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A contradição federal em autuações fiscais oriundas da 'lava jato'

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28 de fevereiro de 2021, 13h14

As autuações da Receita Federal contra empresas colaboradoras da Justiça na operação "lava jato" geralmente exigem diferenças de Imposto de Renda por indedutibilidade dos pagamentos de vantagens indevidas, acrescentando a isso a cobrança do IR de fonte por pagamento sem causa (artigo 61 da Lei 8.981/91) — em dupla imposição sobre a mesma base de cálculo —, com multa agravada de 150% (artigo 44, §1º, da Lei 9.430/96).

Há confisco (proibido pelo artigo 150, IV, da Constituição Federal) porque os mesmos valores sofrem incidência simultânea de 34% (indedutibilidade) e de 54% (IR de fonte), somando 88% de carga tributária.

Mais grave, todavia, é que parte das empresas autuadas também enfrenta ações de improbidade administrativa ajuizadas pela União, em que o ressarcimento dos danos ao erário normalmente é postulado por meio da devolução de todo o lucro bruto auferido em cada obra inserida no contexto dos delitos confessados nas colaborações à Justiça.

Ora, é flagrantemente contraditório o comportamento da União quando pede a devolução do lucro auferido pela pessoa jurídica (em ação de improbidade administrativa), mas autua a empresa maliciosamente sem estornar de ofício, da base de cálculo tributável em cada período de apuração, os lucros cuja devolução pleiteia em ação de improbidade.

O estorno dos lucros (e a devolução dos impostos pagos sobre eles) é dever de ofício nessas autuações. Se a União é autora em ação de improbidade contra a mesma empresa, o agente fazendário não pode ignorar que os lucros já foram tributados no passado — e deve estorná-los pelo menos para compensar o que foi pago pela empresa contra o que é exigido na autuação, pois:

a) Ou tais lucros serão devolvidos à União, como requerido nas ações de improbidade, e nesse caso a União reconhece (por lógica) que o contribuinte lhe pagou impostos indevidos sobre lucros que não lhe pertencem;

b) Ou, em hipótese diferente, a União mantém as autuações sem esse estorno, em nome da sanha arrecadatória — mas, nesse caso, deve a mesma União compatibilizar seus comportamentos antagônicos (exigência de boa-fé) e desistir da ação de improbidade em que postula a devolução dos lucros.

Só não é possível exigir as duas coisas simultaneamente em face de uma só pessoa, como se vê, porque a contradição ofende qualquer leitura que se possa fazer do princípio da moralidade administrativa.

Se a União se considera titular do direito à devolução dos lucros, como postula na demanda de reparação de danos ao erário, não tem legitimidade para exigir impostos (ainda que sobre os tais pagamentos indevidos) sem antes estornar a tributação e devolver os impostos já recolhidos pela empresa sobre os mesmos lucros.

Não se discute, aqui, o surrado argumento fazendário da irrelevância do ilícito do contribuinte para fins de incidência tributária. A questão não diz respeito, como se vê, à tributação da riqueza decorrente do ato ilícito — porque até as vantagens indevidas, em teoria, podem ser tributadas.

Trata-se — isso, sim — de impedir a vergonhosa exigência simultânea acima descrita (autuação sem estorno dos impostos já pagos no passado, incidentes sobre os lucros que a União entende pertencer aos cofres públicos), pois essa contradição ofende a proibição do locupletamento ilícito (artigo 884 e seguintes do Código Civil), sobretudo quando se trata de tributo, para o que concorre, adicionalmente, o tipo penal do excesso de exação.

Em virtude do regime jurídico sancionatório decorrente da colaboração premiada, ademais, mesmo que caiba algum lançamento de ofício (após o estorno acima referido), não há como a autoridade fazendária exigir multas — muito menos as multas agravadas de 150%.

Os delitos confessados na colaboração (pagamentos de vantagens indevidas, lavagem de dinheiro e outros) são de maior gravidade e já se encontram sancionados no acordo criminal, de modo que delitos tributários de menor gravidade são absorvidos pelos de maior gravidade (nesse sentido, v. Habeas Corpus 111.488-MG julgado pelo STF em 17/4/2015, e a Súmula 17 do STJ).

Também não pode haver penalidades adicionais sobre os fatos confessados em colaboração premiada além dos limites já homologados pela Justiça, operando-se a coisa julgada no tocante à pretensão punitiva se os fatos também configuram o núcleo de crimes fiscais.

Cabe às empresas nessas condições o recurso ao Judiciário, portanto, para que sejam expurgados das autuações fazendárias os excessos decorrentes do comportamento contraditório da União, se presentes os pressupostos acima, bem como para que sejam excluídas as penalidades de toda natureza impostas em face de quem hipotecou sua confiança na palavra estatal — acreditando que as sanções por seus delitos ficariam delimitadas àquilo que ajustado no acordo de colaboração homologado pela Justiça.

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