Observatório Constitucional

Comemorar voto feminino é também denunciar violência política de gênero

Autores

  • Christine Oliveira Peter da Silva

    é mestre e doutora em Direito Estado e Constituição pela UnB professora associada do mestrado e doutorado em Direito das Relações Internacionais do UniCeub assessora do ministro Edson Fachin (STF) e membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC).

  • Natália Rocha Damasceno

    é advogada e pós-graduanda em Direito Digital — inovação e tecnologia no Instituto Ceub de Pesquisa e Desenvolvimento (ICPD/ UniCeub).

27 de fevereiro de 2021, 8h02

A comemoração de 24 de fevereiro é sempre uma oportunidade para lembrar que o voto feminino foi uma conquista fruto de muita luta das mulheres brasileiras. Daí a escolha pela proposta de uma reflexão, nesta prestigiada coluna do Observatório da Jurisdição Constitucional, sobre o que se está a comemorar.

A intensa luta das sufragistas refletia que o direito de ser eleitora trazia mais do que o sentimento de contribuição em escolher seus representantes. Alcançar o direito ao voto, sem exclusão por gênero, simbolizava o reconhecimento, pelo Estado e pela sociedade, de que mulheres são indivíduos com opiniões próprias, perfeitamente capazes de participar da vida política e tomar decisões por elas mesmas. Mas não só, também trazia a sensação de que suas vozes seriam ouvidas e que o espaço político seria permeável à presença feminina.

A luta pelo sufrágio sem discriminação de gênero era, sem dúvida, o maior objetivo do movimento das mulheres, desde a segunda metade do século 19 até as primeiras décadas no século 20 [1]. Entretanto, não foi em 24 de fevereiro de 1932 que as mulheres passaram a gozar de todos os direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos aos homens.

De fato, pode-se perceber diversos avanços com o reconhecimento do direito de mulheres votarem, serem votadas, serem eleitas e exercerem seus mandatos, mas as lutas e revoluções culturais necessárias ao exercício dos demais direitos caminham de forma muito lenta. Mesmo com o direito ao sufrágio, a dominação masculina na política nunca foi ameaçada, e as mulheres continuam, até os dias de hoje, excluídas desse ambiente.

É bem verdade que, nos anos 70, múltiplos grupos de mulheres foram organizados por todo Brasil. Eles se dedicavam à participação em congressos, reflexões sobre pautas de gênero, e resultavam em publicações sobre direitos da mulher, cultura feminista, saúde feminina e violência contra a mulher, entre outros. Foi nesse período que a construção do pensamento feminista político no Brasil ganhou novo impulso como um movimento organizado, passando a atuar ativamente no processo de redemocratização do Brasil.

Com o objetivo de garantir os direitos da mulher, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher foi criado em 1985, na antessala da Assembleia Nacional Constituinte, e propôs a campanha nacional "Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher", promovendo encontros, eventos e discussões. Como resultado, as mulheres enviaram a Carta das Mulheres à presidência da Assembleia Constituinte, reivindicando direitos e apresentando propostas suprapartidárias, bem como organizaram caravanas de mulheres que foram ao Congresso Nacional para convencer os parlamentares da importância de seus direitos serem expressamente reconhecidos na Constituição. Em consequência desse primoroso e eficiente trabalho, 80% das demandas das mulheres foram aprovadas e incluídas na Constituição de 1988. O movimento ficou conhecido como "lobby do batom" [2].

Em 1995, foi publicada a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, estabelecendo 12 áreas de preocupação sobre os direitos das mulheres: "violência contra mulher", "mulher e mídia", "mulheres no poder" e "mulheres na liderança" [3]. No mesmo contexto, o Brasil ratificou, por meio do Decreto nº 1973 de 1996, a Convenção de Belém do Pará, reconhecendo a necessidade de produzir políticas públicas de combate à violência contra mulher e se comprometendo a adotar medidas para alcançar a igualdade de gênero.

Entre os anos de 1995 a 1997, pode-se constatar outra importante conquista das mulheres brasileiras. Através de um projeto de lei proposto pela então deputada Marta Suplicy, buscava-se assegurar, no mínimo, 30% das vagas de candidaturas, de todos os níveis da federação, para as mulheres. A legislação inicialmente foi aprovada com o percentual mínimo de 20% de mulheres candidatas, mas depois consolidaram-se os 30% inicialmente propostos.

Em 2003, a criação da Secretaria de Política para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) registra o maior reconhecimento, no plano institucional, da participação das mulheres no governo federal brasileiro. Em 2004, publicou-se a "Plataforma Política Feminista", um documento de 43 páginas contendo demandas próprias e visão feminista sobre diversos assuntos da pauta política brasileira. Os anos seguintes foram marcados pelas Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres CNPMS (em 2004, 2007 e 2011), Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres PNPMS (em 2004, 2007 e 2011) e promulgação de leis que objetivavam a proteção da mulher, como a Lei Maria da Penha (2006), a PEC das Empregadas Domésticas (2013), a Lei do Feminicídio (2015) e Lei de Importunação Sexual (2018).

Nos últimos anos, podem-se ainda destacar outras duas importantes conquistas para a mulheres no cenário político brasileiro. Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral equiparou a distribuição do fundo eleitoral à cota feminina. Ou seja, se 30% das candidaturas devem ser representadas por mulheres, então 30% do orçamento do partido deve ser reservado para essas candidaturas, bem como para tempo destinado à propaganda gratuita eleitoral na televisão e rádio. Por fim, a Emenda Constitucional nº 97/2017 proibiu as coligações nas eleições proporcionais, a partir de 2020. Espera-se que isso se reflita em um maior número de registro de candidaturas femininas, considerando que cada partido deverá individualmente indicar 30% de candidatas, não mais podendo fazer-se a conta levando em consideração a coligação.

Verifica-se, portanto, que houve avanços significativos no Estado e na sociedade brasileira em direção à igualdade de gênero na política, como decorrência direta da norma posta pela Constituição de 1988, no seu artigo 5º, inciso I. Entretanto, tais conquistas ainda não conseguiram abalar a dominação masculina no ambiente político, de forma que é muito distante ainda o ideal de representatividade proporcional de gênero nos parlamentos federal e estaduais brasileiros, bem como nos cargos políticos majoritários.

Isso não acontece por acaso, as conquistas vistas anteriormente sempre estiveram sombreadas por discriminação estrutural de gênero e resistência social em legitimar a participação das mulheres em lugares de poder, impedindo as mulheres de progredirem em um tempo razoável.

É preciso lembrar que povo, tal qual referenciado na Constituição de 1988, não remete apenas ao governo de alguns, mas, sim, ao governo de e para todos, incluindo grupos minoritários e, por óbvio, as mulheres. Mesmo diante do clássico conceito de democracia representativa surge a expectativa de que haja representantes de todas esferas sociais, ou seja, de que os eleitos reflitam seus eleitores, de modo que os grupos minoritários, e também as mulheres, estejam efetivamente representados.

Entretanto, não é o que se verifica na realidade política brasileira. Há sub-representação das mulheres, dos negros, das minoria,s, que por fugirem do esteriótipo dominante do homem "branco, hétero, cristão e rico", não alçam os cargos políticos, perpetuando verdadeira desconsideração ao poder da maior parte da população brasileira [4]. No âmbito do gênero, pode-se constatar uma grande desigualdade entre a quantidade de mulheres e homens na ocupação das bancadas políticas [5].

De fato, os números relativos à efetiva participação da mulher na política demostram a indiscutível sub-representatividade. Mesmo sendo a maioria do eleitorado brasileiro, com o percentual de aproximadamente 52% nas três últimas eleições gerais, hoje as mulheres representam apenas 15% no Parlamento foram eleitas 77 mulheres no total de 513 de deputados e somente 12 senadoras entre os 81.

A baixa porcentagem de mulheres como representantes políticas no Brasil reflete uma posição vergonhosa no ranking mundial. Segundo o mapa "Mulheres na Política 2019", o relatório da ONU e da União Interparlamentar, a representatividade feminina do Brasil no Parlamento ocupa a posição 134º no total de 193 países. No governo federal, o índice é ainda pior: enquanto a média mundial é de 20,7%, há apenas 9% de ministras de Estado (duas indicadas entre os 22), colocando o Brasil em 149º lugar no total de 188 países [6].

Verifica-se, portanto, que a baixa representatividade política feminina é inegável e, ao se deparar com os dados apresentados, ecoa uma pergunta: onde estão as mulheres e por que não participam, competitivamente, da política?

Em primeiro lugar é preciso registrar que, apesar da representatividade ínfima, a história das mulheres brasileiras na política não se traduz em ausências, mas na luta pela ocupação do seu espaço político [7]. Entretanto, é preciso denunciar que a resistência política contra a mulher tem nome: violência política de gênero.

Esse tipo de violência consiste em ações ou omissões que anulam e/ou restringem o exercício dos direitos políticos eleitorais e dos direitos fundamentais das mulheres. Essas ações também são caracterizadas por outras formas de violência, e se reproduzem na esfera da sociedade civil. Ou seja, para compreender a violência política de gênero, não se pode tomar como foco de análise apenas o panorama político das mulheres. Deve-se realizar um exame multidimensional, relacionado à complexa realidade feminina em todos os seus âmbitos de existência, que acabam por se traduzir pela precarização social e econômica das mulheres [8].

Em segundo lugar, é necessário entender que o patriarcado é definido pela posição de dominação masculina sobre a mulher, e que, nessa estrutura patriarcal, o Brasil se consolidou como comunidade nacional. A organização de poder patriarcal está presente e refletida em todos os âmbitos da vida social brasileira, o que se constata a partir da própria história: o homem já foi titular do direito de impor castigos físicos e assassinar a mulher em caso de adultério; as mulheres eram consideradas relativamente incapazes e necessitavam de autorização dos homens para trabalhar; elas só eram aceitas socialmente quando se casavam, momento a partir do qual se tornavam propriedade do marido [9].

Em resumo, o homem detinha todo o poder e a mulher era coisificada. Não tinha poder de escolha sobre sua família, sobre seu próprio corpo, ou sobre sua própria vida.

Em terceiro lugar, é mister lembrar que toda a estrutura de poder político foi definida de modo a acomodar a divisão sexual trabalho. Todos os espaços políticos e públicos, métodos e hábitos foram criados visando a garantir que o masculino estivesse em posição superior ao feminino, especialmente na esfera pública e política. Assim, percebe-se que, de maneira proporcional, a incidência da divisão sexual do trabalho doméstico reflete diretamente na distância entre homens e mulheres nos cargos políticos [10].

Isso quer dizer que, quanto mais se é responsável pela vida doméstica e pela criação dos filhos, menor é a chance de participação na vida política. Daí decorre a conhecida tese de que "o pessoal é político", ou seja, o que acontece na esfera privado-doméstica é extremamente relevante para a estrutura de poder político, devendo ser tratado como um problema de responsabilidade de todos [11].

Como dito, a celebração do voto feminino tem que ser também a celebração da democracia, o que significa, para dizer o mínimo, que homens e mulheres, proporcionalmente, devem estar no efetivo exercício do poder político. Portanto, violência política de gênero, sociedade estruturalmente patriarcal e divisão sexual do trabalho são graves problemas políticos, e, não, questões particulares das mulheres e dos feminismos. Somente quando se reconhecer isso, tornando o combate à violência política de gênero um pressuposto para o exercício da cidadania, poderemos celebrar, no Brasil, o 24 de fevereiro de forma plena.

 


[1] MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI Flávia. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014, cap. 6.

[2] MATOS, Marlise e PARADIS, Clarisse Goulartigo Desafios à despatriarcalização do Estado brasileiro. In Cadernos Pagu. n. 43, jul. -dez. 2014, p. 101.

[3] VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher: Pequim, 1995. In: FROSSARD, Heloisa (org). Instrumentos Internacionais de Direitos das Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2006. p. 148 <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/03/declaracao_pequim1.pdf> Acesso em 11 de mar. 2020.

[4] Agência Câmara de Notícias. Nova composição da Câmara ainda tem descompasso em relação ao perfil da população brasileira. Disponível em <https://www.camara.leg.br/noticias/550900-nova-composicao-da-camara-ainda-tem-descompasso-em-relacao-ao-perfil-da-populacao-brasileira/> Acesso em: 8 de mar. 2020.

[5] No Senado, foram eleitos 47 homens e apenas 7 mulheres. Na Câmara, 436 homens e 77 mulheres. Nas Assembleias, 898 homens foram eleitos e apenas 161 mulheres. (TSE. Número de mulheres eleitas em 2018 cresce 52,6% em relação a 2014. Disponível em <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Marco/numero-de-mulheres-eleitas-em-2018-cresce-52-6-em-relacao-a-2014> Acesso em: 3 de jun. 2020).

[6] Agência Câmara de Notícias. Baixa representatividade de brasileiras na política se reflete na Câmara. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/554554-baixa-representatividade-de-brasileiras-na-politica-se-reflete-na-camara/> Acesso em: 8 de mar. 2020.

[7] MIGUEL, Luis Felipe, BIROLI Flávia. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. cap. 6.

[8] ARCHENTI, Nélida. ALBAINE, Laura. O Feminismo na política. Paridade e violência política de gênero na América Latina. p. 17. Disponível em <https://www.kas.de/c/document_library/get_file?uuid=257d2fc2-0a69-ab74-63cb-ec3996a5a787&groupId=265553> Acesso em 12 de mar. 2020.

[9] COLLING, Ana Maria. O lastro jurídico e cultural da violência contra a mulher no Brasil. Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História, Florianópolis-SC, 2015, p. 4-5. Disponível em < http://encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/39/1427675369_ARQUIVO_anpuh2015.pdf>. Acesso em: 3 de jun. 2020.

[10] BIROLI, Flávia. Divisão Sexual do Trabalho e Democracia. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 59, no 3, 2016. p. 740. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/dados/v59n3/0011-5258-dados-59-3-0719.pdf>.Acesso em: 12 de mar. 2020.

[11] OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Tradução de Flávia Birolli. Rev. Estud. Fem. [online]. 2008, vol.16, n.2, p. 314. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ref/v16n2/02.pdf> Acesso em 12 de mar. 2020

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    é mestre e doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, professora associada do mestrado e doutorado em Direito das Relações Internacionais do UniCeub, assessora do ministro Edson Fachin (STF) e membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC).

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