Leniência da Odebrecht

Em 2017, decisão já limitava poder do MPF de administrar valores bloqueados

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26 de fevereiro de 2021, 10h58

Diálogos revelados pela ConJur no último dia 22 mostraram que a autodenominada "força-tarefa da lava jato" em Curitiba debateu amplamente com autoridades norte-americanas e suíças o acordo de leniência assinado entre o Ministério Público Federal no Paraná e a Odebrecht. 

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Primeiro acordo de leniência com a Odebrecht foi derrubado pelo TRF-4
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Em 2016, ficou decidido e chegou a ser formalizado que a multa de aproximadamente R$ 8 bilhões paga pela construtora seria administrada pelo MPF e que parte do valor iria para o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) e para a Procuradoria-Geral da Suíça. 

As tratativas informais e ilegais burlaram a competência do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação (DRCI), órgão do Ministério da Justiça que é responsável por centralizar cooperações internacionais em matéria penal envolvendo outros países. A atuação da "lava jato" também levantou uma discussão sobre até que ponto o MPF pode decidir o destino de valores bloqueados de empresas brasileiras envolvidas em esquemas de corrupção, somas que, ao fim e ao cabo, deveriam ser remetidas à União. 

Em 2017, no entanto, uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sediado em Porto Alegre (RS), já limitava a administração de valores pela "lava jato" de Curitiba. 

A 3ª Turma da corte federal entendeu que o MPF não tem competência para fazer acordos de leniência envolvendo atos de improbidade administrativa. Para os integrantes do colegiado, só a Controladoria-Geral da União (CGU) pode falar em nome da União para fazer acordos, uma vez que o Ministério Público não tem legitimidade para dispor de patrimônio público. 

Na ocasião, a 3ª turma seguiu o voto da relatora, desembargadora Vânia Hack de Almeida. A decisão foi de manter o bloqueio de bens da Odebrecht e suspender a validade do acordo firmado entre a construtora e a "lava jato" até que a CGU ratificasse os termos do negócio. 

Para Hack, a atribuição de discutir a disponibilidade de patrimônio público é do Executivo  — no caso de contratos superfaturados com a Petrobras, da União. Ela foi acompanhada pelos desembargadores Rogerio Favreto e Marga Tessler. 

Ao anular o primeiro acordo de leniência, novos termos foram feitos, dessa vez com a CGU à frente. Com a tratativa, ficou definido que a Odebrecht pagaria R$ 2,7 bilhões ao longo de 22 anos, com correção pela taxa Selic, podendo atingir cerca de R$ 6,8 bilhões ao final do prazo. 

Sem atribuição
O entendimento do TRF-4 resultou de uma interpretação feita sobre a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei Anticorrupção. No caso da primeira norma, o parágrafo 1º do artigo 17 proíbe "transação, acordo ou conciliação" nas ações de improbidade. 

Já a Lei Anticorrupção diz, no parágrafo 10 do artigo 16, que "a CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal". Não há menções ao MP na parte que fala dos acordos de leniência.

"Inicialmente, entendo que o MPF não possui atribuição para representar judicialmente a União e, portanto, dispor sobre seu patrimônio ou recomposição de prejuízos causados por particulares ou mesmo agentes públicos", destacou Favreto ao votar sobre a matéria. 

Ele também anotou que, além de violar a competência da CGU, a leniência fechada pelo MPF violava a soberania nacional, "uma vez que o acordo é pautado e coordenado com as autoridades estadunidenses e suíças, em franco desrespeito aos interesses nacionais".

"Premia-se os países que acolheram as empresas e pessoas envolvidas na corrupção pela recepção financeira em seus paraísos fiscais, em detrimento ao devido e justo ressarcimento ao erário público da nossa nação. Tudo indica que o Ministério Público Federal priorizou a persecução penal (muito necessária), mas a qualquer custo e forma, no afã de receber informações e documentos dos delatores e colaboradores por meio do pacto de leniência, negociando recursos públicos indisponíveis sem possuir legitimidade e amparo legal para tanto", continuou o magistrado, bem antes da colaboração informal repercutir no debate público. 

Além da decisão do TRF-4, a Orientação Normativa 10 diz que, em casos envolvendo improbidade administrativa, o Ministério Público Federal deve notificar o ente lesado para que ele se manifeste sobre acordo de não persecução penal cível (ANPC).

"Havendo concordância quanto à solução proposta sobre os fatos objeto do inquérito civil, o Ministério Público Federal poderá celebrar o ANPC em conjunto com a entidade lesada, ambas como partes signatárias originárias", diz a orientação.

A ConJur perguntou ao MPF no Paraná se os demais acordos de leniência firmados entre "lava jato" e empresas tiveram aval da CGU. A resposta veio via Procuradoria-Geral da República (leia a íntegra no final da reportagem). 

Para a PGR, "é errônea a concepção de que o TRF-4 decidiu que o MPF não pode fazer acordo sem o aval da CGU". "Sendo assim, o MPF continua a celebrar acordos em todo o Brasil, assim como os Ministérios Públicos estaduais, acordos estes que continuam a ser homologados pelos órgãos superiores das instituições, bem como pelos juízos responsáveis, quando necessário", afirma a nota.

A ConJur também buscou a CGU para saber quantos acordos de leniência foram fechados em parceria com a "lava jato" no Paraná depois de 2017, mas não obteve resposta. 

Divisão de dinheiro
Os novos diálogos entre procuradores da "lava jato" em Curitiba indicam que eles tinham consciência de que os norte-americanos poderiam quebrar a Odebrecht, mas, mesmo assim, deram continuidade às tratativas com autoridades dos EUA para a aplicação de penalidades, fornecendo até mesmo dados informais, a título de "informações de inteligência". 

Em uma troca de mensagens, em 17 de maio de 2016, o procurador Deltan Dallagnol discutiu com o colega Orlando Martello o envio de informações à Suíça e aos Estados Unidos sobre a Odebrecht.

Martello chega a dizer que tem plena consciência de que "os americanos quebram a empresa" brasileira e Deltan responde com uma risada. As mensagens constam de petição da defesa do ex-presidente Lula enviada ao Supremo Tribunal Federal. Nos Estados Unidos e na Europa, a postura é outra: as investigações anticorrupção buscam manter intactas as suas companhias. 

O acordo de leniência que a Odebrecht assinou com o Ministério Público Federal em dezembro de 2016 previa a criação de uma conta judicial, sob responsabilidade da 13ª Vara Federal de Curitiba. O dinheiro ficaria à disposição do MPF, que daria aos recursos a destinação que quisesse. 

A construtora se comprometeu a pagar R$ 8,5 bilhões como multa por seus malfeitos. O dinheiro seria dividido pelo MPF entre ele mesmo, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ) e a Procuradoria-Geral da Suíça.

Veja íntegra da nota da PGR

Inicialmente ressaltamos que é errônea a concepção de que o TRF4 decidiu que o MPF não pode fazer acordo sem o aval da CGU. O que o Tribunal decidiu é que o acordo celebrado pelo MPF é um negócio jurídico válido entre as partes, não podendo ter seus efeitos estendidos a outros colegitimados, como a advocacia pública ou a entidade pública vítima. Esses efeitos foram esclarecidos pelo Tribunal no julgamento de Embargos de Declaração, proferido nos mesmos autos do acórdão referenciado pelo jornalista autor da consulta (5023972-66.2017.4.04.0000/PR). Ainda, a decisão foi proferida em um caso concreto e não tem efeitos vinculantes para fora daquele processo, seja para o próprio Ministério Público, seja para os demais órgãos do Poder Judiciário. 

Sendo assim, o MPF continua a celebrar acordos em todo o Brasil, assim como os Ministérios Públicos Estaduais, acordos estes que continuam a ser homologados pelos órgãos superiores das instituições, bem como pelos juízos responsáveis, quando necessário.

Apesar da legitimidade dos acordos celebrados pelo MPF, o órgão tem, sempre que possível, atuado em coordenação com a CGU, a fim de que sejam assinados acordos em paralelo por ambos os órgãos, com cláusulas compatíveis, sendo que o acordo celebrado por um órgão reconhece a validade do acordo celebrado pelo outro. Nesse sentido, pode-se citar os recentes acordos negociados em conjunto por MPF, CGU e AGU com as empresas Technip e Samsung, este assinado nesta semana.

Sobre a celebração de acordo em matéria de improbidade pelo MPF, tem fundamento no sistema jurídico e é reconhecida pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, nos termos da Nota Técnica nº 01/2017.

A lista das empresas cujos acordos não se encontram em sigilo pode ser consultada no sítio específico sobre acordos de leniência mantido pela Câmara. Até o momento, a 5ª CCR já homologou 22 acordos de leniência de empresas investigadas na Operação Lava Jato. Por outro lado, somente a própria CGU poderá informar sobre a celebração de acordos por aquele órgão com empresas envolvidas na Operação Lava Jato.

Agravo de Instrumento 5023972-66.2017.4.04.0000

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