Opinião

A certificação coletiva nos projetos de nova Lei de Ação Civil Pública

Autor

  • João Paulo Lordelo

    é procurador da República em auxílio à Procuradoria-Geral da República pós-doutor (Universidade de Coimbra) doutor em Direito (UFBA) coordenador do Grupo de Trabalho sobre Processos Coletivos do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) membro da comissão de juristas designada pela Câmara dos Deputados para elaboração do projeto reforma da Lei de Lavagem de Capitais e ex-defensor Público Federal.

4 de janeiro de 2021, 19h36

Ao menos dois importantes projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional buscam realizar uma intensa reforma na disciplina dos processos coletivos. Um deles é a proposta de Lei de Ação Civil Pública apresentada pelo Conselho Nacional de Justiça, o PL 4.778/2020 (Projeto CNJ). O outro é o PL 4.441/2020, de relatoria do deputado federal Paulo Teixeira. Ambos se encontram apensados na Câmara dos Deputados.

Um ponto a merecer atenção consiste na disciplina da fase de saneamento e organização dos processos coletivos — a chamada "certificação coletiva" [1].

Cuida-se de tema central no regramento das ações coletivas norte-americanas — as class actions, objeto da Federal Rule 23 —, que serviram e servem de inspiração não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.

O processamento de uma class action possui duas fases distintas: a primeira, iniciada com a propositura da ação, em que o juiz avaliará a hipótese de cabimento e a presença dos seus pressupostos; a segunda, desenvolvida a partir da definição da estrutura coletiva da demanda. O que separa tais fases é a decisão de admissibilidade e organização processual (class certification). É ela que confere estrutura coletiva à demanda proposta. Somente a partir dela é possível falar na existência de uma ação coletiva.

Muitas vezes, esse é o momento mais conflituoso da demanda, podendo vir a ser também a fase mais demorada do processo [2], justamente por ter "o poder de transformar uma massa de indivíduos amorfa em uma entidade juridicamente reconhecida e capaz de ir a juízo lutar por seus interesses" [3].

Pará além desses elementos estruturantes à própria natureza do caso, a "certificação" também irradia efeitos em outros relevantes aspectos da demanda. Ela influencia a alavancagem das partes para a celebração de acordos, determina os valores que podem ser obtidos pelos advogados das partes, os prováveis custos para a instrução e julgamento, bem como a publicidade que deverá ser empregada ao litígio [4].

Em síntese, a class certification é um instituto exitoso na experiência jurídica das class actions norte-americanas, consistente em uma fase preliminar destinada à rigorosa verificação dos requisitos processuais para o processamento de uma demanda na forma coletiva, bem como à organização processual. Essa fase resulta em uma decisão considerada fundamental na sistemática processual coletiva daquele país.

O equivalente a ela, no Brasil, é a fase de saneamento e organização processual [5].

Em comentários aos anteprojetos de Código de Processo Civil Coletivo, Antonio Gidi registra que a "certificação" processual é "uma espécie de 'decisão saneadora' em que o juiz norte-americano estuda o processo e verifica se ele tem condições de prosseguir na forma coletiva" [6]. Partindo dessa premissa, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. sugerem a inserção da adequada certificação da ação coletiva no campo das normas fundamentais da tutela jurisdicional coletiva, afirmando se tratar de "decisão de conteúdo complexo", a envolver "o juízo de admissibilidade do processo coletivo, a delimitação do conflito coletivo e a organização do processo" [7].

Essa decisão deve ser proferida na fase de saneamento (ou de ordenamento) do processo, iniciada após o fim do prazo da contestação, se não houver prolongamento da fase postulatória (em razão, por exemplo, de algum expediente provocado pelo réu, a exemplo da reconvenção).

A certificação coletiva no Projeto CNJ
Firmadas essas breves premissas, causa perplexidade a omissão do PL 4.778/2020 (Projeto CNJ) quanto ao tema. O projeto, que pretende revogar por completo a atual Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), não dedica sequer uma linha à decisão de saneamento e organização processual. A disciplina procedimental é apresentada de forma lacônica e difusa, além de cronologicamente inadequada.

A título de exemplo, a organização das formas interventivas é resumida à tímida e restritiva disciplina do §5º do artigo 4º, ao dispor que "os legitimados, que não figurarem como litisconsortes, poderão intervir na qualidade de assistentes litisconsorciais, não lhes sendo possível alterar o pedido ou a causa de pedir".

Esse dispositivo deve ser lido em conjunto com o §2º, que dispõe ser "facultado o ingresso de outros legitimados coletivos, na condição de autores, em até 30 dias contados da intimação por meio eletrônico, se esta for possível, ou, caso não haja intimação, da publicação do edital previsto no artigo 11, com a possibilidade de aditar o pedido e/ou a causa de pedir".

Tal regra limita drasticamente a possibilidade de aditamento do pedido ou até mesmo da causa de pedir, além de restringir essa possibilidade ao sujeito interveniente — deixando de lado o autor. Cuida-se de evidente retrocesso à tutela jurisdicional adequada, sobretudo nos litígios de natureza complexa, em que a dinâmica de um mesmo evento pode ensejar múltiplas pretensões de variados grupos interessados.

Outro exemplo que causa grave incompreensão foi percebido por Antonio Gidi [8]: o desenvolvimento de uma cronologia processual confusa na fase inicial do processo coletivo. Proposta a ação, intima-se o "o Ministério Público para que se manifeste acerca da representatividade adequada" (artigo 5º, §1º), determinando-se a citação do réu somente se "reconhecida a representatividade adequada" (artigo 5º, §2º).

Há, portanto, um controle da representação adequada antes mesmo da citação do réu, momento em que o debate a respeito do tema tende a ser bastante prematuro. Isso porque: 1) somente com a citação do réu é que será possível compreender, de forma mais completa, a extensão e a complexidade do litígio coletivo; 2) a prática das ações coletivas revela que, em muitos casos, o réu é o maior interessado em zelar pela representação adequada, sustentando a ilegitimidade da parte autora.

A certificação coletiva no PL 4.441/2020
Diversamente do que se observa no Projeto CNJ, o PL 4.441/2020 traz uma rica e bem-vinda disciplina no campo do saneamento e organização dos processos coletivos.

O projeto dedica um capítulo próprio, inaugurado a partir do seu artigo 7º, para tratar do procedimento, iniciando com a disciplina da competência territorial.

Os parágrafos 1º ao 6º do mencionado dispositivo estabelecem um importante roteiro preliminar, atribuindo ao julgador os deveres de: 1) analisar os requisitos da petição inicial e controlar de ofício a sua competência, declinando dela se considerar haver outro foro, que, em razão das peculiaridades do caso, possa conduzir o processo com mais efetividade para a tutela coletiva (§2º); 2) deliberar sobre a competência adequada a partir de uma prévia definição dos contornos do conflito, consideradas as suas características e os grupos envolvidos (§3º); 3) decidir sobre a tutela provisória antes de declinar da competência; 4) deliberar sobre eventual cooperação com outros juízos, na forma dos artigos 67 a 69 do Código de Processo Civil, quando tais providências permitirem uma condução mais eficiente do processo (§6º).

Em seguida, o seu artigo 10 dispõe sobre o dever de publicidade à propositura da ação civil pública, estabelecendo, de forma ampla, os meios adequados: 1) por meio de edital, que contenha informações claras e precisas sobre o objeto da ação; 2) por meio de inscrição no cadastro do Conselho Nacional de Justiça; 3) na rede mundial de computadores, como nos sítios de tribunais e da agência, órgão ou regulador relacionado; 4) por meio de anúncios em jornal ou rádio locais, a publicação de cartazes na região do conflito e outros meios.

A disciplina da certificação coletiva é ricamente apresentada no artigo 19 do PL 4.441/2020.

Cuida-se de regramento claramente alinhado não apenas à exitosas experiências do Direito comparado, mas também às mais recentes pesquisas acadêmicas sobre o tema no Brasil.

O projeto parte da importante premissa de que, na fase de saneamento e organização processual, o órgão julgador, munido do panorama fático e jurídico delineado a partir dos contornos estabelecidos pela petição inicial e pela defesa, encontra-se em um momento estratégico para fazer com que seja observado o devido processo legal coletivo [9].

De acordo com o mencionado dispositivo, "na decisão de saneamento e organização do processo, o juiz deverá, sem prejuízo de outras medidas necessárias de acordo com as circunstâncias do caso concreto", adotar as seguintes medidas:

1) Delimitar o(s) grupo(s) titular do direito(s) objeto do processo;

2) Definir, quando necessário, os pressupostos para que alguém seja considerado membro do grupo;

3) Controlar a adequação da legitimação do autor e a necessidade de ampliação do rol de autores, no caso de haver muitos grupos ou subgrupos;

4) Identificar as principais questões de fato e de direito a serem discutidas no processo;

5) Verificar se foi juntada aos autos a documentação de prévia atividade probatória, como a resultante de produção antecipada de prova e de inquérito civil ou outros procedimentos administrativos investigatórios;

6) Definir os poderes do amicus curiae e de eventuais terceiros na decisão que solicitar ou admitir a sua intervenção, bem como a necessidade de realização de audiência ou consulta públicas, fixando-lhes as respectivas regras;

7) Definir as regras sobre participação dos membros do grupo como terceiros intervenientes em audiências públicas ou mesmo durante os demais atos processuais;

8) Proceder imediatamente ao juízo de admissibilidade dos pedidos formulados, sobretudo em razão da fixação da competência e da legitimidade, com a determinação dos ajustes necessários, tais como ampliação, redução ou desmembramento dos pedidos, delimitação dos beneficiários do processo, entre outros.

Os temas abordados ostentam grande relevância. Afinal, a delimitação do conflito e a normatização das interações entre o grupo titular do direito coletivo, os membros do grupo, o legitimado coletivo, as partes adversas, terceiros intervenientes e o órgão julgador compõem o núcleo do devido processo legal coletivo.

Além disso, o artigo 16 do PL 4.441/2020 menciona expressamente a decisão de saneamento e organização do processo da ação civil pública, que passa a ser o marco temporal para a suspensão de individuais baseados no mesmo conjunto de fatos.

Todas essas regras revelam a adequada percepção da elevada utilidade — e da centralidade — de uma "certificação" à brasileira.

 


[1] TAVARES, João Paulo Lordelo Guimarães. A certificação coletiva: organizando as ações coletivas e o julgamento de casos repetitivos. Salvador: JusPodivm, 2020.

[2] TIDMARSH, Jay; TRANGSRUD, Roger H. Modern Complex Litigation. 2. ed. Nova Iorque: Fundation Press, 2010, p. 341.

[3] GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 198.

[4] TIDMARSH, Jay; TRANGSRUD, Roger H. Modern Complex Litigation. Op. cit., p. 341.

[5] Sobre o saneamento processual, cf. GRECO, Leonardo. O saneamento do processo e o projeto de novo Código de Processo Civil. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, v. 8, n. 8, 2011, p. 568-601.

[6] GIDI, Antonio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2008, p. 117.

[7] DIDIER JR. Fredie; ZANETI JR. Hermes. Curso de Direito Processual Civil: processo coletivo. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2018, v. 4, p. 11.

[8] GIDI, Antonio. O Projeto CNJ de Lei de Ação Civil Pública. Avanços, inutilidades, imprecisões e retrocessos: a decadência das ações coletivas no Brasil. Civil Procedure Review (Special Edition), 2021. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3724081. Acesso em: 3 jan. 2021.

[9] A respeito do devido processo legal coletivo, cf. VITORELLI, Edilson. O Devido Processo Legal Coletivo: dos Direitos aos Litígios Coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

Autores

  • Brave

    é procurador da República, ex-defensor Público Federal, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisador visitante na Universidade de Sevilha e professor de Direito Processual Civil.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!