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Afinal, a Argentina pode ser aqui?

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5 de janeiro de 2021, 13h36

A maioria dos países se declara laica (cerca de 96), mas a declaração não corresponde a uma democracia religiosa aperfeiçoada. É indiscutível a forte influência que dogmas religiosos refletem nas sociedades modernas, já que mesmo com a separação entre Igreja e Estado os dogmas seguem pautando comportamentos, ideologias, crenças, vidas e mortes.

A partir de interpretações e reinterpretações dadas pelo grupo social ou religioso de determinada época — muitas reforçadas no momento atual —, o homem acabou sendo desenhado como o ente central, à imagem e semelhança de seu criador, tendo como consequência a posição de subalternização da mulher.

A figura casta e santa da virgem Maria, mãe dedicada, sofrida e abnegada, também foi estendida à mulher, levando ao linchamento moral, social e físico de mulheres independentes, que passaram a entender o seu papel de protagonismo no mundo para além da função de ser mãe. Tidas por Evas, pecadoras originais e bruxas, passaram a estar sujeitas a toda sorte de violências, exclusivamente pelo fato de serem mulheres.

A obrigatoriedade da manutenção de casamentos, por vezes infelizes e sem amor, repletos de mentiras e violências (física, sexual, psicológica, moral, patrimonial), sob pena de ferir as "leis divinas", é também uma das consequências dos dogmas religiosos, mesmo em Estados laicos. 

Não nos esqueçamos também da divisão entre os escolhidos e desalmados, que legitimou processos de escravização por séculos e ainda legitima processos de xenofobia.

Um universo de opressões que vai desde o antropocentrismo, à tortura e mortes, todos pautados por dogmas religiosos, que não são o problema em si, mas, sim, a interpretação dada a eles, que desde os tempos mais remotos têm se mostrado firme na manutenção de privilégios de grupos específicos.

O artigo, porém, não pretende se debruçar sobre as complexidades trazidas pela religião, mas na recente decisão do Senado da Argentina que reconheceu o direito da mulher à interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação. A dogmática religiosa nos servirá apenas de base para responder à indagação inicial indicada no título.

Até 2009, o Brasil tratava os crimes sexuais como sendo crimes contra os costumes. À vítima do crime sexual não era conferido o direito à própria dignidade e liberdade sexual. O bem jurídico atingido era o costume.

Embora tenhamos avançado em termos de legislação, a partir de 2014 o país mergulhou numa onda ultraconservadora e as conquistas relacionadas aos direitos humanos das mulheres — em que pese a proibição de retrocesso — passaram a ser minimizadas, não com alterações legislativas — ainda —, mas com práticas cotidianas de repressão e ainda mais violência.

Projetos visando à extinção de direitos ou de atendimento às pessoas vítimas de violência sexual, inclusive para proibir o aborto legal nesses casos, são estimulados pelas bancadas conservadoras e não poderia ser diferente, já que o Congresso Brasileiro é formado majoritariamente por homens (505 x 89 mulheres), brancos, heterossexuais, de classe média. As bancadas religiosas — católicas e evangélicas — são compostas por mais de 311 parlamentares. O Executivo é chefiado por um homem que se revela extremamente preconceituoso e conservador — apenas nos costumes — e que já declarou que, a depender dele, o aborto nunca será legalizado no Brasil.

O STF até conseguiu estender a interpretação do aborto legal para os casos de fetos anencéfalos, mas neste momento de retrocessos na área dos direitos humanos tem pouquíssima ou nenhuma chance de alterar o entendimento legal no sentido de pró-legalização, ainda porque não é o poder competente para tanto, e, sim, o Congresso Nacional.

As hipóteses de aborto legal no Brasil são restritas: nos casos em que haja perigo de vida à gestante, nos casos decorrentes de estupro, com o consentimento da gestante ou seu representante legal, quando de incapacidade, ou nos casos de fetos anencéfalos, e ainda nesses casos a resistência conservadora é muito forte.

Vale lembrar o caso da criança de dez anos estuprada pelo tio e que engravidou. A menina foi seriamente assediada por grupos religiosos e até por integrantes do governo para prosseguir com a gravidez. Ressalte-se, trata-se de uma criança de dez anos!

Esse é o nosso cenário atual e nos faz crer que a resposta à indagação inicial seja não, a Argentina não pode ser aqui.

Não pode porque eles conseguiram ultrapassar as barreiras impostas pelas interpretações equivocadas dos dogmas religiosos mencionados no início do texto, ao passo que nós nos utilizamos deles para obrigar mulheres a terem filhos, mesmo sem condições, sem vontade ou por qualquer razão que seja para não os ter, sob pena de prática de crime, em detrimento do direito que conferimos aos pais ausentes. Mais de seis milhões de crianças não têm o nome do pai em seus registros.

Isso quer dizer que, além da condição de centralidade do universo que demos ao homem, também conferimos a ele o direito ao "aborto" de crianças já nascidas. Mais de 12 milhões de mulheres criam os filhos sozinhas, sem qualquer participação afetiva ou financeira paterna e isso é jurídica e socialmente aceito. Na nossa hipocrisia só não aceitamos reconhecer o direito à humanidade de mulheres que desejam interromper a gravidez de fetos, mas o de homens abandonar crianças, sim.

Não, a Argentina não pode ser aqui. As conquistas da nossa vizinha estão muito distantes de chegar à "nossa pátria, mãe gentil", ou corrigindo, pai gentil, já que no Brasil patriarcal a mãe só é gentil se for à imagem e semelhança da Virgem Maria.

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