Diário de classe

Sobre liberdade de expressão e democracia

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27 de fevereiro de 2021, 8h01

Com a intensidade sanguínea desses tempos polarizados, a difícil relação entre o Direito e a política voltou à pauta dos calorosos debates recentemente, com a prisão do deputado federal Daniel Silveira, do Partido Social Liberal (PSL). Decretada pelo Supremo Tribunal Federal e mantida pelo plenário da Câmara com 364 votos favoráveis, a prisão foi motivada por ataques a integrantes da Suprema Corte do país em um vídeo divulgado pelo próprio parlamentar, mais conhecido por figurar em inquéritos que averiguam sua participação na disseminação de fake news, por exemplo, que pelos seus projetos de lei.

Sobre isso — e sobre todas as ambiguidades envolvendo o discurso do deputado, como a apologia ao AI-5 de mãos dadas com o questionamento de sua própria prisão  muito já se falou (aqui), oportunamente, na emergência dos acontecimentos. Entretanto, para além dessa imediata e necessária análise, a questão também abriu penso um interessante espaço de debate sobre que país projetamos com a Constituição de 1988.

Comecemos, assim, pela desconstrução de algumas imagens feitas. A primeira delas é a de que um regime autoritário, como o que precede nossa carta, é necessariamente um sistema conflitivo entre quem efetivamente manda e a população. Ao contrário, embora existam evidentes momentos de forte oposição e é por isso que muita gente "desaparece" nesses sistemas , essas formas políticas geralmente contam, também, com o apoio de amplos setores populares. Muito sinteticamente, esse "apoio" decorre ao menos na especificidade do caso brasileiro de certas promessas não efetivadas pela própria democracia. No limite, pavimenta o discurso da via autoritária, como se todos os caminhos (inclusive esse) fossem possíveis.

Não por acaso, a depender da "agenda" do país, como combate à corrupção, fortalecimento econômico etc., regimes autoritários não são apenas verticalizações políticas de cima para baixo, como a própria ideia de "autoridade" sugere, mas, ainda, são formas "consentidas" de exercício do poder. A diferença para o populismo que combina "democracia" e "demandas sufocadas" para sua emergência [1] é que, nesse caso, a própria democracia é suplantada, na primitiva ideia de que o regime que conta cabeças ao invés de cortá-las não é um fim em si mesmo. Isso não apenas explica certas marchas populares na década de 1960 por aqui como, no mais, também muitas manifestações verde-amarelas na contemporaneidade brasileira. Em certo sentido, é como se o passado não passasse, congelando nossas carências sociais e políticas. E diante desse estado de coisas passássemos procurando a chave perdida debaixo do bico de luz que ilumina justamente onde a chave não está.

A Constituição de 1988 surge nesse (e desse) ambiente. Embora a chave ainda não tenha sido encontrada em muitos aspectos basta ver a ululante desigualdade social que nos caracteriza, ou a endêmica corrupção que nos abraça desde a colônia sem sossego [2] , a carta que assinala definitivamente a transição do autoritarismo para a democracia não apenas projetava o novo [3], mas, ainda, procurava obstaculizar o passado. Ou seja, a despeito de certos e atuais clamores populares, Constituições como a de 1988 não são apenas projeções a um futuro diferente e, no mais, mais próspero em um bom catálogo de sentidos, mas, mais que isso, indicam também freios à tentação do retrocesso. Afinal de contas, se no limite a questão pede um certo consequencialismo, "não adianta procurar a chave onde ela não está".

Esse é o ponto. O caminhar para a democracia, décadas atrás, não previa tão somente um certo dirigismo rumo a um país mais justo e solidário, que visava diluir os riscos sociais entre todos os cidadãos criando, assim, um novíssimo jogo de linguagem num país tão desigual , mas projetava, sobremodo, a manutenção da própria democracia justamente por apresentar, com ela, a chance de mudar, periodicamente, os rumos políticos do país. É dizer: a democracia não engessa as possibilidades para encontrar a chave, permitindo distintas e legítimas vias para a efetivação de um futuro melhor que o presente e o passado.

Daí a defesa intransigente (somente nela, e não por acaso) da "liberdade de expressão", tão debatida no caso do deputado preso. Afinal de contas, somente a partir dela o lugar do poder será efetivamente um lugar vazio, para usar a feliz expressão de Claude Lefort ao, entre outras características, definir democracia. Ela é não apenas o caminho para encontrar a chave para um país mais justo, como também é a própria chave. Afinal de contas, havendo rupturas institucionais que abalem a democracia, como as projetadas por uma pretensa liberdade de expressão que ultrapassa a crítica sempre saudável, por mais dura que seja, quem garantiria essa mesma liberdade? Essa é a pergunta (e a aporia) que o autoritarismo não pode enfrentar, mas que diz muito sobre que país (e que sociedade) queremos, no futuro, ser.

 


[1] COPELLI, Giancarlo Montagner. Políticas públicas e populismo: breves apontamentos à brasileira, a partir do presidencialismo de coalizão. In: Marcelo Jaques; Anderson Teixeira; Giancarlo Copelli. (Org.). Políticas públicas no Brasil: ensaios para uma gestão pública voltada à tutela dos Direitos Humanos. 1ed.Blumenau – SC: , 2020, v. 2, p. 18-30.

[2] COPELLI, Giancarlo Montagner. Déficits de republicanismo no Brasil: uma crítica à crítica contemporânea. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 43, p. 119-136, 2020.

[3] Novo em sentido streckeano. Por todos, ver o terceiro capítulo de STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito.11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

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