Opinião

A inafastabilidade do princípio da identidade física do juiz no processo civil

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4 de janeiro de 2021, 12h08

Quinquênios e decênios são marcos de importantes reflexões a respeito das normas vigentes e de seus efeitos práticos. Em 2020, comemoramos cinco anos da publicação do Código de Processo Civil (CPC) de 2015 e, a despeito dos muitos avanços e dos produtivos debates, algumas supressões do antigo texto, com vistas a conferir maior celeridade processual, merecem destaque, entre elas a da regra processual que assegurava a observância ao princípio da identidade física do juiz (artigo 132 do CPC de 1973).

Corolária do princípio constitucional do juiz natural, que detém status de garantia fundamental, por força do artigo 5º, incisos LIII e XXXVII, da Constituição Federal, segundo a mencionada regra, ora suprimida, o magistrado que concluísse a audiência de instrução julgaria a lide, na medida em que o contato direto e pessoal com as partes e testemunhas, somado ao domínio das nuances dos depoimentos por ele colhidos, dar-lhe-ia melhores condições e discernimento para apreciar o mérito.

Nas palavras atemporais de Ovídio Batista: "Os dois primeiros princípios, o da oralidade e o da imediatidade entre o juiz e as partes, ainda necessitam de um outro que lhes dá consistência e os torna efetivos. É o princípio segundo o qual o mesmo juiz que haja presidido a instrução da causa há de ser o juiz da sentença. Ora, se a oralidade, como se viu, tem por fim capacitar o julgador para uma avaliação pessoal e direta não só do litígio mas da forma como as partes procuram prová-lo no processo, não teria sentido que o juiz a quem incumbisse prolatar a sentença fosse outro, diverso daquele que tivera esse contato pessoal com a causa" [1].

Isso porque a palavra falada prepondera sobre a escrita. Não são as laudas com a transcrição fria das palavras ditas que possibilitam a adequada análise dos depoimentos, mas o titubear da fala, o tremor das mãos, a oscilação das respostas, a dubitável postura corporal das partes e das testemunhas que aproximam o julgador da verdade real.

Fato é que a nova normativa processual foi criada sob o influxo das inovações oriundas do processo eletrônico e da premente necessidade de reorganização judiciária, capaz de absorver a crescente demanda, passando a dar maior ênfase à eficiência e à razoável duração do processo, de modo que, a despeito das inúmeras críticas quando da elaboração do código, desvencilhou-se a instrução do juiz sentenciante.

Entendeu-se que não haveria mais sentido na manutenção de certos procedimentos, pois os avanços tecnológicos, entre eles a possibilidade de registro de depoimentos em áudio e vídeo, acabariam por tornar sem razão essa vinculação estrita do juiz que os colheu ao julgamento da causa. Além disso, questões relativas à organização judiciária, tais como a carência de julgadores e o volume de processos, também contribuíram para que fosse suplantada a antiga sistemática.

Contudo, na prática, o que se tem percebido é a recorrente (e, determinadas vezes, arbitrária) transferência dessa competência, digamos, originária a magistrados cujo primeiro e único contato com a demanda se dará apenas no julgamento. Nesse contexto, a ausência de justificativa minimamente razoável e de definição de critérios claros e objetivos para tanto conduz à reflexa violação do postulado que ainda se mantém hígido, o do juiz natural, que imprime expressiva garantia da ordem constitucional e limita os poderes do Estado, impossibilitando-o de instituir juízos e tribunais ad hoc.

Não raros são os casos em que, sob a justificativa de atender aos primados da celeridade e da eficiência processual, o julgamento delegado a magistrado estranho à fase instrutória acaba gerando efeito exatamente inverso. Distante da instrução e da colheita da prova oral, o substituto haverá de reanalisar todo o acervo probatório, além de necessariamente assistir a longas solenidades das quais não participara, para, então, conceder provimento justo. Tudo leva a crer que, na prática, isso não tem acontecido e o resultado acaba sendo desastroso, retratado em decisões frágeis, dissociadas das provas produzidas e da tão almejada verdade real.

Foi exatamente para evitar tais situações que o legislador, no artigo 449 do CPC, estabeleceu, como regra geral, que as testemunhas devem ser ouvidas na sede do juízo, reforçando a importância da oralidade e da concentração dos atos diante dos incontestáveis benefícios da proximidade do juiz com as provas, que, por sua vez, garantem a qualidade da prestação jurisdicional [2].

Outrossim, a logicidade que fundamenta o princípio da identidade física do juiz foi expressamente consignada pelo novel Código de Processo Civil ao prever, em seu artigo 366, que, encerrado o debate ou oferecidas as razões finais, o juiz proferirá sentença em audiência ou no prazo de 30 (trinta) dias, sobrelevando a imediatidade, que está relacionada com a proximidade do juiz (contato direito com as provas) e o julgamento, pois o tempo é capaz de trair a memória do julgador ou, pior, nos dizeres de Luiz Guilherme Marinoni, permitir que outro julgador aprecie o mérito [3].

Previu-se textualmente que o juiz da instrução deveria proferi-la de imediato ou naquele lapso temporal, sendo prematura e imprópria a sua desvinculação injustificada. Ainda assim, frequentemente, processos conclusos há menos de 30 dias, bem como demandas de altíssima complexidade, com vasto acervo probatório, longa e decisiva audiência de instrução, que justificariam a vinculação ao magistrado que a encerrou, têm sido encaminhados a núcleos de metas ou à apreciação de juízes substitutos, cuja rotatividade é igualmente alarmante.

Embora a jurisprudência continue a prestigiar o princípio da identidade física do juiz, reconhecendo que, apesar de a regra não ser coercitiva ou absoluta, não podendo, então, ser afastada sem razoável e adequada motivação, majoritariamente ou quase unanimemente, tem-se rejeitado os pedidos de nulidade da sentença, sob o argumento de que inexiste comprovado prejuízo causado à parte vencida.

Enfrenta-se, também, significativa resistência dos tribunais quando o debate esbarra no princípio do livre convencimento do juiz, fundamento recorrente para afastar flagrantes equívocos da decisão judicial, que desconsidera argumentos e provas que poderiam justificar entendimento diametralmente contrário.

Não se está a criticar a criação de núcleo de metas, o apoio de juízes auxiliares ou outros meios alternativos e legais de otimizar o fluxo do Judiciário, com o propósito de conferir maior eficiência e celeridade, mas, sim, a sobrelevar a necessidade de se definir e publicizar critérios objetivos e razoáveis que justifiquem a (excepcional) destinação do feito a juiz diverso daquele que presidiu a audiência de instrução, já que este, inegavelmente, terá melhores condições de apreciá-lo.

Defende-se que, mais do que uma regra processual suprimida, trata-se de princípio consagrado que ampara o jurisdicionado e o próprio sistema judiciário, cuja missão é oferecer prestação jurisdicional justa, efetiva e de qualidade à sociedade, sendo, pois, indeclinável. Assim, tão relevante quanto assegurar às partes uma solução razoavelmente célere é garantir a adequada valoração das provas e o escorreito desfecho da causa posta em juízo.

 


[1] SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 1, p. 68.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio. Prova e Convicção: de acordo com o CPC de 2015; 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. pg. 843.

[3] Ibidem.

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