Retrospectiva 2020

Ocaso de 2020, o ano que jamais esqueceremos

Autores

  • Eduardo Januário Newton

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

1 de janeiro de 2021, 10h05

O ano de 2020 se aproxima do seu crepúsculo e certamente ficará marcado pela grave crise pandêmica que ceifou diversas vidas. Chegarmos vivos ao dia 31 de dezembro constitui, sem sombra de dúvida, uma grande vitória, ainda que acompanhada pela dor da perda de tantas pessoas e pela indignação decorrente das péssimas escolhas políticas assumida pelo (des)governo federal. Este texto visa a examinar, ainda que sucintamente, alguns importantes temas que compõem a retrospectiva da Justiça Criminal em 2020.

A crise sanitária provocou uma reviravolta no sistema de Justiça Criminal, o que materializou-se no início da pandemia e logrou reconhecimento expresso na Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça. O trabalho remoto foi definitivamente estabelecido de forma generalizada nas instituições do sistema de Justiça e trouxe gravíssimas repercussões na forma como a liberdade ambulatória veio a ser tratada por determinados atores jurídicos. A partir de uma enviesada interpretação, o aludido ato do CNJ adquiriu uma dupla e simultânea natureza jurídica: naquilo que representava uma restrição de direitos, defendia-se uma natureza cogente; porém, quanto ao que representaria algum direito ao destinatário da Justiça Criminal, era tido como um mero aconselhamento.

A suspensão das audiências de custódia e a retomada da velha prática da análise fria e distante do auto de prisão em flagrante configurou o maior retrocesso nessa temática, muitas vezes com ausência de manifestações do Ministério Público e da defesa técnica pública ou privada. Tal equívoco foi inicialmente objeto do Pedido de Providências nº 0003065-32.2020.2.00.0000, apresentado pelo Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios da DPCE [1], e, posteriormente, ampliado para todo o Brasil por pedido do Colégio Nacional de Corregedores das Defensorias Públicas, o que restou aprovado pelo CNJ, que acrescentou o artigo 8-A à Recomendação nº 62/2020 [2].

Ademais, na atividade em teletrabalho — análise documental de autos de prisão em flagrante — não vem sendo viabilizado o controle da atividade policial na prisão-captura, pois o artigo 8º-A, §1º, inciso V, da Recomendação nº 62/2020, não vem sendo cumprido adequadamente, realidade esta que motivou o ajuizamento da Reclamação Constitucional nº 43833 pela Defensoria Pública do Ceará, em 1º de outubro, ainda pendente de decisão liminar até a data de fechamento deste artigo [3].

Esse comportamento dúbio diante da Recomendação nº 62/2020 impõe um agir crítico, que é dever da doutrina, o que Lenio Streck denomina de constrangimento epistemológico — função daqueles que se debruçam sobre o fenômeno jurídico a partir da ciência do Direito:

"Trata-se de uma forma de se colocar em xeque decisões que se mostram equivocadas, algo que já chamei, em outro momento, de 'fator Julia Roberts', em alusão à personagem por ela interpretada no filme 'Dossiê Pelicano', que, surpreendendo o seu professor em Harvard, afirma que a Suprema Corte norte-americana errou no julgamento do famoso caso 'Bowers vs. Hardwick'. No fundo, é um modo de dizermos que a 'doutrina deve (voltar a) doutrinar', e não se colocar de caudatária e meramente reprodutora das decisões dos tribunais" [4].

E por qual razão, nessa retrospectiva de 2020, é trazida essa missão da doutrina? Ao se volver os olhares para o HC 191836, concluímos que o Supremo Tribunal Federal relegou ao ostracismo a sua função contramajoritária — quiçá por ter se tornado refém de processo penal do espetáculo e de uma opinião pública que não possui o mínimo compromisso com o processo penal democrático —, e realizou heterodoxa leitura do artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, o que significou, em termos práticos, a inocuidade do referido dispositivo legal [5]. Não só isso, mas também o uso de um instituto de duvidosa legitimidade democrática a suspensão de liminar [6] nº 1395 — para restringir o âmbito de incidência do Habeas Corpus [7]. Uma aberração jurídica que contradiz a dimensão dada pela doutrina brasileira do Habeas Corpus, reconhecida mundial, que vai além da defesa estrita da liberdade ambulatória.

Tratava-se de uma postura criativa e voltada para a ampliação da salvaguarda de direitos. Lêda Boechat Rodrigues, ao destacar o papel de Rui Barbosa no alvorecer da República e do Supremo Tribunal Federal, traz singela frase que acabou por lastrear esse amplo manejo da ação constitucional em questão: "Onde quer que haja um direito individual violado há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça" [8]. A interpretação conferida pela maioria do Supremo Tribunal Federal indica que, no Brasil, o Estado de Direito é um trabalho inacabado, em que o império da lei não é de todo válido para o Poder Público. Outrossim, quando o Judiciário se comporta como legislador positivo fora dos quadrantes admitidos pelo texto constitucional, fere o princípio constitucional da separação de poderes e ainda usurpa a competência da União para legislar sobre processo penal.

É lamentável constatar que as alterações implementadas em desfavor de quem sofre a persecução penal são facilmente absorvidas e aplicadas na prática forense, ao passo que aquelas que visam a assegurar direitos fundamentais sofrem enormes obstáculos à concretização [9]. Nesses mais de onze meses de vigência do pacote "anticrime", é possível dizer que não se tem qualquer notícia de controle de (in)constitucionalidade que tenha como parâmetro a ser aferido uma norma jurídica mais gravosa.

As normas de cunho punitivistas advindas com a Lei 13.964/19 estão sendo plenamente cumpridas. Vejamos alguns exemplos: 1) nova redação do artigo 75 do CP — aumentou o tempo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade de 30 para 40 anos; 2) os novos patamares de cumprimento de pena exigidos para a progressão de regime, chegando a alcançar 70%, em casos de réus reincidentes, condenados por crime hediondo ou equiparado com resultado morte (artigo 112, inciso VIII, da LEP), sendo-lhes ainda vedada a concessão de livramento condicional. Ou seja, nessas hipóteses, teremos situação mais gravosa que a existente quando da vigência do regime integralmente fechado (declarado inconstitucional pelo STF), já que, a esse tempo, era assegurado ao apenado livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena. Em ambas as alterações, ao contrário da decisão de suspensão do juiz de garantias, não se questionou o aumento de despesas oriundos dessas alterações, afinal o elevado custo de um preso aos cofres públicos não interesse ao populismo penal.

De outra banda, os dispositivos garantistas implementados pelo pacote "anticrime", apesar de formal e materialmente constitucionais, sofrem forte movimento contrarreforma ou mesmo, tal como apontado, provocação da jurisdição constitucional. A título ilustrativo, citamos: 1) a suspensão da figura do juiz de garantias; 2) apesar da nova redação conferida aos artigos 282, §2°, 311 e 316, todos do CPP, que proíbem o magistrado de decretar, de ofício, prisão preventiva, bem como as demais medidas cautelares, ainda encontramos decisões autorizando a conversão, de ofício, da prisão em flagrante em preventiva (HC 174102/RS, julgado pela 1° Turma do STF em 18/2/2020; RHC 120281, julgado pela 5° Turma em 5/5/2020 e o HC 580.435/RS, julgado pela 6° Turma em 4/8/2020); 3) a já comentada execração do parágrafo único do artigo 316 do CPP: 4) a resistência, por parte inclusive dos tribunais superiores, em se permitir a retroatividade do acordo de não persecução penal aos delitos cometidos antes do pacote "anticrime" (STJ: AgRg no RHC 128660, Dje 24/8/2020: RHC 130175-SP, DJe 3/9/2020, AgRg no Resp n° 1.860.770 – SP, DJe 9/9/2020); 5) a limitação de retroatividade da exigência de representação da vítima para processamento dos delitos de estelionato apenas para os casos em que ainda houve oferecimento da denúncia (HC 187.341, julgado pela 1° Turma do STF, em 6/10/2020, e o HC 573.093, julgado pela 5° Turma do STJ, em 10/6/2020).

Todavia, o ano de 2020 não se mostrou composto somente de desastres decisórios. O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o HC 598.886, realizou verdadeira revolução paradigmática no processo penal brasileiro. Diante da miséria investigatória que marca o cotidiano da persecução penal, a prova testemunhal e o reconhecimento pessoal adquirem relevância ímpar nos conjuntos probatórios. A partir da brilhante atuação da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (DPSC) e posterior articulação do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o artigo 226 do Código de Processo Penal perdeu uma função de ornamento para, enfim, se tornar uma garantia processual. E como prova de que já ocorreu a superação do ditado "uma andorinha não faz verão", ainda em 2020 foi possível verificar uma segunda decisão do STJ no mesmo sentido, nos autos do Ag Rg no HC 619.327 [10]. O ano trágico não permite comemorações — apesar de famoso jogador de futebol preparar uma festa de cinco dias em sua mansão —, mas não impede que se parabenize os envolvidos por essas lutas. Ainda que sejamos omissos, congratulamos Thiago Yukio Guenka Campos, Janaina Roland Matida, Rafaela Garcez e Pedro Carrielo. Afinal, foi dado um passo decisório importantíssimo no sentido de que o Direito probatório precisa ser levado a sério, pois, em uma realidade do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional, a decisão penal não implica somente em risco à liberdade, mas ao próprio direito à vida.

Um outro evento destacado nessa arbitrária retrospectiva de 2020 retoma uma temática aqui já abordada: as audiências de custódia. No dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, o ministro Edson Fachin concedeu liminar no Agravo Regimental na Reclamação Constitucional nº 29.303. Assim, determinou que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro realizasse audiências de custódia para todas as modalidades prisionais. Considerando as decisões anteriores do relator na citada reclamação, não se pode deixar de reconhecer a grandeza desse ato, pois seria mais cômodo manter decisão anterior que ia em sentido contrário ao da liminar. Se não bastasse isso, o deferimento de sucessivos pedidos de extensão tornou a liminar uma realidade para todo o país. É claro que imediatamente surgiram resistências, a exemplo da interposição de agravo por parte da Procuradoria-Geral da República que não foi apreciado em sede de plantão pelo ministro presidente. O fato de o julgamento do tema somente retornar em 5 de fevereiro de 2021, aliado ao cumprimento da decisão liminar, indicam que se trata de uma realidade sem a possibilidade de retorno. O sistema de Justiça Criminal não pode transmitir a mensagem de que somente os poderosos gozam desse direito, tal como se verificou com a realização da audiência de custódia para o prefeito Marcelo Crivella em razão de prisão decorrente de prisão preventiva. A universalização desse direito deve constituir uma luta de todos [11].

Revoluções e ondas reacionários do sistema de Justiça se mostram faces da mesma moeda. Em nenhum ano tivemos tantas impetrações ou deferimentos liminares e de mérito de Habeas Corpus Coletivos, v.g. os HCs 165704, 172.136, 143.988 e 165.704 (STF); e os HCs 568.021/CE, 568.693/ES, 575.495/MG e 596.603 (STJ) [12]. Por outro lado, inimaginável a reação classista nacional dos membros do Ministério Público, por meio da ADPF 758, que questionou o instituto do Habeas Corpus coletivo e seus delineamentos [13], tendo sido indeferida liminarmente a petição inicial.

Muitos outros aspectos poderiam ser ressaltados sobre o sistema de Justiça Criminal em 2020: por um lado, as revolucionárias decisões que indicaram a evolução dos tribunais superiores; por outro, a mentalidade autoritária de interpretações regressistas para mitigar os direitos fundamentais. O ano que se aproxima de seu ocaso foi traumático e legou lições sobre a necessidade de vigília constante para a construção de um processo penal em conformidade com a ordem constitucional; o ano vindouro trará o desafio de consolidar os avanços e implementar reformas dos entendimentos em relação a normas jurídicas de direitos e garantias processuais fundamentais ainda pendentes de concretização.

Não esquecer para não repetir as falhas. Não esquecer para manter intactas as conquistas. É isso que se espera de 2021.

 


[4] STRECK, Lenio. Dicionário de hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 42.

[6] Elton Venturi em seminal obra sobre o tema chega a apontar para a discussão sobre a natureza jurídica da suspensão. Chama atenção para os defensores de uma natureza extraprocessual: "Com indisfarçável predileção, a jurisprudência nacional recorrentemente manifesta-se no âmbito dos pedidos de suspensão referindo uma pretensa natureza política do expediente." In: VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. São Paulo: RT, 2005. p. 50.

[8] RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo I: 1891-1898. Defesas das liberdades civis. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 21.

[12] SANTANA FILHO, Edilson Gonçalves; ROCHA, Jorge Bheron; MAIA, Maurílio Casas. Defensoria Pública e Acesso à Justiça na Pandemia do Coronavírus. In Direitos do cidadão a partir da pandemia do coronavírus. TARTUCE, Fernanda; DIAS, Luciano Souto (Coord.). Indaiatuba: Editora Foco. 2020.

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