Embargos culturais

O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

3 de janeiro de 2021, 8h00

Spacca
O apanhador no campo de centeio, do escritor norte-americano Jerome David Salinger (1919-2010), publicado em 1951, é um dos livros mais deliciosos do século XX1. Tem vezes que acho que é meu livro predileto. Li incontáveis vezes. Em português há uma tradução de fins dos anos 50, de Jorio Dauster, Alvaro Alencar e Antonio Rocha, todos do Itamaraty, que Rubem Braga publicou. A editora Todavia lançou agora uma nova tradução, de Caetano Galindo, professor da Federal do Paraná. A tradução é muito bem feita, Galindo conseguiu fixar uma linguagem compreensível também para adolescentes, levando em conta os 70 anos do livro. Não há como se escapar do fato de que a gíria que se expressa no livro era compreensível para os leitores dos anos 50. Hoje é puro preciosismo. Ainda assim, O apanhador no campo de centeio é um livro atemporal e encantador. O tradutor ajuda muito.

O narrador é o incomparável Holden Caulfield. Sincero, bem humorado, e também muito mal humorado, definia-se como um “mentiroso sensacional”. Afirmava que se saísse para comprar uma revista, e alguém o encontrasse no caminho, certamente afirmaria que iria assistir a uma ópera. Contraditório, reconhecia que era analfabeto, mas que, ao mesmo tempo, como se fosse possível, lia muito. Também contraditoriamente, dizia que odiava o cinema, porém imitava filmes e os citava, o tempo todo. Enfrentava um problema central, que consistia em descobrir para onde iam os patinhos que ficavam no laguinho do Central Park, quando chegavam os meses do inverno, e o lago congelava. Por causa dessa pergunta quase arrumou uma tremenda encrenca com um motorista de taxi.

A narrativa toda passa-se em tempo inferior a uma semana. Expulso da escola onde estudava o ensino médio, Caulfield fala um pouco da escola e dos colegas, e em seguida segue para sua casa, em Nova Iorque, descrevendo o trajeto. Seus pais viviam com uma certa abundância financeira. A estória se passa no inverno, na semana que antecede ao Natal. Caulfield insistiu que não iria contar sua biografia. Vai aí uma animada presunção. Uma biografia de um jovem adolescente foge aos cânones dessa forma literária. Caulfield não é nada pretensioso.

Caulfield tem um irmão, que identifica como “D. B”.; era escritor e vivia em Los Angeles. Tem uma irmã por quem sente grande ternura. Havia também um outro irmão, que morrera precocemente, o que afetou a mãe de um modo muito forte. Não poderia ser de outro modo. O irmão escritor teria lançado um livro de contos, “O peixe-dourado secreto”. Em umas das estórias o dono do peixinho não permitia que se olhasse para seu peixe. Havia comprado com o próprio dinheiro. À época da narrativa, Caulfield dizia ter 16 anos, escrevendo o texto as 17, ainda que se comportasse, insistia, como um menino de 13 anos. Dizia que precisava de uma plateia, e que era na verdade um exibicionista.

Um pouco antes de voltar para casa foi visitar um professor que o reprovou. Tratava-se do Professor Spencer. Caulfield reclamou que havia remédios por todos os cantos da casa. A casa do professor cheirava a Vick Vaporub. O professor usava um roupão de banho tristíssimo, o que lhe dava uma péssima impressão. Tentava convencer Caulfield, que deveria “jogar as regras do jogo”. Disse a Caulfield que o reprovou, justamente porque o aluno não sabia a matéria. Caulfield observava que o professor tinha uma perna horrível, totalmente desprovida de pelos. Concordou que não se interessava pela matéria.

Criticava a escola que deixava. Comentava que divulgavam uma propaganda na qual um menino era exibido pulando sobre um obstáculo, montado em um cavalo. Caulfield afirmava que a propaganda era enganosa. Jamais vira um só cavalo na escola. Criticava a comida que era oferecida. Conta ao leitor que no dia anterior à visita dos pais era servido aos alunos um bife (de sabor péssimo). O objetivo era que os alunos se lembrassem aos pais que haviam comido carne no dia anterior. “Que engodo!”, afirmou.

Caulfield descreve os tipos que havia na escola, a exemplo de um menino que passava o tempo todo passando a mão na barriga ou no peito; era um rapaz louco por si próprio. Lembrou que só havia participado de duas brigas, que havia perdido as duas, que não era muito durão e que, na verdade, era um pacifista. Odiava receber presentes. Toda vez que era presenteado acabava ficando triste.

No trem de volta para Nova Iorque conheceu a mãe de um colega. O menino era um escroque, insuportável. Caulfield reverteu a situação, elogiando o garoto, e argumentando para si próprio que mães adoram que elogiem seus filhos. Em outras palavras, aquele que meu filho beija, a minha boca adoça. Caulfield mentiu sobre seu nome. Identificou-se com o nome de um funcionário da escola. Observou que a mulher estava cheia de anéis, o que lhe parecia abominável.

Chegou a Nova Iorque. Desembarcou na Penn Station. Resolveu não ir para casa. Retornaria no dia em que era esperado, uma quarta-feira. Faltava pouco. Tomou um táxi e convidou o taxista para tomar um drinque. A resposta, evidentemente, foi um não. Caulfield pedia bebidas alcóolicas, quando conseguia entrar em cafés e bares. Como era menor de idade, pediam sua identidade. Então, mudava de ideia, e reconsiderava o pedido: queria um refrigerante.

Hospedou-se em um hotel muito simples, o Edmont Hotel. O hotel é ficcional, e seria localizado na esquina da 8ª Avenida com a Rua 34. O camareiro lhe parecia mais deprimente do que o quarto que lhe deram. Da janela, via pervertidos e perversões, nas janelas dos prédios vizinhos. Ligou para a irmã. Não queria que os pais soubessem que estava na cidade. Ao saber que Caulfield fora expulso da escola, a irmãzinha lembrou que o pai iria mata-lo. Definia a irmã como uma criança linda e inteligente.

Caulfield ligou para amigas, marcou encontros. Uma delas era tão difícil para dançar que, segundo o narrador, parecia que havia arrastado a estátua da liberdade para uma pista de dança. Encontrou uma amiga de seu irmão escritor, que estava acompanhada de um oficial da marinha, que parecia mais certinho do que um relógio suíço, em suas palavras, carregadas de sarcasmo. Reclamou que esses brutamontes faziam questão de apertar as mãos com tanta força, com o objetivo de quebrarem os dedos de todo mundo.

Cansou-se de andar de táxi. Pediu que o ascensorista lhe ajudasse em encontrar uma prostituta. Desistiu do encontro, quando a moça chegou em seu quarto. Discutiu na hora de pagá-la, apanhando do ascensorista, que agia como cafetão. Em uma cafeteria pediu ovos com bacon. Duas freiras vizinhas pediram torradas com café. Caulfield sentiu-se incomodado, e resolveu ajudar as freiras, dando-lhes dez dólares, para eventuais obras de caridade. Aproveitou para lembrar (sempre para si mesmo), que católicos sempre querem descobrir se ele era católico, especialmente porque seu sobrenome era irlandês. Na essência, no entanto, não gostava que pedissem pratos mais simples do que o havia pedido.

Caulfield odiava atores. Achava que atores nunca pareciam gente de verdade. Afirmou ter conhecido Laurence Olivier (famoso ator que representava as peças de Shakespeare), porém o leitor nesse passo duvida do narrador, que parece às vezes não confiável. Percebe-se que Caulfield faz crítica literária. Adorou o Grande Gatsby (de Scott Fitzgerald), elogiou a Servidão Humana, de Somerset Maugham, falou bem de Thomas Hardy.

Nas últimas páginas do livro Caulfield visita um professor que lhe impressionava muito. Com esse professor (Antolini), aprendera que a marca de um homem imaturo é querer morrer de maneira nobre por alguma causa, enquanto que a marca do homem maduro consistiria em viver de maneira humilde por uma causa. Dormindo na sala da casa do professor, despertou no meio da noite com o professor acariciando sua cabeça. Deu um pulo da cama, chamou o professor de pervertido, fez um escândalo, e firmemente deixou a casa. Voltou para a cidade, e caminhou pela 5ª Avenida, em uma bela manhã da semana de Natal.

Caulfield tinha um sonho. Queria trabalhar de frentista de posto de gasolina. Construiria uma casa, no mato, mas não tão longe. Fingiria que era surdo e mudo. Se casaria com uma mulher também surda e muda. Evitaria assim conversar com quem não lhe agradasse. Encontrou a irmã, com que passeou pelo museu e pelo zoológico. Caulfield tinha pequenas expectativas. Ingênuo, queria redimir a humanidade.

Perturbado com a morte do irmão, Caulfield é de algum modo um adolescente idealista que pretende salvar o mundo. Uma das explicações para o enigmático título pode consistir na imaginação do personagem, que via um grande número de crianças brincando em um imenso campo de centeio, margeado por um penhasco. Havia milhares de crianças e nenhum adulto tomava conta delas. Caulfield imaginava-se parado na borda do penhasco, observando as crianças que corriam e que não olhavam para onde iam. Ele as apanharia, salvando-as. Era o apanhador no campo de centeio, dedicando-se aos outros, dando-se, com o mero pedido de troca de não ser importunado com a mediocridade, a ignorância e o lugar-comum.

O livro é dedicado à mãe de Salinger. O escritor viveu muitos anos recluso, evitando qualquer forma de contato. Há uma biografia recente, de Kenneth Slawenski, que explora o pouco que se sabe desse escritor popular e misterioso.


1 Dedico esse pequeno ensaio a meu filho Bernardo Ribeiro Godoy, 14 anos, cuja leitura do Apanhador no campo de centeio foi acompanhada por grandes gargalhadas. Vi-me, em meu filho, na deslumbrante descoberta da literatura e do mundo da cultura, onde há abrigo para as vicissitudes e injustiças da vida. Senti-me vivo e renovado.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!