Opinião

Reflexões sobre a decisão que determinou o desbloqueio de Playstation 5

Autor

  • Yuri Eloi Braz da Silva

    é advogado consultor jurídico especialista em Direito Contratual pela PUC-SP e em Direito Penal pela Instituição Toledo de Ensino atua com Reestruturação de Crédito Cobrança Recuperação Judicial Falência Direito Digital e Consumidor.

5 de janeiro de 2021, 6h35

Uma recente decisão da Justiça brasileira ganhou destaque na imprensa nacional [1] e internacional [2] [3] [4], visto que um magistrado de São Paulo determinou que a Sony reativasse videogame que havia sido banido da rede Playstation Network (PSN). Neste artigo, faremos algumas considerações acerca da indústria de games e sobre esse caso.

Mercado de jogos eletrônicos
O mercado de jogos eletrônicos apresenta números impressionantes e a cada dia conquista mais adeptos, seja porque mais pessoas estão adquirindo os grandes consoles ou porque estão baixando jogos em celulares ou tablets.

De acordo com pesquisa realizada pela Newzoo e publicada [5] pelo Jornal O Estado de São Paulo, o mercado gamer cresce em média 10% ao ano, teve uma receita de US$ 148 bilhões em 2019 e mais de 2,4 bilhões de jogadores globais — para efeito de comparação, o mercado de games faturou duas vezes o valor da indústria cinematográfica (US$ 43 bilhões) e a da música (US$ 19 bilhões) juntas.

Para 2020, as projeções [6] são ainda mais animadoras pois, apesar do cenário de pandemia, estima-se que os games para dispositivos móveis devem gerar receita de US$ 77,2 bilhões, quase metade de toda a receita do setor, a qual deve chegar ao patamar de US$ 159,3 bilhões.

Esses números demonstram que a indústria dos games é muito maior e muito mais rica que a do cinema e a indústria da música, apesar de não chamar tanto a atenção. Importante mencionar que grandes estúdios cinematográficos, bem como roteiristas, atores, diretores, dubladores, ilustradores e outros profissionais, estão migrando do cinema para a indústria dos jogos eletrônicos.

Funcionamento das despesas dos jogos online
Antes de adentrar nos detalhes dos autos, necessário compreender o funcionamento das despesas que um jogador pode ter com jogos eletrônicos, bem como entender sobre a possibilidade de se jogar em rede.

Todo jogo precisa de uma plataforma para ser jogado. Essa plataforma será o local onde será instalado o jogo, podendo ser um videogame, um celular, um tablet ou computador.

Via de regra os jogos são comprados e, nesse caso, se paga um valor fixo pela aquisição do produto. Outros jogos devem ser assinados, isto é, se paga por uma assinatura periódica, a qual permite que o jogador usufrua do jogo durante um determinado período de tempo.

Alguns jogos são gratuitos (também chamados de free-to-play), em que o jogador não paga para adquirir e jogar a versão básica do jogo. Mas, se o usuário quiser jogar com acessórios mais sofisticados, deverá pagar por eles, realizando microtransações. Outros games possuem versão gratuita com apresentação de anúncios, em que o jogador, de tempos em tempos, tem o jogo interrompido pela exibição de vídeos de anunciantes.

Outro ponto importante a ser mencionado é que grande parte dos usuários costuma jogar em rede. Ou seja, através da internet, os jogadores conseguem interagir, participando de competições, jogando de forma cooperativa ou simplesmente se comunicando com pessoas que também utilizam aquele mesmo jogo.

Funcionamento do sistema de jogos do Playstation
Superados estes pontos, passemos a examinar o funcionamento do sistema da Sony, fabricante do PlayStation 5.

Ao adquirir o videogame da Sony (seja PlayStation 4 ou PlayStation 5) o usuário terá direito a utilizar os jogos do respectivo console. Para que consiga jogar em rede (com outros usuários através da internet) será necessário que se cadastre gratuitamente na rede chamada PlayStation Network, mas também faça a assinatura de um serviço da Sony chamado PlayStation Plus, que, além de permitir que o usuário jogue em rede, disponibiliza mensalmente dois ou três jogos para os assinantes.

Seja pela possibilidade de poder jogar em rede ou pelo benefício de receber jogos mensalmente, o fato é que tem crescido o número de assinantes deste serviço [7], sendo que as vendas digitais tem aumentado de maneira impressionante o faturamento [8] da Sony.

O processo noticiado pela mídia
O processo noticiado está em fase embrionária e ainda não foi contestado [9], de modo que, neste momento, só é possível analisar os fatos narrados pelo autor e as políticas adotadas pela empresa provedora do serviço de jogos, as quais são públicas.

De acordo com os autos, o autor da ação adquiriu um Playstation 5 e toda a controvérsia gira em torno da utilização do serviço PlayStation Plus, visto que, conforme foi mencionado no processo, os assinantes desse serviço que adquirissem este videogame ganhariam um pacote de jogos chamado PlayStation Plus Collection, o qual poderia ser usado tanto no Playstation 5 como no Playstation 4.

No caso dos autos o autor da ação alegou que teria recebido a pena de banimento, isto é, a Sony, alegando que o usuário teria descumprido as regras de utilização do serviço, baniu o equipamento perpetuamente da rede PlayStation Network e da plataforma PlayStation Plus. Houve decisão liminar para liberar o acesso do equipamento à plataforma PlayStation Network nos seguintes termos:

"Destarte, configurados, pois, os requisitos permissivos ao reconhecimento da antecipação da tutela, defiro a liminar pleiteada na inicial para determinar ao réu que adote as providências necessárias para que no prazo de 72 horas, providencie a reativação de acesso do console PlayStation 5 (…) à PlayStation Network (…), sob pena de, não o fazendo, arcar com o pagamento de multa diária de R$ 200,00 limitada ao valor do produto".

Do contrato da PSN
Analisando os Termos de Serviço e o Contrato do Usuário da PlayStation Network, o qual está disponível no sítio [10] eletrônico do PlayStation, destacamos as cláusulas 1.6 e 12.5, que tratam da suspensão (banimento) do equipamento nos seguintes termos:

"1.6. A violação destes Termos por você ou seu filho (caso você esteja aceitando estes termos em nome do seu filho) pode resultar na suspensão temporária ou permanente do seu console ou da sua Conta, incluindo quaisquer Contas que você possa ter configurado para uma criança menor de 18 anos ("Contas secundárias") na sua Conta, além da perda de acesso ao conteúdo associado a essas Contas. Consulte a Seção 12 para obter mais informações.
(…)
12.5. Suspensão do console.
Com a suspensão do seu Dispositivo PlayStation, você não poderá usar esse console para (a) acessar a PSN com nenhuma Conta (mesmo que você crie uma nova); (b) jogar qualquer jogo ou modo de jogo que exija acesso online ou (c) acessar qualquer conteúdo comprado na PlayStation Store. Ainda será possível jogar qualquer jogo em disco aceito no console, se eles não precisarem se conectar à PSN para isso".

Da leitura dessas cláusulas podemos concluir que, em caso de violação dos termos, a pena imposta poderá transcender a pessoa do usuário e recair no equipamento, isto é, quem fica impedido de acessar a rede PlayStation Network é o console. Em outras palavras, se o usuário criar outra conta de outro equipamento conseguirá acessar a PSN normalmente como um novo usuário. Além disso, verifica-se que não há um prazo determinado para a suspensão do acesso e, desta forma, a punição poderá durar ad aeternum.

Breves reflexões sobre o tema
Após essas considerações faremos, algumas breves reflexões:

1) Seria correto suspender o acesso do console de um usuário sem lhe dar a oportunidade de defesa? Para termos um parâmetro, quando um vídeo publicado no YouTube recebe denúncia de violação a direitos autorais, o usuário recebe aviso (strike) informando da violação, mas, num primeiro momento, não recebe nenhuma punição [11], e lhe é concedida a oportunidade para que repare o seu erro. Será que a Sony não deveria fazer o mesmo?

2) Seria correto suspender o acesso do equipamento? Partindo da premissa que o usuário violou as regras de utilização do equipamento, seria correto aplicar a punição através da inserção de um bloqueio no aparelho? Temos aqui alguns pontos a serem observados:

2.1) Se, por exemplo, vários membros de uma família utilizam o console para jogar, mas apenas um indivíduo violou as regras da Sony, seria justo bloquear o equipamento e prejudicar toda a família?

2.2) Uma pessoa que compra um PlayStation 5 dificilmente o faz para jogar sozinho, mas geralmente pretende jogar em rede. Inclusive há até uma versão deste equipamento que não possui leitor disco, cujos jogos são comprados, baixados e instalados exclusivamente pela PSN. Dessa forma, retirar do equipamento a funcionalidade de jogar online é reduzir de maneira drástica suas funcionalidades e, consequentemente, seu valor. Não seria esta uma punição demasiadamente alta e desproporcional?

3) Seria correto um banimento perpétuo? Conforme consta no artigo 5º, XLVII, "b" da Constituição Federal, não haverá penas de caráter perpétuo. Marcelo Novelino e Dirlei da Cunha Junior [12] afirmam que "a vedação prevista no texto constitucional não se restringe às penas privativas de liberdade, abrangendo qualquer tipo de sanção penal". Forçoso concluir que um criminoso pode ter a esperança de cumprir sua pena e um dia ser solto, mas um console banido jamais será reativado.

Considerações finais
Por fim, necessário mencionar que, sempre que discussões como estas chegarem no Judiciário, estaremos diante de um processo que será analisado à luz do Código de Defesa do Consumidor, sendo que a empresa só terá sucesso se demonstrar de modo muito claro qual foi a conduta irregular praticada pelo usuário pois, caso contrário, terá de liberar o acesso, conforme ocorreu no processo indicado abaixo:

"VOTO Nº 16.251
AGRAVO Nº 2131830-60.2020.8.26.0000
COMARCA: SANTO ANDRÉ (8ª VARA CÍVEL)
AGRAVANTE: JEFERSON GOMES DOS SANTOS
AGRAVADAS: GARENA AGENCIAMENTO DE NEGÓCIOS LTDA. e GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA. (não citadas)
JUIZ DE PRIMEIRO GRAU: ANDRÉ LUIZ RODRIGO DO PRADO NORCIA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇO – Jogo eletrônico 'Free Fire' – Conta 'suspensa permanentemente' – Ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos materiais e morais proposta pelo usuário – Decisão de primeiro grau que indefere pedidos de justiça gratuita e de tutela de urgência – Agravo interposto pelo autor – Admissibilidade da concessão do benefício quando as condições econômicas não indicam fundadas razões para o indeferimento – Presunção de veracidade acerca da impossibilidade de se arcar com o pagamento das despesas processuais – Exclusão do usuário fundada em informações imprecisas – Situação de fato que preenche os requisitos do artigo 300 do Código de Processo Civil a justificar a concessão da medida – Recurso provido".

Retornando ao caso sob análise, entendemos que, neste momento, foi acertada a decisão liminar do magistrado, que determinou a reativação do acesso do console à PSN. Com o desenrolar dos fatos e desdobramentos deste processo, teremos melhores condições de formar nosso juízo sobre o caso concreto.

Finalizamos este artigo afirmando que este texto não possui a pretensão de esgotar o assunto, pois traz breves reflexões para que, juntos, possamos buscar medidas assertivas no intuito de prevenir e, quando necessário, solucionar tais conflitos.

 


[8] A PlayStation Network, sozinha, gerou 12,5 bilhões de dólares em 2018. Isso considera as vendas digitais, compras de DLC e assinaturas como a PS Plus.
Se compararmos esse número com as concorrentes, o analista Daniel Ahmad comenta que é maior que toda a receita que a Nintendo gerou com videogames. É maior que toda a receita da Microsoft com o Xbox também (segundo a companhia, sua divisão de jogos alcançou a marca de 11,5 bilhões de dólares em 2018). Disponível em <https://www.brgamers.com.br/sony-gerou-mais-dinheiro-com-a-psn-do-que-toda-a-receita-da-microsoft-e-da-nintendo/>. Acesso em 29 DEZ 2020.

[9] A carta de citação para apresentação de defesa será publicada em 21 de JAN de 2021.

[10] Disponível em <https://www.playstation.com/pt-br/legal/psn-terms-of-service/>. Acesso em 29 DEZ 2020.

[12] Novelino, Marcelo. Cunha Junior, Dirley da. Constituição Federal para Concursos. 2020. Salvador.: Editora Jus Podivm.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico, especialista em Direito Contratual pela PUC-SP e em Direito Penal pela Instituição Toledo de Ensino, atua com Reestruturação de Crédito, Cobrança, Recuperação Judicial, Falência, Direito Digital e Consumidor.

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