Paradoxo da Corte

A linguagem jurídica exige precisão técnica: processo ou procedimento arbitral?

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

5 de janeiro de 2021, 8h01

Toda ciência, como representação do pensamento empírico do homem, deve se expressar por meio de um vocabulário próprio e universal, dando sentido ao significado de seus conceitos e institutos.

Entre os inúmeros ramos da ciência jurídica, a dogmática do Direito processual, construída paulatinamente a partir da segunda metade do século 19, possui estrutura formal e linguagem técnica análogas nas mais diferentes experiências jurídicas do mundo ocidental.

Todavia, observa-se que no âmbito da arbitragem ainda hoje há certa imprecisão conceitual, dado o reiterado emprego impreciso e equivocado de alguns termos, que não condizem com o ideário de conceber tal importante meio alternativo de solução dos conflitos como ramo científico autônomo.

E isso porque quando nada, desatendida, de modo persistente, por considerável número de arbitralistas, a contundente exortação, formulada há quase uma década por Cândido Rangel Dinamarco, no sentido de que "toda teoria geral só será uma ciência merecedora de ser havida como tal na medida em que seja capaz de refletir com harmonia e perfeita integração todos os elementos das ciências mais particularizadas que a integram. Assim como o direito processual arbitral jamais chegará a um nível satisfatório de excelência científica quando visto sem os aportes da teoria geral do processo, assim também essa teoria geral jamais será metodologicamente legítima enquanto se preocupar somente com os fenômenos inerentes à jurisdição estatal, sem considerar a jurisdição dos árbitros". Daí a importância de dar "valor à busca de uma linguagem adequada", compatível com a inserção da arbitragem no âmbito de uma ciência propriamente dita, dotada de conceitos, estrutura e finalidade bem definidos. É nesse sentido "que devemos aspirar, empenhando-nos em enriquecer a linguagem do sistema arbitral com a assimilação de dizeres e conceitos correntes nas seara do processo civil comum, para então afinarmos nossa linguagem com a maior harmonia possível" (Dinamarco, "A arbitragem na teoria geral do processo", São Paulo, Malheiros, 2013, pág. 13-14 e 19), aliás, como a própria lei da arbitragem se refere, com rigor técnico, a inúmeros institutos da dogmática processual, como, e. g., causa de pedir, pedido, incompetência, impedimento, suspeição, revelia, depoimento pessoal, prova pericial, livre convencimento, sentença, litigância de má-fé…

Não obstante, dúvida não há de que a arbitragem é regida por textos legais específicos: lei da arbitragem e, subsidiariamente, regulamento das câmaras de arbitragem, não sendo aplicáveis, excetuando-se algumas específicas situações, as regras do Código de Processo Civil.

O capítulo IV da Lei nº 9.307/96 (Lei da Arbitragem), sob a rubrica "Do Procedimento Arbitral", estabelece, de forma absolutamente adequada, regras de regência do respectivo procedimento. Pergunta-se: procedimento do quê? Sem qualquer outra opção, a resposta é uma só: do processo arbitral!

O artigo 21 desse referido capítulo contém seis vezes o vocábulo procedimento, sendo que, no respectivo §3º, o legislador equivocou-se ao utilizar "procedimento" ao invés de empregar o termo "processo", que seria o correto.

O regulamento de arbitragem do CAM-CCBC, nos itens 5.2, letra "i", 7.4 e 12.11, alude corretamente a "despesas do processo", "estado do processo" e "extinção do processo". Nos itens 7.6, 11.3, 11.4 e 14.2, contudo, ao se referir a aspectos do objeto e aos autos do processo arbitral, utiliza mal a locução "procedimento arbitral". Estes e muitos outros erros plasmam também o regulamento do Centro de Arbitragem da AMCHAM.

Seja como for, na minha experiência como árbitro, observo que, possivelmente pelo supra-aludido título do capítulo IV da Lei da Arbitragem ("Do Procedimento Arbitral"), não apenas o regulamento da maioria das câmaras de arbitragem, mas também árbitros especialistas, empregam, de modo errôneo e impreciso, a expressão "procedimento arbitral" no lugar de "processo arbitral". Esse equívoco, na verdade, é comezinho!

Lembro-me, a propósito, das magníficas aulas do saudoso professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, que realçava o inseparável liame entre as pessoas que agem em juízo e seus respectivos atos protraindo-se conjugados, em sistema de movimento e mudança, e acrescentava que esta visão leva a compreender o fluxo, ou processo, como série numerável de atos coordenados verdadeiro método , que se vão justapondo, num espaço ideal, ou procedimento.

Traçando a evidente distinção conceitual entre processo (continente) e procedimento (conteúdo), é clássica a lição de João Mendes de Almeida Júnior, ao ensinar que "o processo é uma direção no movimento; o procedimento é o modo de mover e a forma em que é movido o ato. Omnis operatur motus dicitur…". Enquanto aquele corresponde ao movimento no seu aspecto intrínseco, este é o mesmo movimento, visualizado, todavia, em sua forma extrínseca, "tal como se exerce pelos nossos órgãos corporais e se revela aos nossos sentidos" ("Direito judiciário brasileiro", 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1960, pág. 243-244).

E essa distinção, como se sabe, "além de ter dado o passo decisivo para a autonomia do direito processual, ao isolar a relação material da processual, implicou igualmente postura metodológica renovadora, abrindo caminho para passar-se a entrever o fenômeno processual não mais como mero procedimentalismo, mas sim dentro da perspectiva da atividade, poderes e faculdades do julgador e das partes. A sedimentação dessas ideias obrou com que hoje se encontre pacificado o entendimento de que o procedimento não deve ser apenas um pobre esqueleto sem alma, tornando-se imprescindível ao conceito a regulação da atividade das partes e do órgão julgador, conexa ao contraditório paritário e ainda ao fator temporal, a fatalmente entremear essa mesma atividade" (Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, "Do formalismo no processo civil", 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, pág. 36; Salvatore Satta, Dalla procedura civile al diritto processuale civile, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, Giurffrè, 1964, pág. 31 e ss).

O processo direção no movimento consubstancia-se, pois, um instituto essencialmente dinâmico, porquanto não exaure o seu ciclo vital em um único momento, mas é destinado a desenvolver-se no tempo, até a prolação da sentença. Os atos processuais, embora tenham uma determinada ocasião para serem realizados, não se perfazem de modo instantâneo, mas, sim, desenrolam-se em várias etapas do respetivo procedimento.

Sob outra perspectiva, permito-me invocar a conhecida doutrina de Elio Fazzalari ("Procedimento e processo (teoria generale)"), Enciclopedia del diritto, vol. 35, Milano, Giuffrè, 1969, pág. 827), para quem todo procedimento, qualquer que seja a sua natureza administrativa, judicial ou arbitral , quando caracterizado pelo contraditório, transforma-se em processo.

É de ter-se presente, destarte, que as atividades do árbitro e das partes nos domínios do processo arbitral efetivam-se e se concatenam em um procedimento, no qual cada um desses atores dispõe de poderes, deveres, faculdades e ônus, todos exercidos em cooperação e em contraditório, numa autêntica relação jurídica processual.

Conclui-se, assim, que o processo arbitral se desenvolve por meio de um procedimento lógico e dinâmico, regido pelos princípios constitucionais da imparcialidade, do contraditório e da isonomia, e por normas procedimentais próprias, estabelecidas pela lei e pela vontade das partes.

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