Opinião

Ulisses, Jon Elster e a tentação (in)constitucional

Autor

  • Tiago Bitencourt De David

    é juiz federal substituto da 3ª Região mestre em Direito (PUC-RS) especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (Escola Verbo Jurídico) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM Toledo/Espanha).

5 de janeiro de 2021, 9h12

Conta-nos Homero [1] que Odisseu foi advertido por Circe de que no caminho de volta para Ítaca encontraria sereias, cujo suave canto ao mesmo tempo em que fascina acaba por conduzir seus ouvintes rapidamente à morte, como denunciam as pilhas de ossos que as cercam no prado onde repousam. Em face de tal advertência, pediu aos companheiros de jornada que o amarrassem firmemente ao mastro da nau e que quando lhes fosse por ele pedido que o soltasse, então, que apertassem ainda mais as cordas que lhe prendiam.

Essa passagem célebre ilustra a fragilidade da vontade humana diante das tentações que nos cercam e da necessidade de comprometimento prévio do ser humano de hoje com sua ação futura. Diante do medo, da angústia ou da lascívia, a racionalidade assume um caráter imediatista, o que justifica a prévia determinação do que se deve ou não fazer diante da tentação.

Do excerto da narrativa homérica, Jon Elster [2], na sua obra "Ulisses e as sereias", apontou a possibilidade de ver-se no estabelecimento de uma Constituição uma espécie de compromisso prévio da sociedade contra as tentações ocasionais do exercício cotidiano da política.

Todavia, décadas depois, em "Ulisses liberto" [3], Jon Elster desenvolve mais a análise sobre o assunto e volta atrás na maior parte do quanto afirmado antes.

Entre os motivos que levaram Elster [4] a mudar seu entendimento sobre a questão está a de que um indivíduo pode tomar uma decisão por meio da qual vincula sua conduta futura e agentes externos a ele controlarão o curso dos acontecimentos para que o compromisso prévio seja cumprido, ao passo que a sociedade nada tem externo à mesma, não lhe sendo possível o constrangimento ao cumprimento.

Porém, o argumento é apenas parcialmente procedente, merecendo acolhimento mais pelo seu resultado do que pela sua fundamentação em si.

Isso porque a possibilidade efetiva de exigir-se o cumprimento não pode servir para distinguir o comprometimento individual do coletivo, pois bastaria que a própria coletividade criasse um mecanismo terrível de autodestruição (por exemplo, acionamento de uma bomba atômica contra si própria) para que se fizesse valer a prévia deliberação.

Por outro lado, e aí parece assistir razão a Jon Elster, a decisão prévia de Ulisses tinha o fim de protegê-lo dele próprio contra a sua vacilação, sendo que as consequências funestas da mudança de entendimento seriam por ele sofridas e, no máximo, pelos demais nautas. Quando é estabelecida uma Constituição, o resultado é formado pela vontade de uma maioria que imporá o resultado não apenas àquela minoria presente, mas às maiorias futuras que, por isso, possuem legitimidade moral de exercer o poder constituinte originário novamente, assentando um novo pacto constitucional. Assim, modificados os fatores reais de poder, formando-se um novo consenso sobre os fundamentos da vida em sociedade, é absolutamente natural que outra Constituição advenha. Assim, a Constituição estabelece e firma as bases jurídicas ante maiorias ocasionais, mas não contra um novo consenso que a infirme e substitua.

Um outro aspecto interessante abordado por Jon Elster a respeito da estabilidade das Constituições e com o qual se concorda plenamente é o que de "a Constituição deveria ser uma estrutura de ação política, não um instrumento para a ação"[5], ou seja, à lei maior cabe traçar as balizas dentro das quais a política ordinária deve ocorrer, sem servir para determinar especificamente uma determinada linha de ação política. Afinal, quanto mais concreto for o programa constitucional, maior a chance de sua obsolescência e descumprimento.

Nesse sentido, coerentemente, Elster [6] reputa arbitrário que uma geração imponha a outra a disciplina de temas sensíveis como aborto, porte de arma etc. A disciplina de tais assuntos acaba por precipitar uma crise constitucional que, cedo ou tarde, resultará em sua bancarrota. Quanto maior o número de decisões políticas a respeito de temas sensíveis e quanto menores os meios de que isso seja deliberado por quem não participou do processo constituinte, mais perto se estará de um momento de ruptura constitucional.

Se por um lado a criação de cláusulas pétreas assenta direitos, por outro lado a insatisfação da sociedade quanto a uma ou mais delas faz com que se esteja cada vez mais próximo de uma derrocada não apenas daquela previsão normativa, mas da Constituição como um todo. Por isso, não surpreende, ainda que não se concorde, com a tese da dupla revisão consistente na defesa de que seria possível alterar a vedação de emenda constitucional sobre determinado assunto para, depois, emendar-se novamente o texto constitucional para realizar-se a alteração almejada.

Por fim, um último aspecto do problema bem apontado por Elster [7] consiste na indesejabilidade de que a Constituição, ao tentar evitar um suicídio político, transformar-se em um pacto suicida [8]. Isso porque a rigidez da Constituição, ao evitar que maiorias ocasionais alterem o pacto social em seus fundamentos, pode implicar na impossibilidade de adaptar a resposta normativa a situações inesperadas e acabar por aprofundar as crises. Como coloca o filósofo político, existe uma relação inversamente proporcional entre evitar o imediatismo e ser flexível o suficiente para lidar com situações imprevistas e graves.

Aliás, essa mesma preocupação foi manifestada por Konrad Hesse [9] ao apontar que, devido ao trauma decorrente do artigo 48 da Constituição de Weimar, a Lei Fundamental de Bonn não havia previsto "qualquer cláusula especial para o estado de necessidade". Conforme o jurista alemão [10]:


 

"(…) Trata-se de um terrível engano imaginar que, por não ser esperada, uma ameaça não se deverá concretizar. Caso se verifique essa situação, faltará uma disciplina normativa, ficando a solução do problema entregue ao poder dos fatos".

 

O sistema jurídico deve prever válvulas de escape para situações de crise, sob pena, como bem apontou Konrad Hesse [11], de "uma antecipada capitulação do Direito Constitucional diante do poder dos fatos".

Contudo, a situação veio a alterar-se quando do advento da Emenda Constitucional 17, datada de 24/6/1968, como noticia Gilmar Ferreira Mendes [12]. Nesse ponto, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu um amplo e sofisticado sistema de gerenciamento normativo de crises (estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal) que permite uma acentuada flexibilidade para lidar com situações de instabilidade social.

Outras formas, por sua vez, de lidar com a alteração das circunstâncias fácticas, embora imprevistas, ainda assim incapazes de gerar uma crise social, são os instrumentos da reforma constitucional e da mutação constitucional a primeira na seara legislativa e a segunda na via jurisdicional. Como leciona Cristina Queiroz [13], "a Constituição não vive exclusivamente num estado de quietude. Vive a época e está exposta às idéias e forças que nela actuam".

Aqui tem-se o contrário do ocorrido na Odisséia, pois o problema não consiste em manter-se a decisão tomada diante da tentação de mudá-la ao sabor das circunstâncias, mas da necessidade de modificar-se o entendimento diante de uma alteração da realidade fáctica a exigir uma resposta que sequer foi imaginada naquele momento no qual elaborada a Constituição, assemelhando-se ao evento narrado por Platão [14] na qual Sócrates diz a Céfalo ser dever do amigo não restituir a espada ao seu proprietário quando estiver irado e fora de si.

Da mesma maneira que o sistema jurídico deve antever meios para lidar com uma imprevista e/ou profunda alteração das circunstâncias, a aplicação do Direito em si não pode simplesmente ignorar o mundo real e as consequências das decisões judiciais.

essa linha, consigna-se que não há como render-se ao brocardo fiat justitia, pereat mundus sem adotar-se uma postura demagógica. Como bem pontua Cristiano Carvalho [15]:

"Considerando a repercussão inevitável que as sentenças e acórdãos judiciais possuem, a preocupação com suas consequências deveria ser presente na tomada de decisão jurisdicional. O que se percebe, no entanto, é o império do nobre, porém ingênuo (e às vezes, irresponsável) aforismo do fiat justitia et pereat mundus (faça-se justiça ainda que pereça o mundo), ou seja, satisfazer este anseio tão humano quanto imemorial, independentemente das consequências. O problema óbvio nessa ideologia é que, se o mundo perecer, não sobrará ninguém para se beneficiar deste nobre ideal.
Quando se diz que o Supremo Tribunal Federal é um tribunal "político", o correto é perceber essa adjetivação como determinando a preocupação que a excelsa corte necessita ter para com suas decisões, que, por fecharem o sistema jurídico estabilizando definitivamente as significações dos institutos jurídicos, acaba por afetar toda a sociedade".

Nessa mesma linha, Karl Larenz [16] pontifica:

"Al Tribunal Constitucional incumbe una responsabilidad política respecto al mantenimiento del ordem jurídico-estatal y su capacidad funcional. No puede proceder según la máxima: fiat justicia, pereat res publica. Ningún juez constitucional procederá así prácticamente. Aquí la consideración de las consecuencias es, por tanto, totalmente irrenunciable (…)".

Isso dá-se, com maior razão, hoje, após o advento da Lei Federal 13.655/2018, ante a incorporação inequívoca das consequências como fundamento jurídico a ser levado em consideração ao aplicar-se o Direito. Se antes poderia haver alguma dúvida, agora não mais pode existir, a respeito da necessidade de considerar-se os efeitos concretos das decisões administrativas e judiciais.

Felizmente, o legislador impôs como norma a consideração inexorável da realidade que será afetada pelo exercício do poder público, constrangendo o decisor a ter em conta que cada manifestação administrativa ou jurisdicional impacta a vida das pessoas e que as consequências devem ser consideradas e sopesadas. Se por um lado, o papel aceita tudo, de outro, a realidade sempre se impõe.

Aliás, a mesma linha já havia sido adotada no controle de constitucionalidade ao prescrever-se a modulação dos efeitos das decisões que reconhecessem a discrepância de ato normativo em face da Constituição. Isso porque os artigos 27 da Lei Federal 9.868/1999 e 11 da Lei Federal 9.882/1999 admitem que o bom cumprimento da Constituição impõe, episodicamente, a manutenção de atos contrários à ela. Uma certa dose de pragmatismo acaba, às vezes, por ser aquilo que a própria Constituição exige.

Feitas essas considerações, depreende-se que a Constituição assume o caráter de prévio comprometimento da sociedade com determinada ordenação jurídica, assentando as bases sobre as quais a pessoas e os governos deverão pautar-se e um quadro normativo dentro do qual a política e a cidadania devem desenvolver-se, sem, contudo, tornar impossível a alteração de tais fundamentos, seja por emenda, seja pela reunião das forças sociais da qual resulte um outro pacto social. E mesmo ante a ordem constitucional vigente, as consequências das decisões judiciais devem ser consideradas, não se admitindo que, sob o fundamento de aplicação do Direito, gerem-se efeitos funestos na realidade, impactos esses que a própria Constituição, como um todo, busca evitar.

 


 

[1] HOMERO. Odisséia. Tradução e notas de Trajano Vieira. São Paulo: 34, 2011, p. 359-367 (Canto XII, 36-200).

[2] ELSTER, Jon. Ulises y las sirenas: estúdios sobre racionalidade e irracionalidad. Tradução de Juan José Utrilla. México? Fondo de Cultura Económica, 2015, especialmente no capítulo II, itens 5, 6 e 8.

[3] ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Tradução de Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: UNESP, 2009.

[4] ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Tradução de Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: UNESP, 2009, p. 127.

[5] ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Tradução de Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: UNESP, 2009, p. 133.

[6] ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Tradução de Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: UNESP, 2009, p. 216.

[7] ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Tradução de Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: UNESP, 2009, especialmente p. 220-221.

[8] A expressão costuma ser atribuída ao juiz estadunidense Robert Jackson e teria sido utilizada em seu voto vencido no julgamento Terminiello v. Chicago levado a efeito pela Suprema Corte em 1949.

[9] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 31.

[10] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 32.

[11] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 32.

[12] Nota III do tradutor in HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 33 e 34.

[13] QUEIROZ, Cristina. Direito Constitucional: as instituições do Estado Democrático e Constitucional. São Paulo: RT/Coimbra: Almedina, 2009, p. 159.

[14] PLATÃO. A República (ou da justiça). Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, p. 46 (331b).

[15] CARVALHO, Cristiano. Teoria da Decisão Tributária. São Paulo: Almedina, 2018, p. 324.

[16] LARENZ, Karl. Metodologia de la Ciencia del Derecho. Barcelona: Ariel, 2001, p. 504 e 505.

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    é juiz federal substituto da 3ª Região, mestre em Direito (PUCRS), especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo/Espanha).

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