Opinião

Feminicídio: quando a lei não é o bastante

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  • Mauro Argachoff

    é delegado de polícia lotado na Assistência Policial Civil da Policia Civil do Estado de São Paulo professor da Academia da Policia Civil do Estado de São Paulo leciona Direito Penal no Complexo Damásio de Jesus na pós-graduação da Escola Paulista de Direito e na Escola Superior de Advocacia especializado em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura e mestre em Direito Penal pela USP-SP.

3 de janeiro de 2021, 6h37

É uma tendência natural que se acredite que quanto mais severa a legislação criminal, quanto mais elevadas as penas, menos crimes ocorrerão. Afinal, sabendo aquele que está prestes a delinquir sobre o pesado fardo que terá de carregar no caso de uma eventual condenação, pensará duas vezes antes de agir ao arrepio da norma. Seria ótimo se fosse verdade.

Ao término de um dos mais difíceis anos que a humanidade tem vivido, a juíza Viviane Vieira do Amaral Arronezi, com 45 anos de idade, foi morta a facadas pelo seu ex-marido. O crime ocorreu na presença das três filhas do casal. Notícias veiculadas pela imprensa dão conta de que o casamento, que durara 11 anos, chegou ao seu término e o autor do crime "não aceitava a separação", fazendo com que a vítima tenha registrado ocorrência policial e permanecido por algum tempo andando sob escolta.

O crime de homicídio, entre as diversas formas qualificadas descritas na lei, prevê o chamado feminicídio. Em tal situação a pena pode chegar a 30 anos de prisão. A mesma lei ainda agrava a reprimenda se a mulher for morta na presença de descendente, bem como se o agressor descumprir medidas protetivas que haviam sido impostas. Situações presentes no caso da juíza carioca. Como se observa, ausência de quantidade elevada de pena não existe no caso de feminicídio, mas infelizmente o crime aconteceu inobstante o rigor da norma. Ocorreu com a Viviane juíza e continua ocorrendo com as Vivianes caixas de supermercado, faxineiras, engenheiras, médicas, advogadas, funcionárias públicas, donas de casa, desempregadas etc. Só no ano de 2019 foram 1.326 delas. Mas por quê?

Quando uma pessoa se predispõe a ingressar na marginalidade, ela não se preocupa com a pena que estará sujeita. Um indivíduo não deixa de explodir um caixa eletrônico de agência bancária após ler o Código Penal e constatar as elevadas penas impostas para referido crime. É evidente que tais penas devem existir e serem rigorosas, mas de nada adiantarão se não forem efetivamente cumpridas. O efetivo cumprimento da pena, este sim, com o passar do tempo pode ser um fato gerador de desencorajamento da prática de delitos. Não para todos, evidentemente, mas para os criminosos não contumazes ao menos.

Mas voltemos ao feminicídio, em que tal tese parece não ter aplicação. A historiadora Lilia Schwarcz lembra que vivemos em uma sociedade absolutamente patriarcal, desde a época da colonização, em que os "homens se acham donos dos corpos das mulheres e detestam reconhecer a autonomia das mesmas". Segundo o Instituto Vladimir Herzog, em pesquisa realizada em 2017, 39% das mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de preconceito na escola ou faculdade relacionado ao gênero. Em pleno século 21, esse número é altíssimo e inaceitável.

Mas é justamente nesse ambiente escolar que pode estar a chave para que se encete a mudança desse quadro. Isso não acontecerá da noite para o dia, mas é urgente que se inicie. Somente através da educação é que os meninos de hoje não se transformarão nos homens de amanhã que irão dizer "não aceitar o final do relacionamento" pelo simples fato de se acharem superiores, não sabendo lidar com a rejeição, principalmente se vinda de uma mulher. O enfrentamento ao feminicídio requer, além da forma legal, uma profunda análise estrutural.

Enquanto o assunto não for encarado com a seriedade e o planejamento que merece, continuaremos só com a lei, mas já deu pra notar que esta, sozinha, não é o bastante.

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