Segunda leitura

Reflexos e reflexões sobre o adiamento do concurso da Polícia Civil do Paraná

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

28 de fevereiro de 2021, 8h00

A Universidade Federal do Paraná (UFPR), a mais antiga do Brasil, é uma instituição séria e pelo elevado nível de seus professores, está entre as melhores do Brasil. Dela sou devedor, pois foi lá que fiz o mestrado e doutorado, o que me leva a sentimentos de reconhecimento e gratidão.

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Pois bem, certamente por seu bom conceito e principalmente por ser pública, a UFPR foi contratada pela Polícia Civil do estado do Paraná para promover a realização de concursos públicos para delegado de Polícia, investigador e papiloscopista.

Reportagem de Angieli Maros informa que "Centralizado em Curitiba e região metropolitana, o concurso atraiu 106 mil candidatos à capital, dos quais cerca de 55 mil vieram de outras regiões do Paraná e até mesmo de outros estados".[1] Nada mais natural, pois em tempos de recessão econômica e de insegurança quanto ao futuro, os cargos públicos ainda são um porto seguro.

Este enorme número de candidatos, além de todas as expectativas geradas por longo tempo de estudos, tiveram despesas de locomoção, alimentação e hospedagem. Todavia, poucas horas antes do certame, receberam a notícia do adiamento com a pouca consoladora informação de que o certame  seria realizado em outra data.

A UFPR emitiu nota justificando a medida tomada, por "ausência de requisitos indispensáveis de SEGURANÇA para a aplicação das provas do Concurso Público em todos os locais previstos na capital e nas cidades da Região Metropolitana de Curitiba/PR, …".[2] Mas o edital era de abril de 2020, em plena pandemia. Não sabia a contratada que isso poderia trazer problemas à realização das provas?

Resultado: a Polícia Civil viu ser adiado o necessário provimento dos cargos policiais e os candidatos viram frustrados seus projetos, além de sofrerem prejuízo econômico.

A responsabilidade civil da UFPR é flagrante e não merece mais do que algumas linhas. Não cumpriu o contrato a que se propôs com o estado do Paraná e comunicou os interessados em momento totalmente inadequado, impedindo-os de evitar o acesso ao local, especialmente os que residem foram de Curitiba. O artigo 37, § 6º da Constituição dispensa maiores discussões sobre a culpa, sendo a responsabilidade objetiva.

As ações dos milhares de candidatos poderão ser propostas no Juizado Especial de Curitiba ou no do domicílio do autor (artigo 4º, inc. III, da Lei 9.099/95). Então imagine-se pessoas de Foz do Iguaçu (PR), Porto Velho (RO) ou Jaguarão (RS), indo ao JEF mais próximo e reclamando o prejuízo econômico material (refeições, bilhete aéreo, etc.) e também danos morais, direito este que lhes assegura o art. 5º, inc. V da Constituição.

O que poucos pensam é no quanto gastará a UFPR para defender em tão distantes e diferentes locais. Os Procuradores Federais viajarão a tais locais? Acompanharão a ação e a execução?

Evidentemente, o Estado do Paraná também não ficará inerte. O adiamento importa em quebra do contrato e perdas significativas, sem falar que alguns ainda lhe colocarão no polo passivo das ações. Ao meu ver, nenhuma responsabilidade lhe cabe, nem mesmo subsidiária. Há precedente do STF reconhecendo esta responsabilidade supletiva, porém a referência à tese esclarece ser concurso realizado por empresa privada.[3]

Não será objeto de ação, mas registre-se, também, o dano à imagem de Curitiba e do Estado, ambos ciosos de sua boa fama de competentes e organizados.

Resumindo, os reflexos do adiamento importarão, inquestionavelmente, em despesas de vulto e congestionamento dos Juizados Especiais da Justiça Federal.

As reflexões vão além. A ocorrência deste concurso é apenas uma prova a mais das nossas dificuldades em bem executar políticas públicas ou meros atos administrativos. Temos muitas pessoas hábeis e convincentes na argumentação. Todavia, poucos com competência para fazer acontecer. Isto pode ser visto à nossa volta, na rotina de nossas vidas.

A que se deve esta  incompetência, pela qual pagamos tão caro? Certamente a fatores diversos.

O primeiro deles é a falta de capacitação em administração, seja da vida privada ou na esfera pública. Um exemplo de fácil constatação é o dos que ocupam cargos de direção na administração dos Tribunais. Na absoluta maioria dos casos são pessoas formadas em Direito. Então, para a aquisição de uma dúzia de canetas BIC, decidirão com base em artigos e princípios constitucionais, certamente lembrados por excelentes assessores que da mesma forma são formados em Direito. Por óbvio, é preciso mais gestores públicos nestas e em outras áreas.

O segundo fator é um certo desprezo pela execução. Valoriza-se o projeto, mas pouca atenção se dá à execução. O anúncio da construção de uma obra rende dividendos políticos. Mas o acompanhamento dos trabalhos não. E, evidentemente, é a parte mais difícil.

No âmbito do Direito isto pode ser visto diariamente. Decide-se algo sem nenhuma preocupação com a implementação do julgado. O resultado é uma silenciosa revolta nos órgãos da administração e o desgaste do Judiciário por não ver executada sua ordem. Sem entrar nas discussões filosóficas sobre consequencialismo e ética, é difícil aceitar que alguém possa tomar decisões sem atentar para as consequências de sua ação ou omissão, ainda que não intencionais.

O terceiro fator é o descomprometimento. Quem se propõe a realizar uma empreitada, em especial na esfera pública, deve dedicar todos os seus esforços para que ela tenha sucesso. Ninguém é obrigado a aceitar determinados ônus, porém, caso aceite, o mínimo a fazer é dar o máximo de si. Não será mérito algum trabalhar sábado e domingo ou dormir 4 horas por noite durante uma semana. Ao dizer sim a um convite a pessoa deve estar ciente do que isto representa e nada, exceto o imponderável, pode justificar o insucesso.

O quarto fator é estar capacitado, ter condições de bem executar a missão. A realização de um concurso como o aqui tratado, é hoje uma tarefa da mais alta complexidade. Toda espécie de dificuldades, inclusive tentativas de fraudes ou liminares às vésperas da realização podem surgir no horizonte. Com certeza realizar provas para 106.000 pessoas, em época de pandemia, é tarefa para gigantes. Mas isto deve ser avaliado previamente por quem executa, inclusive não aceitando.

Em suma, desta desafortunada ocorrência é preciso tirar proveito, usá-la como lição para que tal tipo de fato não se repita. E, inclusive, preparar-se o órgão executor e o próprio Poder Judiciário, para evitar a avalanche de ações que sobrevirão. Ocorreu o inesperado, 30 minutos depois anuncia-se às vítimas como poderão solucionar o problema, via conciliação, inclusive à distância de forma virtual.

Avança Brasil.


[1] Maros, Angieli. UFPR vai enfrentar ações judiciais por adiar concurso da Polícia Civil. Plural. Curitiba, 22/2/2021. Disponível em:  https://www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/ufpr-vai-enfrentar-acoes-judiciais-por-adiar-concurso-da-policia-civil/. Acesso 26/2.2021.

[2] Estratégia, 21/2/2021. Disponível em: https://www.estrategiaconcursos.com.br/blog/concurso-pc-pr-suspensao-prova/. Acesso em 26/2/2021

[3] STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4163004&numeroProcesso=662405&classeProcesso=RE&numeroTema=512#

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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