Brecha jurisdicional

"Desafio de hoje é evitar que juizados especiais naufraguem", diz juíza

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28 de fevereiro de 2021, 7h33

Com a entrada em vigor da Lei 9.099/95, que disciplina os juizados especiais cíveis e criminais no país, há 25 anos, a prioridade era fazer os juizados especiais funcionarem. Hoje, o desafio é evitar que eles naufraguem. A avaliação é de uma autoridade no assunto, a juíza paulista Maria do Carmo Honório.

Spacca
Hoje atuando junto à 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, a quase desembargadora foi juíza titular de um juizado especial cível de Campinas, interior paulista, e também presidente do Fonaje, o principal fórum nacional de discussão sobre os juizados. Ela também tem livros escritos sobre o assunto, assinados com outras autoridades.

Para Maria Honório, os principais desafios dos juizados são "a luta contra a ordinarização de seu rito; contra a precarização na estrutura por alguns Tribunais de Justiça e contra a importação irrefletida de dispositivos do CPC".

Diz que é preciso um olhar novo para os juizados especiais, principalmente na era pós-pandemia, "para aproveitamento das inovações tecnológicas, que possibilitaram o trabalho remoto e as audiências por videoconferência".

Após 25 anos da lei, seu diagnóstico dos juizados no país é positivo, mas reconhece ter havido "um certo retrocesso no intuito de prestação jurisdicional diferenciada". "Estão aumentando a competência do juizado especial, contrariando até mesmo o seu espírito original", afirma. "Além do objetivo do sistema estar sendo desvirtuado, o número de processos é cada vez maior e os funcionários, além de estarem em número reduzido, estão desmotivados. Os juízes que acreditam no sistema estão frustrados", conta.

Maria do Carmo Honório nasceu em Caldas, município vizinho à estância turística Poços de Caldas (MG). Bacharelou-se em Direito em 1983. Fez especialização em Processo Civil (1986) e em Direito Constitucional (1989) pela PUC-Campinas, e tem mestrado em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP (2002). Entrou para a magistratura de São Paulo em 1991. Foi juíza da 1ª Vara do Juizado Especial Cível de Campinas por 13 anos até a chegada ao tribunal, em maio de 2019. Integrou o grupo de trabalho dos juizados especiais do CNJ (2011-2012) e o grupo de trabalho de juizados da Enfam (2016-2017), onde deu cursos como tutora. É autora de estudos coletivos, como Juizados Especiais: 15 anos de debates e reflexões, em coautoria com o ministro Marco Aurélio Buzzi (2010) e Manual Dos Juizados Especiais Cíveis & Da Fazenda Pública, em coautoria com José Fernando Steinberg (2017). Foi Presidente do Fórum Nacional de Juizados Especiais — Fonaje ( 2017), membro da Comissão Científica do Fonage, membro da Secretaria de Juizados Especiais da AMB e membro da Secretaria de Juizados Especiais da Apamagis.

Confira os principais trechos da entrevista:

ConJur — Passados 25 anos da Lei dos Juizados Especiais, qual o diagnóstico?
Maria do Carmo Honório —
É positivo, apesar de ter havido um certo retrocesso no intuito de prestação jurisdicional diferenciada. Os juizados especiais foram idealizados para ser um sistema de justiça despido do formalismo próprio da Justiça ordinária, para solucionar os conflitos cotidianos das pessoas, de maneira informal, rápida e menos custosa para o cidadão.

Contudo, a ordinarização do rito especial está cada vez mais frequente, com prejuízo para a imagem do juizado especial. A ideia inicial era a concentração dos atos em audiência, mas, com a sucessiva concessão de prazos, decorrentes da ordinarização do procedimento, o processo alonga-se no tempo; perde-se na celeridade.

Ademais, durante estes anos, foram criadas as unidades judiciárias autônomas, com servidores e magistrados capacitados, o que favorece bastante a eficiência do sistema. Nas unidades autônomas, a gestão processual é especializada e tende a ser mais fiel aos critérios previstos na Lei 9.099/95 do que nas unidades adjuntas às varas.

O número crescente de demandas continua sendo uma preocupação, sobretudo porque alguns tribunais ainda não estruturaram adequadamente as suas unidades e sem estrutura o juiz não consegue aprimorar a prestação jurisdicional.

ConJur — Advogados questionam que os juizados atualmente estão lentos. Segundo o CNJ, o tempo médio de duração de uma ação nos juizados especiais da Justiça Estadual está aumentando desde 2015. A que se deve essa lentidão?
Honório —
A lentidão no procedimento das ações que tramitam nos Juizados Especiais deve-se a vários fatores. O aumento constante de demandas novas e o início de novas execuções, sem que haja aumento da infraestrutura para o devido atendimento. Faltam, por exemplo, funcionários capacitados para atender aos jurisdicionados. Nesse aspecto, é importante lembrar que, nos Juizados Especiais, as pessoas são atendidas no balcão diretamente pelos funcionários, sem intervenção de advogados. Como as partes não têm conhecimento técnico, o atendimento costuma ser mais demorado.

O número de juízes com atuação exclusiva no sistema também é reduzido. Para compensar essa falta, muitos magistrados cumulam vara com unidade adjunta de juizado, o que prejudica a eficiência desse, sobretudo pela falta de fidelidade aos critérios previstos na lei.

A ordinarização do procedimento, que, conforme já mencionado, implica em concessão de prazos, que alongam o processo no tempo. O índice de conciliação também teve queda, que contribuiu para o atraso na prestação jurisdicional. Mas, em 2019, retomou o patamar de cerca de 20%, o que gera expectativa de resgate da celeridade.

Apesar do tempo médio de duração do processo nos JECs estar aumentando, o grupo trabalho do CNJ que fez o diagnóstico em 2020, ao analisar o índice de atendimento à demanda, a taxa de congestionamento e o índice de conciliação, percebeu "certa estabilidade ao longo da série histórica, porém com melhorias em todos os aspectos". Enquanto o atendimento à demanda vem constantemente encontrando patamares superiores a 100%, também vai sendo diminuído o congestionamento nos juizados.

ConJur — Os juizados respondem hoje por 35% de todo volume processual do país, segundo o CNJ. Os juizados foram desvirtuados?
Honório —
A sobrecarga dos juizados é devida a vários motivos, inclusive à facilidade para as demandas predatórias. Todavia, os fatores mais relevantes são realmente o aumento da demanda e a falta de estrutura. Sem uma estruturação adequada na unidade, o juiz, por mais que se esforce, não consegue aprimorar a prestação jurisdicional para dar vazão às demandas que chegam, o que gera congestionamento.

Concordo com a afirmação de que houve um certo "desvirtuamento" dos propósitos dos juizados. O que vem acontecendo lentamente, sem muito alarde, sem reflexões dos seus propositores, é que estão aumentando a competência do juizado especial, contrariando até mesmo o seu espírito original, mantendo-se, entretanto, a estrutura arcaica dos tais juizados de "pequenas causas", com um número reduzidíssimo de funcionários.

O número de processos é cada vez maior e os funcionários, além de estarem em número reduzido, estão desmotivados. Os juízes que acreditam no sistema estão frustrados, e a população cada vez mais insatisfeita.

Das duas, uma: mantém-se o sistema previsto na lei original, prestigiando-se a pessoa física e consequentemente exercitando concretamente a cidadania, ou amplia-se a competência e concomitantemente criam-se mais varas especializadas, contratam-se mais funcionários, disponibilizam-se mais recursos materiais para proporcionar à população um serviço que realmente seja eficiente.

O que é inaceitável é a ampliação da competência desse órgão, com a manutenção de uma estrutura precária. O aumento do volume de feitos é tão grande que é difícil manter uma pauta de audiências razoável, para atender ao princípio da celeridade. Isso macula a imagem do juizado especial.

O ideal é criar uma estrutura básica sólida com a competência prevista na lei, com informatização e capacitação de funcionários. A partir daí, pode-se pensar na ampliação da competência e da legitimação de partes de outra natureza.

A diretoria do Fonaje está sempre atenta para sensibilizar os relatores dos projetos de lei em trâmite no Congresso sobre as peculiaridades dos juizados especiais, propondo alterações para melhoria ou adequação da redação ou mesmo a rejeição de projetos de lei que ampliam a competência do sistema especial.

ConJur — Quais as suas propostas de aprimoramento?
Honório —
As propostas para o aprimoramento do sistema são muitas, destinadas a todos os tribunais de justiça. Fazer planejamento orçamentário prévio com a inclusão de verbas destinadas à manutenção e ao aprimoramento dos juizados especiais; disponibilizar recursos materiais e humanos para estruturação efetiva das unidades autônomas de juizados especiais.

Investir em recursos tecnológicos, para o processamento eficiente dos feitos na forma 100% digital e a realização de audiências e de sessões de julgamento por meio de vídeoconferência; capacitar magistrados e servidores para prestar a tutela jurisdicional sem ferir os critérios específicos previstos no artigo 2º da lei, como oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.

Rever a composição das turmas recursais para que sejam integradas preferencialmente por magistrados do Sistema dos Juizados Especiais de entrância final e que exerçam a jurisdição em área de competência especializada; a especialização favorece a celeridade e a harmonização dos julgados.

Exigir dos magistrados inscritos para a turma recursal e que não integram o sistema a conclusão de curso sobre juizado especial em escola judicial ou da magistratura; adotar um instrumento de uniformização de jurisprudência eficiente, que realmente tenha o condão de resolver as demandas em massa e repetitivas.

Proporcionar periodicamente cursos de formação continuada para garantir a estabilidade da jurisprudência e o bom funcionamento do Sistema; adotar projetos de política institucional e de capacitação permanente de juízes, servidores e demais atores do sistema.

Para o Congresso, a proposta é alterar a Lei 9.099/95, para adapta-la à nova realidade, mas sem macular a sua essência.

A propósito, o Fonaje já tem uma proposta de revisão dessa lei especial pronta e o seu maior desafio é convencer os congressistas da importância de manter os critérios básicos e as peculiaridades do sistema.

ConJur — Quais são as principais propostas de alteração que estão nesse projeto de lei pensado pelo Fonaje?
Honório —
A proposta de revisão da Lei 9.099/95 feita pelo Fonaje justifica-se por premissas bem definidas, que são as mudanças decorrentes da informatização do processo judicial e da entrada em vigor do novo CPC em 2015.

Os membros do fórum acreditam que é importante incluir na lei os termos do Enunciado 161, que considera o princípio da especialidade, para preservação da autonomia do sistema, a qual ficou evidente com a discussão sobre a forma de contagem de prazos.

Há consenso sobre a necessidade do diálogo das fontes, para aproveitamento dos institutos compatíveis com os critérios dos JECs, o que só favorece a justiça.

A ideia é deixar expresso na lei também que a menor complexidade da causa para a fixação da competência desse órgão da Justiça é aferida pelo objeto da prova, conforme Enunciado 54, deixando claro que é inadmissível a realização de prova pericial.

O grupo ressalta a importância de se proceder à resolução de conflitos no Sistema dos Juizados Especiais de forma oral, simples, informal, econômica e célere, de tal maneira que se deve lutar para manutenção da redação original do artigo 2°, incluindo-se, se for o caso, "efetividade e autocomposição". A tendência é valorizar a tentativa de conciliação na fase pré-processual, sobretudo por plataformas digitais, como a do consumidor.gov.br.

Há consenso em aumentar o valor de alçada para 60 salários mínimos, montante considerado razoável para unificação do sistema, sobretudo diante da alçada estabelecida para o Juizado da Fazenda Pública.

Discute-se uma proposta de introdução de custas para causas de mais de 20 salários mínimos, o que pode ser feito com a modificação da redação do artigo 54 da lei, para limitar a isenção do pagamento de custas, taxas e despesas, em primeiro grau de jurisdição, às causas de valor inferior.

Almeja-se ainda, nessa oportunidade, regulamentar de forma expressa o cabimento de tutelas provisórias no Sistema dos Juizados Especiais; incluir um item no artigo 18 para deixar expressa a possibilidade de citação por meio eletrônico; revogar o artigo referente ao juízo arbitral, diante da inutilidade e da existência da lei de regência arbitral 9.307/96, dentre outras melhorias.

Enfim, a proposta do Fonaje é modernizar o procedimento do Juizado Especial Estadual, aproveitando a experiência de 25 anos e as inovações tecnológicas, que possibilitam uma prestação jurisdicional simples, célere e efetiva.

ConJur — Advogados questionam a falta de uniformidade nas decisões e nos procedimentos adotados. Como resolver?
Honório —
Para resolver a questão da falta de uniformidade nas decisões e nos procedimentos adotados pelos juízes é preciso implantar um instrumento de uniformização eficiente, que realmente tenha o condão de evitar as divergências e resolver as demandas em massa e repetitivas.

Hoje, existe a possibilidade do "pedido de uniformização de interpretação de lei" quando há divergência entre decisões proferidas por turmas recursais da mesma unidade da federação sobre questões de direito material, conforme previsto no artigo 12 do Provimento 22/2012 do CNJ .

Todavia, esse instrumento não tem sido útil, pois o processamento do pedido, em alguns estados, é feito como se fosse um recurso, o que não é eficiente, pois há necessidade de se aguardar a sentença; decide-se caso a caso, com a prática de muitos atos desnecessários. Isso não contribui para a pretendida uniformização de jurisprudência.

Nesse aspecto, o procedimento do incidente da resolução de demandas repetitivas (IRDR), previsto no CPC, é mais eficiente do que o "pedido de uniformização de interpretação de lei" do Sistema dos Juizado Especial Estadual, justamente porque é tratado como "incidente". Todavia, este instrumento, segundo o último diagnóstico feito pelo CNJ, "destacadamente recebe menos adesão homogênea e muito menos majoritária" entre as turmas recursais.

O ideal seria que a Turma de Uniformização de Interpretação de Lei ou, na unidade da Federação onde houver, a Turma Recursal Única, tivesse competência para uniformização de jurisprudência e de procedimento, por meio de um incidente como o IRDR , pois este não depende da existência de um processo em órgão recursal e garante a isonomia e a segurança jurídica.

Penso que, se o Sistema de Juizado Especial pretende ser autônomo, os seus integrantes precisam se desapegar do CPC, acolhendo, entretanto, os institutos compatíveis com os critérios previstos no artigo 2º da Lei 9.099/95.

ConJur — Um grande exemplo dessa falta de uniformidade é o fato de alguns aceitarem o agravo de instrumento e outros não.
Honório —
A questão do agravo de instrumento nos juizados sempre foi tormentosa. Ocorre que, para se pôr em prática a oralidade e a concentração, a decisão de incidente processual não pode ser recorrível à parte da questão principal, conforme já pregava Giuseppe Chiovenda. O intuito é evitar qualquer paralisação ou tumulto processual, tanto que o princípio da irrecorribilidade cinge-se às decisões interlocutórias, que podem ser impugnadas por ocasião da interposição de recurso inominado, de tal forma que se garante a ampla defesa prevista na Constituição Federal (artigo 5º, LV )

Todavia, a impossibilidade de encerrar o processo em prazo razoável, em razão do grande volume de feitos e da falta de recursos humanos e materiais, fez com que os profissionais do Direito procurassem saídas processuais.

Assim, alguns juízes, dando uma interpretação mais flexível à lei especial, passaram a admitir a interposição do recurso de agravo de instrumento para evitar lesão grave e de difícil reparação, e também para evitar a impetração inadequada de mandado de segurança.

Entretanto, os advogados não fizeram a mesma distinção que os membros do colégio recursal gostariam e esperavam que fosse feita e, então, aproveitando a brecha aberta, passaram a agravar de quase todas as decisões interlocutórias, a tal ponto que congestionavam o órgão recursal com agravos.

Por outro lado, outros magistrados continuaram repudiando essa modalidade de recurso no sistema especial, defendendo o intuito do legislador constituinte, que foi o de obrigar a União e os estados a criarem um procedimento simplificado, que possibilitasse a prestação jurisdicional rápida para o cidadão detentor de uma causa de menor complexidade.

Não obstante a resistência fundada na Constituição Federal, o fato é que, hoje, segundo o último diagnóstico feito pelo CNJ, "o cabimento de agravo de instrumento no sistema de juizados é
admitido em 78,3% das turmas respondentes". Há divergência de
entendimento sobretudo nos tribunais com maior quantitativo de turmas, como São Paulo e Minas.

Nessas circunstâncias, a única forma de uniformizar a questão, depois de 25 anos, é alterar a Lei 9.099, para permitir o agravo de instrumento apenas em questões pontuais e específicas para evitar lesão grave e de difícil reparação.

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