tribunal de Contas, ConJur, [S.I], 16 de junho de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-16/tribuna-defensoria-autonomia-defensoria-publica-controle-tribunal-contas. Acesso em: 22 dez 2020.

[4] Nessa linha: REsp 555.111/RJ, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/09/2006, DJ 18/12/2006, p. 363

[5] Vinícius Amaral, como se sabe, é consultor legislativo no Senado Federal. O debate foi amplamente noticiado na imprensa, como em: Consultor do Senado diz que governo está atrasando liberação de auxílio deliberadamente, DCM, [S.I], 31 março, 2020. Disponível em https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/consultor-do-senado-diz-que-governo-esta-atrasando-liberacao-de-auxilio-deliberadamente/. Acesso em 22 dez. 2020.

[6] SOUBHIA, Fernando Antunes. Câmeras corporais e a participação da Defensoria na formulação de políticas públicas. ConJur, [S.I], 13 de outubro de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-13/tribuna-defensoria-participacao-defensoria-formulacao-politicas-publicas. Acesso em 22 dez. 2020.

[7] PINTO, Élida Graziane. ADI 5595 define financiamento dos direitos fundamentais nos 32 anos da CF. ConJur, [S.I], 5 de outubro de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-05/elida-pinto-financiamento-direitos-fundamentais-32-anos-cf. Acesso em 22 dez. 2020.

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