Ambiente Jurídico

O 'caso Urgenda' e as lições para os litígios climáticos no Brasil

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2 de janeiro de 2021, 8h01

A Suprema Corte da Holanda, no final do ano de 2019, declarou e emitiu decisão de cunho mandamental para que o governo holandês cortasse as emissões de gases de efeito estufa no país em 25% em relação aos níveis de 1990, até o final do ano de 2020. Foi a primeira vez que um Estado foi obrigado por um tribunal a adotar medidas efetivas contra a mudança climática.

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De acordo com o chief justice da Suprema Corte, Kees Streefkerg, "por causa do aquecimento global, a vida, o bem-estar e as condições de vida de muitas pessoas ao redor do mundo, incluindo na Holanda, estão sendo ameaçadas". Aliás, na decisão, resta evidenciado que consequências catastróficas das emissões antrópicas já estão ocorrendo, o que é condizente com relatório da ONU [1]. De acordo com o professor Michael Gerrard, diretor do Sabin Center for Climate Change Law da Columbia Law School, a decisão foi inovadora, pois entre as mais de "1.442 ações judiciais sobre o clima em todo o mundo, esta é a decisão mais forte de todas [2]. A Suprema Corte holandesa manteve a decisão de primeiro grau e ordenou expressamente ao governo que reduzisse suas emissões de gases de efeito estufa". Não foi curto o caminho para o êxito da referida demanda, pois o grupo ambientalista obteve, antes de vencer o litígio climático na Suprema Corte, duas vitórias desde o ajuizamento do mesmo no ano de 2013. Demanda, aliás, que contou com mais de 900 autores no seu polo ativo [3]demonstrando coesão e força política capilarizada da mesma no tecido social. Porosidade política que faz-se necessária em litígios deste vulto, que demandam manifestação do Poder Judiciário em última instância, na expressão de John Rawls, como razão pública [4].

Na primeira decisão, no ano de 2015, o Tribunal Distrital de Haia emitiu ordem para que o governo reduzisse as emissões de gases de efeito estufa em pelo menos 25% em relação aos níveis de 1990 nos cinco anos seguintes. O pedido formulado na peça exordial exigia reduções nas emissões de gases de efeito estufa (GEE) entre 25% e 40%.

A decisão que, em boa hora, levou em consideração teorias consagradas dos direitos humanos, foi expressa ao reconhecer a possibilidade de danos causados às gerações atuais e futuras (aceitando não apenas perspectiva intrageracionais, como intergeracionais). Foi mais longe, inclusive, a decisão. Nesta restou consignado que o dever de cuidado do réu estava presente e que "o Estado deveria dar uma contribuição adequada, maior do que sua contribuição costumeira, para evitar a mudança climática e os perigos dela decorrente". O governo, irresignado, recorreu dessa decisão. Todavia, em outubro de 2018, o Tribunal de Apelação de Haia negou provimento ao apelo e decidiu novamente a favor de Urgenda. O tribunal, em histórica decisão, citou obrigações previstas na Convenção Europeia dos Direitos Humanos [5], e foi claro ao declarar que o governo estava agindo ilegalmente ao não adotar medidas mais fortes para reduzir as emissões. Outrossim, ratificou a fixação de uma obrigação de redução de pelo menos 25% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) até ao final de 2020, conforme consignado na decisão recorrida, pois esta estava em conformidade com o dever de cuidado do Estado [6].

O governo, em apelo extremo, pediu o conhecimento e a substituição da decisão pela Suprema Corte da Holanda. Em setembro de 2019, o procurador-geral e o advogado-geral, que atuam junto à mais importante Corte do país, emitiram parecer pelo não provimento do recurso e pela rejeição das razões aduzidas pelo governo.

No festejado leading case, o chief justice Streefkerk referiu que o argumento de que o corte nas emissões de GEE pela Holanda não produziria um grande efeito em nível global não eximia o país de adotar as medidas pertinentes para reduzir suas próprias emissões, pois cada país deve ser o responsável pela implementação de medidas precautórias, ou seja, cada país deve fazer a sua parte no combate ao aquecimento global.

Referida decisão, portanto, exige que o governo adote medidas extremas para atingir a redução de 25% nas emissões de GEE e vai implicar, por certo, no fechamento de usinas termelétricas movidas a carvão, inclusive as que foram inauguradas no país no ano de 2016.

Novamente, importante grifar que a SCH mencionou com ênfase e reafirmou a importância do princípio da precaução. A SCH inclusive mencionou decisão anterior da Corte Europeia dos Direitos Humanos calcada no princípio da precaução. Como constou na referida decisão as alterações climáticas não mitigadas representam uma ameaça grave para muitos países, o que implica uma série de consequências adversas. Inegável é que existem incertezas sobre o que exatamente irá acontecer, mas o que não parece incerto é o fato de que a opinião predominante, tanto política como científica, consolidou-se no sentido de que as alterações climáticas devem ser mantidas muito abaixo dos 2 °C de aumento (tendo como paradigma inicial o ano de 1750) e que uma série de catástrofes irá ocorrer se esse limite médio for ultrapassado nos próximo doze anos, como a SCH reconheceu de modo detalhado ao longo de todo o julgamento [7].

De fato, com a elevação do nível do mar, parte dos Países Baixos ficaria inabitável. Por isso, incidiram na decisão ora comentada os artigos 2 e 8 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que oferecem proteção jurídica contra a ameaça do aquecimento global o que é coerente e compatível, aliás, com o princípio da precaução [8].

O princípio da precaução foi aplicado corretamente como fundamento jurídico da decisão (7.2.5 e 7.2.10). Nesta resta expresso que atualmente não existe tecnologia disponível para remover GEE da atmosfera numa escala suficiente para evitar o aquecimento global, assim seria um grave risco confiar apenas em tal tecnologia sem adotar medidas precautórias e, acrescento, em uma versão forte.

A SCH considerou, no mesmo sentido das duas decisões anteriores, que são aceitáveis as estimativas de que as concentrações de CO2 atingiram 430 a 450 ppm. Aliás, neste cenário, evidente o risco de dano. A aplicação do princípio da precaução ocorreu em uma versão forte para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Não se tratou de medida de menor alcance ou, até mesmo, de uma aplicação do princípio em uma versão soft ou mais moderada [9]. A corte manifestou o entendimento de que a aplicação do princípio de precaução visa a redução das emissões globais de GEE em um ritmo mais elevado e acelerado possível. Referida decisão está correta, pois as consequências do aquecimento global vão ampliar as externalidades negativas traduzidas em impactos ambientais, econômicos, sociais e políticos bastante negativos.

Como professor de Direito Ambiental, ex-advogado, magistrado federal com quase 20 anos de carreira (com breve período na magistratura estadual), posso afirmar que a decisão do "caso Urgenda" é no mínimo inspiradora para os operadores do direito das mudanças climáticas de todo o mundo. Referido leading case demonstra a funcionalidade da invocação não apenas dos direitos humanos, mas do Direito Constitucional e, fundamental, ao clima estável nos litígios climáticos [10], como defendido, aliás, com profundidade e brilhantismo, por juristas brasileiros, como os professores Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer [11]. Ainda, temos outros que, no enfrentamento do tormentoso tema da demonstração do nexo de causalidade, defendem com excelentes fundamentos a teoria da causalidade alternativa para responsabilizar o poluidor, como a professora e procuradora de Justiça Annelise Steigleder [12]. Aliás, referida teoria poderia ser aplicada perfeitamente no novel direito das mudanças climáticas.

Entre os jusambientalistas, menciono também o professor José Rubens Morato Leite, que traz relevantes argumentos, resultado de sua pesquisa, quando sustenta a ecologização do direito ambiental vigente, que podem ser importantes para o debate sobre os chamados litígios climáticos [13].

Pois bem, cabe referir que o precedente ora analisado serve ainda como uma espécie de incremento da jurisprudência pátria, já progressista, como aquela consagrada pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça que define a figura do poluidor (a ser equiparada com a do emissor- desmatador realizador de queimadas) que, nas palavras do ministro Herman Benjamin, sob a ótica do nexo de causalidade, para fins de responsabilização civil pelo dano ambiental, devem se equiparados "quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem" [14].

Com isso, abrem-se diversas possibilidades de responsabilização de condutas e atividades lesivas aos direitos fundamentais ao meio ambiente equilibrado e ao clima estável, pois resta necessariamente amplificado o leque dos sujeitos responsáveis por degradações ambientais. Referido precedente é harmônico com o Acordo de Paris, com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e com Laudato Sì [15]. Decisões progressistas desse estilo aliás, não se configuram ativismo judicial, mas na possibilidade de aplicação do arcabouço constitucional e infraconstitucional pelo Estado-juiz para responsabilizar os causadores (diretos e indiretos) de danos ambientais e climáticos. Sobre o tema, bem refere o ministro Herman Benjamin:

"No Brasil, ao contrário de outros países, o juiz não cria obrigações de proteção do meio ambiente. Elas jorram da lei, após terem passado pelo crivo do Poder Legislativo. Daí não precisarmos de juízes ativistas, pois o ativismo é da lei e do texto constitucional. Felizmente nosso Judiciário não é assombrado por um oceano de lacunas ou um festival de meias-palavras legislativas. Se lacuna existe, não é por falta de lei, nem mesmo por defeito na lei; é por ausência ou deficiência de implementação administrativa e judicial dos inequívocos deveres ambientais estabelecidos pelo legislador" [16].

Enfim, neste campo fértil para o desenvolvimento do Direito Ambiental e do direito das mudanças climáticas nacional, é importante grifar que o leading case hoje comentado recentemente foi considerado paradigma para litígios climáticos ajuizados contra Estados como, entre outros, Bélgica, França, Irlanda, Alemanha, Nova Zelândia, Grã-Bretanha, Suíça e Noruega [17]. Sem dúvida, existe uma tendência para o ajuizamento de litígios climáticos em todo o mundo em virtude de ações e omissões, estatais e privadas, que aumentam as emissões dos gases de efeito e multiplicam os riscos de danos decorrentes do aquecimento global.

Não existe dúvida, portanto, que os legitimados para a proposição dos litígios climáticos, comprometidos efetivamente com a luta contra as poluições, as quais equiparam-se as emissões de gases de efeito estufa, como já consagrado em Epa v. Massachusetts [18], têm e terão, no caso Urgenda, um importante paradigma para a consagração vitoriosa nas cortes de suas teses capazes de um dia, em um futuro próximo, responsabilizar os governos e os entes privados que carbonizam a economia e a atmosfera.

 

 


[1] UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAMME -(UNEP). Intergovernmental Panel on Climate Change. Global Warming of 1,5C. Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/sr15/. Acesso em: 22.12.2020.

[2] THE NEW YORK TIMES. Ruling Says Netherlands Must Reduce Greenhouse Gas Emissions. Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/12/20/climate/netherlands-climate-lawsuit.html. Acesso em: 20.12.2020. Sobre um relatório completo dos litígios climáticos ajuizados em todo o Mundo, ver: UNITED NATIONS. The Status of Climate Litigation: A Global Review, 2017. Disponível em: <https://www.unenvironment.org/resources/publication/status-climate-change-litigation-global-review>. Acesso em: 20.12.2020.

[3] COLUMBIA UNIVERSITY. Sabin Center for Climate Change Law. Urgenda Foundation v. State of the Netherlands. Disponível em: http://climatecasechartigocom/non-us-case/urgenda-foundation-v-kingdom-of-the-netherlands/. Acesso em: 25.12.2020.

[4] Sobre as manifestações da Suprema Corte como razão pública, ver: RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Belknap Press, 1971.

[5] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4. Acesso em: 20.12.2020.

[6] COLUMBIA UNIVERSITY. Sabin Center for Climate Change Law. Urgenda Foundation v. State of the Netherlands. Disponível em: http://climatecasechartigocom/non-us-case/urgenda-foundation-v-kingdom-of-the-netherlands/. Acesso em: 25.12.2020.

[7] COLUMBIA UNIVERSITY. Sabin Center for Climate Change Law. Urgenda Foundation v. State of the Netherlands. Disponível em: http://climatecasechartigocom/non-us-case/urgenda-foundation-v-kingdom-of-the-netherlands/. Acesso em: 25.12.2020.

[8] Sobre o princípio da precaução inserido no direito das mudanças climáticas e no direito dos desastres, ver: WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução: como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde publica(de acordo com o direito das mudanças climáticas e o direito dos desastres). 3ª edição. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020.

[9] COLUMBIA UNIVERSITY. Sabin Center for Climate Change Law. Urgenda Foundation v. State of the Netherlands. Disponível em: http://climatecasechartigocom/non-us-case/urgenda-foundation-v-kingdom-of-the-netherlands/. Acesso em: 25.12.2020.

[10] Sobre a invocação como fundamento jurídico dos direitos humanos e dos direitos fundamentais em sede de litígios climáticos, ver: WEDY, Gabriel. Litígios climáticos: de acordo com o direito brasileiro, norte-americano e alemão. Salvador: 2019.

[11] SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER. Litigância climática, proteção do meio ambiente e ADPF 708/DF.

https://genjuridico.jusbrasil.com.br/artigos/934334880/litigancia-climatica-protecao-do-meio-ambiente-e-adpf-708-df

[12] STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. 3ª edição. Porto Alegre: Editora do Advogado, 2017.

[13] MORATO LEITE, José Rubens. A ecologização do direito ambiental vigente. São Paulo: Lumen Juris, 2020.

[14] STJ – 2ª T. – REsp 650.728/SC – j. 23/10/2007 – rel. min. Herman Benjamin; STJ – 2ª T. – REsp 1.071.741/SP – j. 24/3/2009 – rel. min. Herman Benjamin.

[15] Sobre os referidos três marcos da sustentabilidade e da tutela do meio ambiente, ver: WEDY, Gabriel. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

[16] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2ª T., REsp 650.728/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 23/10/2007, DJe 02/12/2009.

[17] THE NEW YORK TIMES. In ‘Strongest’ Climate Ruling Yet, Dutch Court Orders Leaders to Take Action. Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/12/20/climate/netherlands-climate-lawsuit.html. Acesso em: 20.12.2020.

[18]SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. Epa v. Massachusetts. Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/06pdf/05-1120.pdf. Acesso em: 20.12.2020.

Autores

  • Brave

    é juiz federal, professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor coordenador de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito, visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg — Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht e diretor de Assuntos Internacionais do Instituto O Direito Por um Planeta Verde.

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