Opinião

Sobre a cannabis medicinal no Brasil

Autor

  • Renata Santos

    é advogada sócia da F. Teixeira Sociedade de Advogados trabalhou para o governo do Estado de São Paulo por 23 anos (até abril de 2019) os últimos 16 anos como Assessora Técnica de Gabinete da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo; comandou a área de judicialização da pasta da saúde com significativa redução de custos e novas demandas.

5 de janeiro de 2021, 21h32

7 de junho de 2019. A Folha de São Paulo publica matéria sobre a presidência da Anvisa estar pronta para avalizar o cultivo de maconha para remédios e pesquisas.

7 de dezembro de 2020. A Anvisa nega pedido da Unicamp para pesquisa com cultivo de cannabis.

Duas notícias revelam mais uma das inúmeras incongruências do Brasil. Essa, em especial, afugenta investidores, prejudica a vida de pacientes que têm prescrições médicas de uso de canabinóides e impede o desenvolvimento de uma indústria que vem crescendo mundo afora. Canadá, Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, Equador, México, 35 dos 50 Estados dos Estados Unidos e 21 países dos 28 membros da União Europeia — cada um com suas regras próprias — têm autorizações governamentais para o desenvolvimento e pesquisa de medicamentos à base de cannabis.

O mercado de cannabis tem se demonstrado bastante lucrativo, que vai desde o uso recreativo até o medicinal, passando pela utilização das folhas, raízes e sementes da planta.

Trataremos aqui apenas de seu uso medicinal, voltado para os produtos que contêm CDB.

No ano de 2014 teve início a judicialização de canabidiol (medicamento derivado da cannabis) frente ao SUS, especial, mas não exclusivamente, os autores das ações eram familiares de crianças com síndrome de Dravet, uma doença que causa graves e insistentes episódios de convulsão.

Foi o começo de uma longa jornada que, em apertada síntese, evoluiu para a retirada do canabidiol, pela Anvisa, em 2015, da lista de substâncias proibidas, passando-o para a uma lista de substâncias sujeitas a controle especial (com prescrição médica por meio de receita em duas vias).

Em 9/12/2019 houve novo avanço, a publicação da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC n° 327/2019), tratou dos procedimentos para concessão da autorização sanitária para a fabricação e importação, bem como dos requisitos para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de cannabis para fins medicinais.

Sem sombra de dúvidas, a RDC 327/2019 constitui grande inovação para que o Brasil possa adentrar no mercado do uso medicinal da cannabis nos tratamentos de saúde. No entanto, como em todo início, ela traz questões que comprometem o aproveitamento integral desta possibilidade legal.

O cultivo da planta é proibido. Dessa forma, qualquer empresa interessada em fabricar produtos à base da cannabis dependerá de matéria prima importada, que somente será autorizada pela Anvisa após o cumprimento de todos os requisitos da RDC 327/2019, dos quais decorre a denominada autorização sanitária, com prazo de validade de cinco anos.

É importante saber que a autorização sanitária não pode ser renovada, durante os cinco anos de sua validade a empresa que pretende fabricar, importar e/ou comercializar o produto sobre o qual recai a autorização sanitária deve solicitar sua regularização pela via de registro de medicamentos ou insumos.

No corpo da RDC 327/2019, há expressa menção da necessidade de utilização da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC nº 26), de 13 de maio de 2014, e da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC n° 24), de 14 de junho de 2010.

Quando a RDC 327/2019 trata de rótulo, embalagem e folheto informativo dos produtos à base de cannabis, é certo que estes não podem conter, entre outros, os termos: medicamento, remédio, fitoterápico, suplemento natural, ou qualquer outro que tenha semelhança entre esses. De outra sorte, a embalagem do produto deve conter a informação se este é constituído pelo derivado vegetal, ou fitofármacos derivados da cannabis. Para além disso, o folheto informativo do produto determina a inscrição das seguintes advertências, entre outras: venda sob prescrição médica e só pode ser vendido com retenção de receita.

Os produtos que possuem THC devem conter em seus rótulos uma faixa horizontal preta, contendo inscrições sobre a venda sob prescrição médica com retenção de receita e, nos casos de a concentração de THC ser acima de 0,2%, deve ainda constar que o uso do produto pode causar dependência física ou psíquica.

Diante de todas essas informações que a RDC 327/2019 nos dá, fica a dúvida: em que categoria se enquadrarão os produtos à base de CDB? Medicamento fitofármaco ou medicamento fitoterápico?

Em uma leitura simplista da RDC 327, fica subentendido que os produtos serão considerados fitofármacos, afinal esse termo pode constar das embalagens dos produtos, sendo proibida a denominação de fitoterápico.

Ocorre que, segundo a RDC 26/2014 que regula os medicamentos fitoterápicos, a sua definição consiste naqueles obtidos com o emprego exclusivo de matérias-primas ativas vegetais cuja segurança e eficácia sejam baseadas em evidências clínicas e que sejam caracterizados pela constância de sua qualidade. Já os denominados produtos tradicionais fitoterápicos — aqueles obtidos com emprego exclusivo de matérias-primas ativas vegetais, cuja segurança e efetividade sejam baseadas em dados de uso seguro e efetivo publicados na literatura técnico-científica e que sejam concebidos para serem utilizados sem a vigilância de um médico para fins de diagnóstico, de prescrição ou monitorização — não podem, por definição da própria RDC 26/2014, conter cannabis.

Os fitofármacos encontram definição na RDC 24/2010, que regula o registro dos medicamentos específicos, sendo descritos como substância purificada e isolada a partir de matéria-prima vegetal com estrutura química definida e atividade farmacológica. É utilizada como ativo em medicamentos com propriedade profilática, paliativa ou curativa. Não são considerados fitofármacos compostos isolados que sofram qualquer etapa de semissíntese ou modificação de sua estrutura química.

Percebe-se, portanto, que os medicamentos e produtos derivados da canabbis deveriam ser incluídos nas categorias de fitofármaco ou fitoterápicos a depender da sua forma de fabricação.

No entanto, na contramão de facilitar o registro e a dispensação desses medicamentos, a Anvisa adota a nomenclatura de "produtos à base de cannabis" que vem tornando árdua a vida de quem atua nessa área.

Há se se considerar também que a maior parte dos fitofármacos e fitoterápicos independe de retenção de receita médica na sua comercialização e têm normas mais flexíveis de exposição nas drogarias e publicidade, isso graças à baixa contraindicação, efeitos colaterais e segurança destes medicamentos. Mesmo assim, o Brasil, iniciando seus passos no mundo dos canabinóides, determina seu uso por meio de controle.

Uma das soluções, se a Anvisa assim permitir, é o investimento em pesquisas clínicas — que vêm acontecendo de forma ainda tímida no país — para dar aos canabinóides o que eles efetivamente merecem: comprovação de seus benefícios e, especialmente, fim do preconceito.

Autores

  • Brave

    é advogada, trabalhou para o governo do estado de São Paulo por 23 anos (até abril de 2019), os últimos 16 anos como Assessora Técnica de Gabinete da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo; comandou a área de judicialização da pasta da saúde com significativa redução de custos e novas demandas.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!