Opinião

Narrativas autoritárias: reforma constitucional de 1926

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5 de janeiro de 2021, 20h59

Poucos acadêmicos do Direito Constitucional na contemporaneidade costumam dar importância à reforma de 1926 à Constituição de 1891. A reforma foi promulgada no final da presidência de Artur Bernardes e exprime a faceta constitucional do recrudescimento autoritário vivido no Brasil durante a década de 1920. Ignorada pelos constitucionalistas, há quem termine o curso de Direito sem sequer ter tomado nota de sua existência histórica.

Sem dúvida, os anos compreendidos entre 1930 e 1945 foram marcados por ações autoritárias no Brasil. Getúlio Vargas jamais escondeu suas inclinações nada democráticas — e o golpe do Estado Novo, com sua Constituição imposta, é possivelmente a expressão mais marcante do autoritarismo brasileiro nessas décadas (1937-1945). Em nossa memória coletiva, os anos que sucederam o golpe de 1930 costumam ser mais diretamente associados ao autoritarismo do que a década de 1920.  

Mas cumpre dizer que a Primeira República, dos mais altos aos mais baixos escalões do Estado brasileiro, também faz prova dos usos impróprios do universo constitucional e jurídico em favor de desideratos autoritários. E a reforma de 1926 é um bom exemplo dessa tendência.

Turbulência política gerada pelos levantes tenentistas, crise econômica fortemente matizada pelos desequilíbrios gerados pelas variações dos preços do café, assim como a propagação de ideias supostamente radicais por imigrantes e adeptos do anarquismo, todos esses motivos estariam na base das justificativas para que o Estado brasileiro adotasse medidas centralizadoras e autoritárias para conter a crise generalizada na década de 1920. Na retórica do Estado, era necessário impor a ordem e garantir a segurança em tal momento de fortes turbulências políticas e sociais.

Por meio da reforma de 1926, procurou-se operar ao menos três contundentes modificações autoritárias no sistema constitucional brasileiro de então: 1) restrição da abrangência de aplicação do Habeas Corpus; (2) consolidação dos instrumentos de expulsão de estrangeiros para suposta garantia da ordem pública; e (3) limitação à ação dos tribunais na revisão dos atos ligados à declaração e à execução do estado de sítio.  

"§ 22. Dar-se-á o Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção" (artigo 72, § 22).

A reforma de 1926 pôs fim à doutrina do Habeas Corpus no Brasil, doutrina criada pela engenharia inventiva e construtiva das práticas forenses e pela jurisprudência do STF, que acabara por reconhecer, até 1926, extensa amplitude ao remédio constitucional do Habeas Corpus no combate às arbitrariedades estatais que porventura viessem a ser perpetradas sob o sistema constitucional de 1891.

Em 1926, a amplitude do Habeas Corpus foi limitada às hipóteses de direito de locomoção. A reforma de 1926 criou, por conseguinte, um vácuo em matéria de proteção constitucional contra os abusos que poderiam ser cometidos pelas autoridades públicas em outras frentes (como a espoliação estatal da propriedade privada e mesmo o constrangimento das autoridades ao exercício de direitos políticos). Apenas em 1934, com a criação do mandado de segurança, outras hipóteses de abusos estatais passariam a ser novamente enfrentadas pelo nosso sistema constitucional protetivo — embora deva-se ressaltar que, mesmo nesse caso, a eficácia reconhecida ao novo instituto do mandado de segurança, pelo STF, sob a Constituição de 1934, seria bastante limitada.

"§ 33. É permitido ao Poder Executivo expulsar do teritório nacional os súditos estrangeiros perigosos à ordem pública ou nocivos aos interesses da República" (artigo 72, § 33).

Na década de 1920, não era incomum que estrangeiros fossem associados às tendências pró-proletariado existentes na Europa. A reivindicação política por direitos sociais fez com que, nessa época, inúmeros imigrantes entrassem na mira da polícia: expulsões de pessoas consideradas perniciosas à ordem social eram frequentes nesse momento político como resposta conservadora a essas manifestações contrárias ao status quo.

À época, o interesse político caminhava no sentido de colocar o juízo sobre a conveniência das expulsões fora do alcance da análise dos tribunais. Atos normativos da década de 1920 procuraram circunscrever o exame dos tribunais apenas às formalidades do ato de expulsão. A reforma de 1926 reconheceu a prerrogativa — absoluta — do Poder Executivo no julgamento da conveniência da expulsão.  

Tudo leva a crer que o mundo das expulsões de estrangeiros no Brasil toca o mundo da definição da extensão da discricionariedade administrativa no Brasil — mais pesquisas históricas que analisassem o tema das expulsões na década de 1920 poderiam impactar positivamente a nossa literatura de Direito público.

"§ 5º. Nenhum recurso judiciário é permitido, para a Justiça Federal ou local, contra a intervenção nos Estados, a declaração do estado de sítio e a verificação de poderes, o reconhecimento, a posse, a legitimidade e a perda de mandato dos membros do Poder Legislativo ou Executivo, federal ou estadual; assim como, na vigência do estado de sítio, não poderão os tribunais conhecer dos ctos praticados em virtude dele pelo Poder Legislativo ou Executivo" (artigo 60, § 5º).

Ao mencionar o tema da extensão da discricionariedade administrativa no Brasil, cumpre tratar da redação conferida, pela reforma de 1926, ao artigo 60, parágrafo 5º, da Constituição, que colocava as ações de emergência do Estado brasileiro fora do alcance da apreciação dos tribunais. Entre outras situações, seria defeso aos tribunais conhecer de matéria relacionada à declaração e execução do estado de sítio. Procurava-se, por meio da inserção desse dispositivo em nosso sistema constitucional, cláusula expressa de deferência judicial, evitar intromissões indesejadas do Poder Judiciário na condução dos assuntos políticos. Na prática, a intenção era evitar que o combate a inimigos políticos do regime fosse dificultado por meio da ação revisora dos tribunais.

Como se vê, a década de 1920 oferece um cenário político e constitucional significativo para o estudo do autoritarismo no Brasil. A reforma de 1926 deveria ganhar mais espaço nos livros tradicionais de Direito Constitucional brasileiro. Costumo dizer que, em um país com um passado autoritário como o Brasil, os momentos de "antagonismo constitucional" não podem ser negligenciados pelos constitucionalistas. Seria perder muita coisa. Conhecida e estudada, a reforma constitucional autoritária de 1926 poderia agregar elementos importantes à compreensão do complexo autoritarismo à brasileira.

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